A loucura e o sonho
Muita gente sofre de tédio diante da rotina, da mesmice e da tradição. No entanto, quando o novo chega, descarado e com força, muitos arrojados tremem nas bases, as velhas bases carcomidas, afinal. Estão presos a elas, na verdade, e nem sabiam. De repente, se desmancham frágeis, em imprevistas demonstrações de apego aos velhos padrões. Não é fácil ser vanguarda…
A ideia me veio à mente depois de ver uns amigos arrojados, daqueles muito inovadores, nostálgicos do velho normal, esgotados pelo isolamento imposto pela pandemia, revoltados contra as novidades do momento. A um pé da capitulação, impedidos de retomar a vida antiga, os novos conservadores começam a ter vontade de arrancar os cabelos.
Neste jogo reside muito do mistério humano. Vivemos uma rotina na casa da família, partimos para a vida e criamos as nossas próprias rotinas. E a vida segue no seu compasso, obedece a um ritmo convencional, embora ditado pelos nossos desejos e querências. Não vivemos na invencionice, mas na tradição, mesmo sem querer enxergá-la.
Nos livros de História, vemos admirados o desfile de épocas explosivas. Guerras, revoluções, pestes despontam na linha do tempo. Quem estava lá, foi sacudido. E nós estávamos por aqui tranquilos nas poltronas, até que… ganhamos uma pandemia. Tudo virou de cabeça para baixo. Desde a comida, sujeita a infinitas novas variáveis, da compra ao preparo, até o simples ato de querer dar uma voltinha…
Nunca pensei em viver algo deste gênero. Conheci um senhor alemão que viveu um safanão horrível da história – ele, adolescente, saiu de casa para fazer não sei o quê e quando voltava um vizinho o viu e disse: vá. Ele, com a roupa do corpo, nem sequer passou em casa, foi. Saiu andando da Alemanha e nunca mais voltou, nunca mais viu os seus, todos morreram. Ele veio parar no Brasil.
Gosto desta história porque ela amplia minha visão a respeito da possibilidade humana. De repente, acontece um corte radical e você consegue tecer uma forma humana de lidar com o inusitado absoluto. Nosso problema, convenhamos, com exceção daqueles que morreram ou, adoecidos, ficaram com sequelas pesadas, é um nada, diante deste caminhante forçado a atravessar o mundo.
Gosto de lembrar também do extenso rol de malucos da minha geração. Não sei porquê razão, atraí sempre a simpatia de malucos. Todos eles tentaram me aliciar para as suas hostes, fracassaram, sempre me chamaram de burguesinha, mas persistiram com alguma simpatia diante da minha pessoa.
Não sei qual o grupo que apareceu primeiro, os bichos-grilos naturebas ou os terroristas. Os terroristas ficaram lá para trás, nos anos setenta, isolados na década – ou só os conheci naquele momento. Insistiam na ideia de que a única saída para a vida estava nas bombas, armas e guerrilhas e às vezes quase se auto-explodiam diante da minha irredutível vocação pacífica. Detesto armas.
Já os bichos-grilos atravessam as décadas, vão mudando de astral, plataforma ou ideário e vão ficando. Com eles aprendi bastante, ainda que nunca tenha me tornado uma seguidora das esquisitices da hora. No entanto, ainda que na categoria de careta simpática, alguns temas me ganharam, como a ecologia, a agricultura mais natural, algum vegetarianismo, a visão crítica do consumismo, a medicina alternativa.
Como os tiros e bombas dos terroristas, os bichos-grilos também apresentam facetas assustadoras. Os primeiros a aparecer, os hippies, chegavam a ser contra a energia elétrica, elegeram como ideal máximo a vida alternativa em comunidades, uma realidade que, para as mulheres, não funciona muito como libertadora – afinal, foram as máquinas (e a energia elétrica) que reduziram radicalmente o fardo feminino…
A lista de matizes e famílias de bichos-grilos se perde em múltiplas variações, como se fosse uma cantiga de lavra rica: segue a inesgotável potência humana para inventar e reinventar. Afinal, do caos, para sobreviver, sempre inventamos uma ordem, necessidade da vida talvez incompreensível para muitos vanguardeiros. A vida se faz da rotina e de rotinas. E vemos esta realidade dentro da pandemia: íamos abrir agorinha os teatros, o bom senso adiou. A grande surpresa é que, se fixarmos a atenção nos cartazes, podemos perceber que um teatro novo surgiu e está ao nosso dispor.
