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Um teatro salvador

Era uma vez um teatro encantado. Não, não era um teatro no bairro do Encantado – até onde se sabe, nunca existiu um teatro por lá. O encantado aqui é bem outro. O foco recai sobre uma arte dotada de encantamento, capaz de enovelar as cenas, as almas e os dias.

Era um teatro encantado por uma razão simples: estava por toda a parte, ainda que alguns bairros não tivessem tido a honra de contar com uma casa de espetáculos. Mas esta falta não chegava a ser um problema: bastava ir logo por perto. E a mágica acontecia. As partes envolvidas eram mais abstratas do que a pura geografia…

Sim, aconteceu aqui no Rio de Janeiro. O coração teatral palpitante era o Centro. Contudo, bairros tais como Gávea, Jardim Botânico, Botafogo, Glória, Riachuelo, Méier, Madureira, Tijuca… abrigaram casas bem estimadas. O teatro vivia grudado na vida das pessoas, nem mesmo as interdições do calendário relegavam a velha arte ao esquecimento. O ponto é este: o palco dialogava com o cotidiano.

A constatação salta ágil como um Arlequim quando lemos jornais velhos. De certa forma, a coisa surgiu como fruto do tempo, uma grande época histórica – quando consultamos jornais franceses, por exemplo, da mesma época, vemos que a coqueluche teatral grassava por lá também, ainda que fosse bem mais forte. Muito mais forte!

O mistério, no entanto, se impõe sem réplica: por lá, se a grande febre aliviou, ela mantém algo do antigo vigor. Ainda há teatro para todos os lados. A população nativa (e até os turistas!) não sabe viver sem teatro.  Enquanto isso, por aqui… a arte se tornou ocupação de uma minoria.  Os edifícios teatrais não param de sumir. As grandes montagens, com textos de fôlego, se tornaram acontecimentos raros. A maioria das peças em cartaz se estrutura ao redor de dialetos, preocupações “bairristas” no sentido restrito da palavra. Para muita gente boa, é um crime hediondo, o diálogo da cena com a gente comum (bom, também era a opinião dos esnobes acadêmicos do século XIX…).

É verdade que havia perigo, riscos, oscilações. A vida teatral estava longe do mar de rosas, apesar das flores jogadas na cena e das belas coroas de louro, sem falar nos braceletes e anéis preciosos. Datas como o carnaval podiam conter ameaças assustadoras, pois baniam a arte da cena e tomavam as salas com os bailes festivos.

Por exemplo: um anúncio discreto no jornal A Noite, nas vésperas do carnaval de 1945, um carnaval especialmente tenso graças à visível proximidade do fim da guerra, comunicava o fechamento carnavalesco dos teatros e a agenda de bailes. Aliás, o próprio jornal saiu animadinho no domingo e sumiu das bancas até a Quarta-feira de Cinzas!…

O recorte traz um dado eloquente. A rigor, um fato curioso marcava o ritmo da vida teatral – o diálogo franco com a vida social. Automático! O teatro se ocupava da vida ao redor, cuidava de temas de interesse urbano, histórico e social. Ainda no ano de 1945, passado o carnaval, reanimada a temporada de peças, um anúncio curioso já sinalizava para a Páscoa –

O plural no final do parágrafo não foi erro do redator. O texto da coluna, aqui recortado, composto por notas noticiando as estreias do momento, buscava destacar exatamente a sintonia entre os cartazes anunciados e os temas do presente imediato, para a alegria do frequentador dos teatros. Havia, afinal, um diálogo decidido entre as partes.

Pois é. Talvez este link falte ao teatro do nosso tempo: a vontade da cena de falar para a sociedade, a vontade de falar mobilizada diretamente por temas e questões objetivas, atraentes para o grande público. Quer dizer, dialogar, em lugar de sustentar falas restritas, didáticas, autoritárias. Será?  

Uma estreia da retomada teatral pós-carnaval parece surgir preocupada com esta aproximação. Salvador, Anoiteceu e é Carnaval, de Marcéli Torquato, novo cartaz do Teatro II do CCBB RJ, sob a direção de Vilma Melo, oferece sob uma roupagem de fábula poética intensa a reflexão a respeito dos dias tensos, desumanos, humanamente desérticos dominantes na sociedade atual.

Salvador é um poeta apaixonado, lírico, músico, que deseja casar-se com a sua namorada, uma moça incapaz de considerar a arte como forma de vida. No dia do casamento, a noiva sumiu; o amante desesperado acaba indo em sua busca numa terra árida, Ermo, um lugar no qual a vida acontece como pura engrenagem mecânica.

