Fogo no parquinho
Pow! Nitroglicerina pura. Aperte o cinto, respire fundo, vamos enveredar por caminhos sacudidos, quer dizer, polêmicas. Aviso aos viajantes das cenas e da vida cultural: este vai ser um texto contraindicado para sensibilidades fracas, ideias moles e mentes dominadas. Dito isto, vamos dar a partida, rumo ao puro pensar. Tentemos.
Fila de teatro de uma pequena casa de espetáculos muito querida, Ipanema. Um casal visivelmente não-carioca, não-zona-sul, não-bolha-teatro-alternativo puxa conversa. Recomendam com muita animação duas peças em cartaz no Rio – O Incidente, no Teatro Firjan, no Centro, e Princípio da Incerteza, Sala Rogério Cardoso, Casa de Cultura Laura Alvim.
Sim, o casal está certo, as duas peças, em final de carreira, precisam ser vistas. A peça norte-americana, de Cristopher Demos-Brown, brilhantemente dirigida por Tadeu Aguiar, traz uma visão rascante, atual, de uma necessidade comum a todos, debatermos a densidade hoje da relação entre poder e indivíduo. Será que construímos uma sociedade digna deste nome? Ou seguimos escondendo as barbáries, como se fossem incidentes?…
Trata-se do grande teatro da palavra e da tessitura dramática densa, com desempenhos históricos, eletrizantes mesmo, de Flavia Santana e Leonardo Franco. Imperdível. Como ultrapassar os dogmas racistas e de exclusão, em prol de uma humanidade plena? Teatro. Bom teatro. O verbo em ação que se faz pensamento emocionado não deve existir apenas para isto?
Já a aposta teatral da Sala Rogério Cardoso, também autodenominada como exercício, radicaliza a visão a respeito do tema dos irmãos em desavença – a coisa vai a partir de Esaú e Jacó até – digamos – eu e você nesta sociedade de confronto. O texto inteligente e provocativo de Rosyane Trotta instiga um movimento pendular curioso, entre a ficção e a realidade, incorporando até a história e o cotidiano da Definitiva Cia de Teatro. Sob a direção de Jefferson Almeida, os atores João Vitor Novaes e Marcelo de Paula, absolutamente intensos, caminham por confrontos até o debate, no encerramento, com a plateia. Conviver ou guerrear? Perplexidade – sem dúvida, o jogo vivo da cena na pequena sala traduz uma pergunta profunda em sintonia com o drama exposto no texto convencional. A vanguarda conversa com a convenção, o Centro fala com Ipanema.
Ipanema. Precisamente onde estávamos, aguardando o sinal para ver o desafiador (e lindo) experimento cênico Coringa, de Renata Mizhai. Uma cena de luta entre pontos de vistas inconciliáveis – ou será que, coringa, nas suas certezas pétreas, seriam os tais pontos de vista duas faces do mesmo? As duas atrizes, Bianca Sacks e Bruna Macaciel, se contrapõem, se identificam, se fecham cada uma em si. A cena, com aguda ironia e um requintado cálculo simbólico, fala da intransigência e da recusa em entender o outro, conversar como forma bela da arte de viver.
A luz da curiosidade que habita a minha mente acendeu forte e resolvi tentar saber quem era o casal, frequentador de teatro num grau tão avançado, a ponto de recomendar duas peças tão diferentes, em dois polos da cidade. E tudo isto na fila para ver um experimento cênico intenso, em diálogo com a atualidade carioca.
O casal representa uma espécie rara em extinção no Brasil. Um tipo de pessoa difícil de encontrar nos teatros cariocas. Eles mereciam receber uma atenção protetiva especial do governo, adequada aos animais em extinção, pois são espécimes legítimos do público de teatro! Moram num interior perdido das Gerais e costumam programar viagens periódicas à cidade maravilhosa com um objetivo muito claro: ver teatro.
Ouvi atenta os comentários do senhor, mais falante do que a esposa, definitivamente enfeitiçado pela arte da cena. As suas observações indicavam uma bela intimidade com a arte, denunciavam o seu conhecimento do palco hoje e, aleluia, o reconhecimento do teatro como alimento de primeira necessidade para o espírito. Fiquei comovida.