Uma rotina teatral nova está consolidada. Basta acessar um aplicativo, o Sympla, e constatar – atualmente, são 33 ofertas de espetáculos teatrais. Basta examinar cada cartaz, dimensionar o sentido do que se propõe, comprar o ingresso e… ir ao teatro. A nova ida ao teatro dispensa make-up elaborado e figurino cuidado. Nem a máscara é necessária. O ritual de agora transpira candura. A poltrona da sua casa é o sofá da sala de espetáculos.
Depois da compra, basta chegar diante do computador, na data e no horário marcados e, ao sinal dos artistas, entrar na sala. Em geral não há participação – o seu microfone e o seu vídeo devem ficar desligados. Como o espetáculo acontece diante da plateia, não se pode entrar atrasado na sala.
Isto significa que criamos uma rotina nova. Há um novo ator, teatral, mas ele se obriga a ter um desempenho mais técnico, ele precisa estar “mais consciente” do processo de representação. Não é a mesma coisa que o cinema ou a TV. Nem é uma subforma suja, inferior, destes dois. Trata-se de uma forma teatral nova, sob invenção, com desafios novos para a potência expressiva.
Ao lado deste tipo de representação, ao vivo, nova, sempre revestida de algum grau de distanciamento, nem que seja um mínimo, posto que ela é muito dependente do processo técnico simultâneo, surgiram também transmissões gravadas, de espetáculos já encenados. Não é novidade. São documentos importantes da arte do ator, mas são apenas teatro gravado. A qualidade das gravações depende da grandeza da produção e por vezes se torna notável. Mas aqui não acontece uma mudança, são atores convencionais.
Vale então pensar que atores são estes de agora – que arte é esta? Ela mudou? Há um ator de teatro, pois ele está impregnado de teatralidade e engajado num projeto de teatro, comprometido com uma expressão da antiga arte, apenas sob uma nova rotina? A mudança é apenas na rotina? Ou vai além, com um aedo antigo redescoberto, novo senhor do verbo e do corpo dos atores? Afinal, o ator é filho do tempo?
No fundo, a beleza deste processo arrebata. Através dos atores, conversamos com nós mesmos, conversamos com o nosso tempo, construímos aquilo que para nós é a civilização. Portanto, há uma aura de milagre, mas de um milagre da invenção humana, nestes acontecimentos de arte propostos agora, para dialogarmos com os nossos seres atropelados pelo inusitado, pelo extemporâneo.
Não precisamos fugir com a roupa do corpo, não teremos que nos abrigar em trincheiras e mirar outros humanos qualificados como inimigos, não caminharemos para as florestas e selvas em busca de renovação – a História apenas nos obrigou a ficar em casa, diante da ruína das nossas cidades, dos antigos esquemas de trabalho e de produção, à mercê da criação de novas rotinas para sobreviver.
Às vezes parece que vivemos uma loucura coletiva, uma dor cutuca insinuando que perdemos os sonhos. Mas estamos vivos, retornaremos – e o teatro é quem nos diz. Pois ele nos fala que, mesmo sob este impensável confinamento, somos humanidade.
Em lugar do tédio ou da revolta, talvez o ideal seja pensar estas instabilidades, a notável flutuação que faz a carne da História, as possibilidades da loucura, as espessuras dos sonhos. Talvez pudéssemos parafrasear o grupo Armazém Companhia de Teatro e sentenciar: parece loucura, mas há método.
Exatamente com este nome, Parece loucura, mas há método, a companhia está em cartaz online, com uma peça moldada no novo modo de ser teatro. A proposta é imperdível – simplesmente o grupo tradicional resolveu dar um nó na hipótese da cena. Se não há teatro, teatro é o que há de ser, digamos.
A inteligência da equipe – definitivamente um dos mais importantes coletivos dedicados à arte no país – fez com que chegassem a um formato teatral específico para a situação virtual. Trata-se de uma representação, com um elenco de ouro da cena teatral contemporânea, inspirada no universo shakespeariano, mas que reconhece a identidade específica do aplicativo usado, Zoom. Em uma frase: não deixe de ver, a proposta é imperdível. Eu lá estarei sábado.