A idealização da peça partiu do ator Paulo Verlings, encarregado do papel título, à frente de um elenco multirracial preocupado em materializar a vida rude de Ermo, sob um fluxo musical impactante, ao vivo. Ao lado da musicalidade estagnada da cidade devastada, a peça traz o ritmo frenético de sucessos da música baiana.

De certa forma, a proposta pretende demonstrar a potência da arte para reinventar a vida. Tanto é assim que a peça foi pensada em duas versões: uma para o horário adulto, à noite, outra para ser um programa de família, no fim de semana. Uma grande ideia. Convenhamos – tem tudo para se tornar um sucesso delicioso, estrondoso como alguns que sacudiam os velhos teatros, um programa capaz de conquistar a sensibilidade nossa massacrada de cada dia.

Então, a marcha dos dias segue: acabou o carnaval, mas ainda se pode cantar alguma canção. E a cantoria pode surpreender a todos, quando surge de uma teatralidade inclinada a dialogar a respeito dos desafios atuais da vida. Bela esperança.

Será o aceno de um teatro encantado, de volta? Tomara! Provavelmente um renascer teatral ajudará a reinventar a qualidade da vida no sofrido Rio de Janeiro, esta estimada fornalha de São Sebastião. O nome foi usado várias vezes por Artur Azevedo: um homem de teatro que dominava a forma ideal para tecer o palco, as almas e os dias, dentro desta nossa bela fornalha tropical.

Ficha técnica

Idealização: Paulo Verlings

Dramaturgia: Marcéli Torquato

Supervisão Dramatúrgica: Jô Bilac

Direção: Vilma Melo

Direção Musical: Marcelo Rezende

Direção de Movimento: Valéria Monã

Elenco/personagens: Paulo Verlings (Salvador), Aline Carrocino (Ioiô), Carolina Pismel (Ceo), Ester Dias (Margarete), Jorge Florêncio (Silva/Carlinhos), Nando Brandão (Gerente), Patricia Elizardo (Silva/Madà) e Udylê Procópio (Xuê)

Músicos: Guilherme de Menezes (guitarrista e violonista), João Marcos Freitas (baterista), Leandro Vasques (baixista) e Raoní da Silva (percussionista)

Sound Design: Rossini Maltoni

Iluminação: Anderson Ratto

Cenografia: Mina Quental

Cenotecnia: André Salles

Figurino: Karen Brusttolin

Visagismo: Rafael Fernandez

Preparação Vocal: Germana Guilhermme

Assessoria de Imprensa: Ney Motta

Programação Visual: André Senna

Fotos de Divulgação: Paula Kossatz

Redes Sociais: Mariã Braga

Filmmakers: Jony Luz, Marcelo Ribeiro e Sâmia de Castro Hatem

Edição: Jony Luz

Assistência de Direção: Fernanda Dias

Assistência de Direção Musical: Guilherme de Menezes

Assistência de cenografia: Marieta Mendonça e Mariana Castro

Assistência de Visagismo: Loeni Mazzei

Adereços: Claudia Taylor e Franz Pinto

Adereço de cabeça: Flávio Souza

Costura: Vera Costa

Design de sapatos: Gomes

Operação de luz: Poliana Pinheiro

Operação de som: Jackson Marques e Branco Ferreira

Microfonista: Tamy Nobre

Contrarregragem: Bruno Oliveira

Camareira: Iraci Costa

Marketing Cultural: Bruno Paiva e Carolina Taulois

Coordenação administrativo-financeira: Patrícia Basílio

Contabilidade: Darly Alves – Alac Contabilidade

Produção Executiva: Dalila Tardelli

Direção de Produção: Ártemis e Paulo Verlings

Produção: Outrar Produções Artísticas EIRELI

Patrocínio: Banco do Brasil

Realização: Centro Cultural Banco do Brasil

Serviço

Temporada: 2 de março até 2 de abril de 2023.

Versão para público a partir de 14 anos: Quarta à sábado, às 19h30, com duração de 90 minutos.

Versão para toda família, com classificação livre: Sábados e domingos, às 16h, com duração de 60 minutos.

Local: Centro Cultural Banco do Brasil – Teatro II

Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro.

Informações: 21 3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br

Valor do ingresso: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia)

Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada.

Ingressos adquiridos na bilheteria do CCBB ou antecipadamente pelo site bb.com.br/cultura

Funcionamento do CCBB Rio: segundas, quartas, quintas, sextas e sábados, das 9h às 21h; domingos, das 9h às 20h (fecha às terças).

Privilegiando acessibilidade do público, além dos lugares para cadeirantes, durante a temporada haverá uma sessão com intérprete de Libras.