Nem lembrava mais da espécie. Esquecera de sua existência, pois sempre estou cercada por pessoas obrigadas, por diferentes razões, a frequentar os teatros. Por sinal, vejo muito frequentemente uma turma nas salas que, decididamente, não gosta de teatro, torce o nariz para tudo, acha tudo ruim. Representam um velho tipo teatral popular, nobres especialistas na arte fácil de achar defeitos, figurinhas chiques que vicejam por aqui desde o século XIX.
Então, uma constatação bem mais pesada do que a maçã de Newton quase rachou a minha cabeça: o teatro carioca (e o brasileiro, seguramente) está moribundo não por obra do público ou dos governos medonhos que, século após século, somos obrigados a aturar, dedicados a luzir nossa mais excelsa ignorância. O teatro está à beira do túmulo por obra e falta de graça da classe teatral.
Um outro fato da semana ajudou a conduzir o raciocínio até esta ousada conclusão: a festa de aniversário da atriz Nelma Costa, na Cinemateca do MAM, organizada por Hernani Heffner, Daniel Marano e Alice Gonzaga, um trio de ouro engajado na defesa da memória da arte brasileira. Nascida no dia 1 de janeiro de 1922, trata-se do único nome remanescente da geração de atores designada por vezes como “antiga”. Usemos o adjetivo discutível para resumir o tema.
Nelma Costa, de uma família teatral, começou carreira como garota-propaganda da Phebo, em 1925. Quer dizer, bebê propaganda. A carreira longa durou até 1970 e contou com muito teatro, propaganda, rádio, televisão. Ela integrou as companhias lideradas por Jaime Costa e por Mesquitinha, participou do elenco de Totó e sua Companhia de Comédias (também anunciada como companhia de espetáculos para rir…) e a pouco conhecida Companhia de Comédias Musicadas de Walter Pinto. A partir das nomenclaturas, dá para desconfiar como foi a repercussão social dos conjuntos, supor quem aplaudia e quem vaiava, ali nos anos !940-1950. Foi uma época de trincheiras teatrais ferozes.
Nos reclames, o nome de Nelma Costa figurava frequentemente como ‘estrela’. Dotada de temperamento intenso, mas meigo e lírico, foi excelente ingênua. Nesta qualidade, os apaixonados por teatro e cinema que foram à festa puderam vê-la em ação, no curta de homenagem a Machado de Assis, Um Apólogo, direção de Humberto Mauro, de 1939. Linda e etérea, ela alinhava de verdade os humores da cena no papel da Agulha, em disputa com Déa Selva, o carretel de linha.
A seguir, o ponto alto da noite, a projeção de Caídos do Céu, filme revista da Cinédia de 1946, direção de Luiz de Barros. A cópia, apesar de ter sido trabalhada, ainda merece cuidados urgentes de restauração. E deveria – assim como todo o sensacional acervo da Cinédia – receber um investimento pesado por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro e do Ministério da Cultura.
Tanto o Prefeito Eduardo Paes como o Secretário Marcelo Calero mereciam inscrever nas suas biografias o feito revolucionário de recuperação desta memória requintada do cinema, do teatro, da música, do samba, do carnaval, das artes plásticas, da dança e da história da cidade. São joias importantes para o Rio e para o Brasil – e para o mundo, já que a MPB há muito rompeu as fronteiras do nosso quintal.
Vale ver o filme. Trata-se do primeiro titulado por Dercy Gonçalves, então no seu mais requintado grau de desempenho cômico, em dupla com Walter d’ Ávila. Ao lado dos cômicos, Nelma Costa foi escalada para o papel de ingênua – ela quer se casar com um jovem sambista (Átila Iório), para ódio do pai (César Fronzi), casado com Violeta Ferraz e enrabichado por… Zaquia Jorge, a grande vedete de Madureira, uma atriz rara de se ver. Sim, ela é a musa da marchinha “Madureira chorou, Madureira chorou de dor…” . Foi vítima de feminicídio.
Evidentemente este tipo de filme, apesar de contar com a fina flor da música popular do momento, de Luiz Gonzaga a Marlene, Dalva de Oliveira e Ataulfo Alves, com cerca de vinte números musicais, desagradava o cordão do nariz torcido, aqueles célebres especialistas em achar defeito, apontados acima. Uma injustiça imperdoável.
Nesta época, a elite e a classe média ainda não estavam de amores com o samba e o carnaval. Eram artes do povaréu das ruas. As cenas de carnaval de rua, aliás, com registros maravilhosos até do desfile das Grandes Sociedades, fazem um espetáculo à parte dentro do filme. É muita emoção.
Mas importa fazer a ressalva – apesar da grandeza cinéfila de Luiz de Barros, o filme constitui uma referência teatral imediata. As cenas traduzem em forte grau o que era e como era o palco do “teatro declamado” da época e – desespero maior dos elitistas – o palco do rebolado está inteiramente lá. Dá para concretizar, no olhar da alma, a materialidade da cena das revistas e perceber por que a paixão popular abençoava tais cartazes. O cinema acontecia colado a um teatro dotado de público, que inventara a música popular brasileira, jovem assanhada que se aprontava para fugir de casa a partir daquele momento.
Pois, justamente, foi contra este tipo de produção artística que o teatro moderno clamou. E os devotos da cena moderna não economizaram munição contra o suposto inimigo, combateram todas as formas e gêneros teatrais defendidos pelos antigos. Para confirmar o juízo, basta abrir qualquer livro de História do Teatro Brasileiro Moderno. Ou estudar a História de Artur Azevedo. A cegueira é tão mais execrável por um motivo delicado: ela ajuda a apagar a vida e a obra destes artistas esplêndidos. Por isto, Nelma Costa não é louvada em grande coro por toda a sociedade.
Quer dizer, a guerra se prolonga até hoje, e vem lá do século XIX. Ela está viva na inacreditável campanha recente contra um projeto da deslumbrante atriz de musicais que é Cláudia Raia. Os ataques – quem diria – ignoram qual é a planilha de gastos dos musicais e estimulam as campanhas mal-intencionadas, obscurantistas, que desejam considerar o teatro como bandido social, vampiro de dinheiro público. Puro teatricídio, tiro no pé.
Para esta linha de reação contra o teatro, os musicais não deveriam contar com acesso às leis de incentivo fiscal, como se fosse possível produzir um belo musical, sempre em teatros tão pequenos, no livre jogo de mercado, com a previsão de custeio a partir da bilheteria. Os detratores não percebem o pior: estão demolindo o teatro e contribuindo para liquidar o público. Apesar do casal mineiro na fila do teatro adorar ver peças de inovação, o grosso do público que ainda sobrevive prefere ver musicais, inclusive Claudia Raia. A vitalidade do musical brasileiro é a chave para uma conciliação urgente entre teatro e sociedade.
Mas há uma grande pergunta, porém, de outra ordem. Por quê uma parte significativa da classe teatral brasileira insiste em defender uma linha de teatro derivada da visão acadêmica do Antigo Regime, tanto tempo depois da Revolução Francesa? É horror ao povo? Pois, no fundo, é exatamente disto que trata a campanha tradicional contra o teatro de inspiração popular ou popularesca.
Para este partido de combate ao teatro brasileiro, gente como Dercy Gonçalves, Oscarito, Grande Othelo, Virginia Lane, Alda Garrido, Rose Villiot, Xisto Bahia, Vasques… todos representam um lugar de sentimentos brutos, intuitivos, primários, imediatos, que precisariam ter sido tratados por refinamentos intelectuais abstratos, vinculados à mais pura verve da academia ocidental, para que pudessem cogitar um lugar na cena. Na dúvida, procurem ler os textos assinados pelos críticos modernos a respeito da arte destes inquietos senhores. Basta passear pela Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional.
Naturalmente, a consequência mais forte deste programa de ação é muito visível nas plateias das casas de espetáculo: matamos o público. Agimos como se o teatro – o grande teatro das ideias correntes, que vai do escracho até a conversação requintada de Ibsen ou Tchekov – não fosse necessário no Brasil. Ou são coisas simplórias, banais, ou são coisas ultrapassadas, chatices.
Precisaríamos ter em cena apenas pesquisas localizadas, bem herméticas, dedicadas ao fluxo inefável dos gestos, aos meneios indecifráveis das intenções e dos corpos, aquilo que os antigos chamam de vanguarda. Quer dizer, o teatro deve requintar poeticamente uma elite e nada mais, o resto é desnecessário. Burilar as suas formas de percepção do mundo. Não importa se o resto da sociedade permaneça imerso num fluxo de humanidade tosco. Teatro para todos, para quê? Afinal, estamos numa sólida sociedade de castas do terceiro mundo. Então, cultivar a sensibilidade de tal elite e apagar o resto seria apenas um gesto, um reflexo: explodir a paz social e cuidar da manutenção dos antigos privilégios?
PARA SABER MAIS SOBRE NELMA COSTA E SE EMOCIONAR COM A GRANDEZA DO PALCO BRASILEIRO:
Foto de abertura: Nelma Costa, autoria ignorada, acervo da autora.
http://www.elencobrasileiro.com/2014/11/nelma-costa.html
http://cinemalivre.net/filme_um_apologo.php
O INCIDENTE
Serviço:
TEATRO FIRJAN SESI CENTRO
Av. Graça Aranha, 1 – Centro, Rio de Janeiro – RJ.
TEMPORADA: de 12 de janeiro a 12 de fevereiro de 2023
Quintas e sextas às 19h
Sábados e domingos às 18h
INGRESSOS: R$ 40 (INTEIRA)
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 12 ANOS
DURAÇÃO: APROXIMADAMENTE 100 MIN.
FICHA TÉCNICA
Texto de CHRISTOPHER DEMOS-BROWN
Direção e tradução de TADEU AGUIAR
Elenco
FLAVIA SANTANA
LEONARDO FRANCO
DANIEL VILLAS
MARCELO DIAS
Cenário de NATALIA LANA
Figurinos de NEY MADEIRA e DANI VIDAL
Desenho de Luz de DANIELA SANCHEZ
Música original de JOÃO CALLADO
Coord. Produção de NORMA THIRÉ
Produção Geral de EDUARDO BAKR
Realização PAPEL PARDO E ESTAMOS AQUI PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
“Exercício de Atuação Nº 1 – Princípio da Incerteza
Serviço
Casa de Cultura Laura Alvim (Espaço Rogério Cardoso)
Temporada: 10 de janeiro a 15 de fevereiro de 2022
Dia/hora: terças e quartas, às 19h
Av. Vieira Souto, 176 – Ipanema
Ingresso: R$10 (inteira)/ R$5 (meia-entrada)
Capacidade: 40 lugares
Duração: 70min
Gênero: desmontagem
Instagram:@definitivaciadeteatro
Ficha Técnica
Dramaturgia: Rosyane Trotta
Direção: Jefferson Almeida
Elenco: João Vítor Novaes e Marcelo de Paula
Artistas colaboradores: Betho Guedes, Livs, Paula Sholl e Tamires Nascimento
Direção musical: Renato Frazão
Direção de arte: Arlete Rua
Iluminação: Livs
Preparação corporal e Coreografia: Rosa Trotta
Assessoria de imprensa: Aquela que divulga
Prestação de contas: Alan Isídio
Contabilidade: VOX Contábil
Produção: Tem Dendê! Produções – Tamires Nascimento
Realização: Jefferson Almeida e Definitiva Cia. de Teatro
CORINGA
Ficha Técnica
Renata Mizrahi: Texto e Direção
Elenco: Bianca Sacks e Bruna Macaciel
Diretora Assistente: Gizelly de Paula
Cenário e Figurinos: Guilherme Reis
Desenho de Luz: Rommel Equer e Maurício Fuziyama
Trilha sonora original e design de som: Felipe Dias
Fotografia e Vídeo: Dalton Valerio
Design
Gráfico: Leticia Rumjanek
Assessoria de Comunicação: Dobbs Scarpa
Direção de Produção: Fernanda Avellar
Idealização: Cia DUE
Realização: Trestada Produções
Serviço
De 13 de janeiro a 12 de fevereiro
Sextas e sábados, às 19h
Domingos, às 18h
Espaço Rogério Cardoso.
Casa de Cultura Laura Alvim
Av. Vieira Souto, 176 – Ipanema, Rio de Janeiro – RJ
Telefone: (21) 2332-2016
Classificação:
14 anos.
Duração: 50 min.