A equipe, liderada por Paulo de Moraes, segue um roteiro assinado pelo diretor e por Jopa Moraes. A cena reúne num tablado digital 9 personagens, personalidades shakespearianas que se defrontam numa arena de ideias, sob a regência de um Mestre de Cerimônias. Após os embates, embora sem participação direta, cada espectador pode votar para escolher quem sai e quem fica, num diálogo entre o jogo teatral e o jogo virtual. Interessante, não?
Mas há ainda mais novidades online, uma arena vasta aberta à criação. Uma outra experiência tem origem em São Paulo, obra de uma companhia dotada também de forte tradição teatral, Os Satyros. A peça Todos os Sonhos do Mundo, um grande sucesso de 2019, foi revista e reestruturada para esta nova temporada via streaming.
Sob a direção de Rodolfo Garcia Vázquez, o ator Ivam Cabral, intérprete de notável intensidade e agudo sentido plástico da expressão, apresenta um texto de autoficção cuja dramaturgia reúne algumas vivências pessoais, elementos do livro de Andrew Solomon, O demônio do meio-dia – uma anatomia da depressão, e muita poesia, de vários autores, tais como Drummond, Clarice, Fernando Pessoa, Cecília Meirelles.
A nova versão explora diretamente as possibilidades oferecidas pela plataforma virtual utilizada – as múltiplas janelas, as condições de luz e de movimento. A chave da interpretação é a comunicação direta. A partir do tom de relato íntimo, o ator se dirige ao público como se fosse um velho amigo que conta a história ficcionada de sua vida, à qual incorpora a trama densa de textos poéticos. A ideia é a de situar o quão a arte funciona para diluir a depressão, uma das maiores doenças geradas pelo confinamento na pandemia.
Portanto, não pense que a sua nova rotina se tornou uma forma de vida avessa ao teatro – esta situação é da ordem do impensável. Para acelerar as ideias e mexer com a placidez do coração, o coronavírus está trazendo um teatro novo. Ou um teatro renovado.
Vale perguntar o que se esconde por trás deste teatro online, que tantos vanguardeiros, subitamente amantes das velhas formas da tradição, estão se apressando em repudiar, mesmo sem ver. O que está aí é a pura dinâmica da vida, a liberdade extrema de ser, a reunião potente e livre de sentimentos e ideias, o mergulho abissal no humano. No fundo, é apenas a lição simples que o teatro se esforça em passar adiante, ao longo de séculos e séculos: a verdadeira rotina inquieta do teatro ser.
Parece Loucura, Mas há Método.
Ficha técnica
(Foto: divulgação Armazém Cia de Teatro)
A partir de personagens da obra de William Shakespeare
Roteiro: Paulo de Moraes e Jopa Moraes
Direção: Paulo de Moraes
Elenco:
Charles Fricks (Iago)
Isabel Pacheco (Coriolano)
Jopa Moraes (Tímon)
Kelzy Ecard (Faulconbridge)
Liliana de Castro (Pórcia)
Luis Lobianco (Falstaff)
Marcos Martins (Bobo)
Patrícia Selonk (Ricardo II)
Sérgio Machado (Mestre de Cerimônias)
Vilma Melo (Henrique V)
Música: Ricco Viana
Design Gráfico: Jopa Moraes
Colaborações artísticas: Carol Lobato e Lúcio Zandonadi
Produção: Armazém Companhia de Teatro
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Serviço
Estreia: 17 de julho, sexta-feira, 20 horas
Temporada: sextas e sábados, às 20 horas; domingos, às 18 horas.
Os ingressos são vendidos pela Sympla: https://www.sympla.com.br/armazemciadeteatro
O espetáculo é assistido online pelo Zoom.
Ingressos: R$ 10 e R$ 20
Ingressos à venda a partir de sexta-feira, 10 de julho
Duração: 70 minutos
Classificação: 12 anos
Atendimento à imprensa
Ney Motta, assessor de imprensa
contemporânea comunicação
Todos os Sonhos do Mundo
Ficha técnica
Concepção: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Atuação: Ivam Cabral
Serviço
ESTREIA: dia 26 de julho (domingo), às 20h
HORÁRIOS: domingos às 20h e segundas às 21h / DURAÇÃO: 60 min / INGRESSOS: R$20, R$10 e gratuito (para quem não puder pagar) / ONDE COMPRAR E ASSISTIR: Sympla / Espaço Digital dos Satyros – / TEMPORADA: até 30 de agosto
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany