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Armas culturais

A pergunta ecoa sem parar. De onde vem a brutal violência brasileira? Como explicar a sua manifestação cotidiana, moeda corrente em vários setores da nossa sociedade? Somos, todos, brutos, mesmo quando escondemos a nossa ferocidade sob uma fina capa de verniz social?

A pergunta brota violenta quando deparamos com a história de Euclides da Cunha (1866-1909). Após a formação técnica e militar, ele se tornou jornalista, consagrou-se como escritor ao ponto de ingressar na Academia Brasileira de Letras, mas… morreu baleado num enfrentamento brutal provocado por ele.

Casado com Anna Emília (1872-1951), ele foi surpreendido pelo caso de amor da mulher com o jovem Dilermando de Assis (1888-1951). Devido às frequentes ausências do marido, ela foi morar com os filhos numa pensão e lá foi iniciado o caso de amor. Ela foi morar com o rapaz e o escritor, inconformado, invadiu a casa do casal na Piedade “para matar ou morrer”.  Ele morreu, a justiça absolveu o jovem, reconhecendo que ele agira em legítima defesa.  

A sociedade, no entanto, muito moralista e provavelmente envolvida pela aura de fama do escritor, investiu na ampliação do círculo de violência, decretou a submissão do jovem ao estigma de “assassino”. A mácula atingiu toda a família, em particular a poeta Dirce de Assis Cavalcanti, filha do casal. Não foi nada fácil conviver com a história sangrenta.

A trama forte fascinou a dramaturga Miriam Halfim que, a partir do fato histórico, concebeu uma peça, Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e Euclides da Cunha, voltada para a reflexão a respeito da violência na nossa sociedade, cartaz no Teatro do Centro Cultural da Justiça Federal. Na trama, uma juíza, obcecada pela história de amor e morte, se torna mediadora entre os arqui-inimigos, como se estivessem num limbo. Um pouco, no fim das contas, o projeto oferece uma história de redenção da figura injustiçada de Dilermando de Assis.

Sob a direção de Ary Coslov, mestre na arte de materializar confrontos humanos decisivos, a montagem traz um elenco de tirar o fôlego – Maria Adélia, Sávio Moll e Marcelo Aquino garantem uma voltagem emocionante para a cena. Longe da reprodução do quadro objetivo dos fatos, o espetáculo busca explorar os fluxos interiores mais densos capazes de gerar, a um só tempo, as ações imediatas e o bloqueio do ato de pensar.

A reflexão cênica, portanto, transcende o caso histórico e permite levar o pensamento para o desenho humano geral da nossa sociedade. Soa curioso constatar que ainda não se tem clareza coletiva, em geral e ampla, a respeito das condições que envolveram a chamada Tragédia da Piedade. Quer dizer – a nossa violência não se resume aos atos de brutalidade física, mas ela acontece também na estrutura das formas de pensamento. O apagamento seria uma ferramenta estratégica para acionar o gatilho da violência. Esta condição torna o teatro um gênero de absoluta necessidade social por aqui.

A partir desta percepção, vale celebrar a conquista recente da Cia Cerne, da cidade de São João de Meriti, que vai inaugurar em setembro a Escola Popular de Teatro da Baixada. Trata-se de um núcleo de criação e de produção de teatro dedicado intensamente à arte. A equipe planeja para o final de outubro a estreia de um novo espetáculo, mas não se limita a este cálculo, pois o fomento às atividades culturais e formativas é permanente.

O coletivo – estruturado ao redor do Instituto Cultural Cerne, criado em 2020 – conseguiu estabelecer parcerias com o poder público e com a sociedade civil. O objetivo é claro: reverter o quadro de aridez cultural historicamente predominante na Baixada Fluminense. Por falta de opção, moradores da área eram obrigados a obter formação fora e, automaticamente, pensar na construção de suas trajetórias artísticas longe da terra natal.  

A situação do teatro na Baixada e nas áreas periféricas do Rio de Janeiro encerra um mistério histórico sério, a ser pesquisado. Por tradição, nos estudos históricos, considera-se que o teatro floresce em meio à vida urbana. As áreas rurais, de ocupação menos concentrada, não aparecem como favoráveis para o florescimento das artes do palco. Já as cidades… elas são o grande berço histórico do teatro.

Contudo, no Rio de Janeiro, alguns episódios merecem estudo. O primeiro caso é o do dramaturgo Antônio José da Silva, o judeu (1705-1739). Ele nasceu na Covanca, em São João de Meriti; provavelmente não sofreu influência do berço para escrever a sua obra, pois foi obrigado a sair do país com 7 anos, por causa das suspeitas da Inquisição a respeito do judaísmo da família. Mas é muito estranho o fato de ter sido sempre ignorado por sua terra de origem…

O segundo fato, já no século XX, diz respeito à intensa difusão do teatro em bairros como Marechal Hermes, Campo Grande, Jardim Botânico, Gávea – quando estes ermos da cidade ainda eram quase rurais ou, no máximo, proletários e fabris. Ainda assim, eles ostentavam a marca de contar com grupos de teatro muito atuantes (amadores, claro) e com teatros! Estão ainda aî os teatros Artur Azevedo e Armando Gonzaga, que não nos deixam mentir. O próprio teatro Tablado, filho do Patronato da Gávea, aponta para este enigma.

Então… a sensação clara é a de que aconteceu um belo retrocesso civilizatório na sociedade carioca e fluminense a partir dos anos 1950/1960. Sob uma espiral acelerada de expansão imobiliária, a partir de então, a nossa cena social mergulhou cada vez mais em violência e se afastou rapidamente da hipótese da presença social da cultura, do teatro, em particular.

Este pensamento não esclarece inteiramente a imensa força da violência na sociedade brasileira. Mas talvez ajude a pensá-la um pouco além da superfïcie. Vale pensar a partir de estudos, pesquisas. O meio mais eficiente para cuidar do problema, contudo, é a difusão do teatro. Quem sabe este caminho ajude a dissolver a atmosfera de liquidação humana que nos envolve?

Foto da divulgação.

Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e Euclides da Cunha

Ficha Técnica

Autora: Miriam Halfim

Direção: Ary Coslov

Atores: Marcelo Aquino, Maria Adélia e Sávio Moll

Cenário: Marcos Flaksman

Figurino: Wanderley Gomes

Iluminação: Aurélio de Simoni

Assessoria de Imprensa: Dobbs Scarpa Assessoria de Comunicação

Assessoria de Mídias Sociais: Rafael Gandra

Produção Executiva: Osni Silva

Fotos: Guga Melgar

Diretor de Produção: Celso Lemos

Serviço 

03 a 27 de agosto. 

Centro Cultural Justiça Federal. 

Av. Rio Branco 241, Centro

Quinta e sexta, às 19 h. Sábado e domingo, às 18h. 

Ingresso:  R$50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia)

12 anos. 70 min.

INSTITUTO CULTURAL CERNE

São João de Meriti

Parceria com SESI-RJ:  oficinas curtas nas áreas de Direção, Caracterização, Figurino/Cenografia e Produção Teatral.

Gratuitas.

Editais para saber mais:

Edital da turma de Formação Livre em Teatro clicando aqui,

Edital de  Dramaturgia clicando aqui.

Mais informações sobre as oficinas:  no Instagram do instituto: @institutoculturalcerne.