Crítica de Se Essa Lua Fose Minha
Mula sem cabeça ou mulher do padre?? Nãooo!!!
Ela parece curta e rápida. Na verdade, é infinita. Pois ela vai ficar para sempre dentro de cada um de nós, não importa o que tenha sido a nossa infância, boa ou má, pobre ou rica, alegre ou triste. Quando somos crianças, sempre somos poetas, olhos maravilhados diante da descoberta do mundo. E esta condição implanta um veio incontrolável de poesia dentro de nós, que a vida sufoca ou contém.
Maltratada, a infância finge que acaba, mas sobrevive dentro de cada um, à espreita de um momento oportuno para aflorar. Para quê? Para fazer a vítima, tomada de assalto, feliz. Pois ela eclode como um fluxo límpido de alegria de viver, curiosidade a respeito do mundo, disposição plena para amar, vida miúda em forma de poesia.
Você não acredita? Duvida? Quer sentir esta força inebriante de existir livre, puro impulso de vida, outra vez? Então, corra até o Teatro Gláucio Gil para ter o prazer de ficar feliz consigo, entregue à sua criança interior. Corra de verdade, a temporada está no fim.
Vá ver o grande sucesso popular do teatro de outono no Rio, o delicioso musical Se Essa Lua Fosse Minha, de Elton Towersey e Victor Rocha. Confie – a peça é tão boa que se transformou em sucesso popular instantâneo. Foi apadrinhada por um poderoso boca-a-boca. Também, pudera, quando a apresentação acaba, a plateia sai flutuando para a rua numa onda de pura felicidade.
O título entrega um pouco a natureza do projeto idealizado por Vitor Rocha, mais um novo gênio do musical em acelerado início de carreira. O ponto de partida foi pesquisar as músicas e os jogos infantis, na infância da vida e do teatro. Assim, uma teia encantadora de referências, uma trama que absorve muito das brincadeiras das crianças, passando por Shakespeare e chegando a West Side Story, estrutura o libreto do espetáculo. O garoto é um acontecimento, acredite, não é mentirinha, nem história da Carochinha.
Mas, pique um dois, três, que ninguém se engane: nada é raso ou simples nesta proposta. A bela surpresa, para quem ama teatro e, sobretudo, adora teatro musical, é a inventividade afiada que reina por todo o projeto. Na elaboração do libreto e na criação das letras, neste caso em parceria com Elton Towersey, Vitor Rocha revela uma maestria técnica notável, um domínio cristalino das exigências fundamentais impostas pelo gênero. Música e ação dialogam intensamente, desenham as curvas de emoção e definem as linhas dos personagens.
Em paralelo, a sua habilidade para criar, incorporar ou citar referências poéticas capazes de remexer a sensibilidade coletiva é deslumbrante. Imagens e trechos de cantigas de roda, motes de brincadeiras de quintal e de calçada, ditados populares associados às vivências infantis, faíscas de peças de Shakespeare e até a citação da Ismália, do nobre Alphonsus de Guimaraens, assinam o ponto na cena.
A cena, aliás, com direção de Victoria Ariante, coreografia de Alberto Venceslau, luz de Fan Barros e direção musical de Elton Towersey, é o que se poderia chamar de ciranda de encantamento, um acerto só. A magia começa no aquecimento, com o elenco brincando em cena, como se estivesse numa rua ou num espaço bom para brincar sem medo de ser feliz. Na roda, eles se tornam corpos musicais. Alegres, despojados, concentrados e divertidos, eles ganham ritmo e incorporam uma impressionante aura de energia criativa.
Com o início da ação, eles contam a saga de duas comunidades diferentes. De um lado, viajantes que se lançam ao mar em busca de uma nova terra para erguer o próprio futuro, do outro os habitantes de uma ilha, nem um pouco interessados em receber os recém-chegados. Um romance entre dois jovens dos lados rivais funcionará como ferramenta poética para desvendar o absurdo dos preconceitos e da falta de espaço para o amor.
Destaque-se: tudo na cena tem a marca de uma inventividade desenfreada, lúdica como a forma de viver infantil ideal. A cenografia, de Victoria Ariante, Diego Rodda e João Bio, sobressai como exemplo – a combinação de pequenos elementos, formas geométricas simples e desenhos-rabiscos ao vivo, de giz, cria um mundo imaginário palpitante. Outro tanto se poderia dizer da coreografia, com formas saltitantes que bailam do musical aos jogos corporais da criançada.
Consequentemente, há uma unidade louvável nos desempenhos. Ainda que a montagem não tenha a assinatura de um grupo, a força expressiva em jogo lembra muito a garra dos coletivos jovens. A fluência teatral chega a um ponto que as hesitações eventuais não afetam a dinâmica geral.
Neste contexto, o mais certo seria não jogar luz sobre as individualidades. Mas a decisão seria injusta. Importa, para uma definição mais precisa do trabalho, destacar momentos de teatralidade intensa, coisas para não esquecer. Um grande exemplo é a etérea presença de Luci Salutes. Linda, dotada de uma bela voz, intensa expressividade corporal e facial, ela desenha uma mocinha de romance irresistível, pura entrega ao ritmo do coração, como manda a cartilha do texto.
Ao seu lado, o seu par romântico, defendido por Arthur Berges, dá o tom galante imprescindível para a ingênua acontecer; ele se projeta como um príncipe perfeito, do porte ao jogo de sedução, concilia ímpeto romanesco e obstinação na medida exata para tornar plausível um final de simbolismo ousado.
Thiago Marinho, no criado Floripo, e Vitor Rocha, no Pirulito, se destacam na linha dos confidentes sofisticados, capazes de sustentar tramas paralelas fortes, ao lado do mero apoio ao casal romântico. Priscila Araújo empresta um brilho especial às funções de narração e de conselheira. Marisol Marcondes, além do ótimo preparo físico, incorpora nos trejeitos inusitados um colorido divertido à função de vilã – ainda que em boa parte seja uma vilã involuntária.
E mais não se diga. E assim acabou-se a história. Vai aqui apenas um aperitivo, umas letras em forma de biotônico, para estimular o apetite teatral de quem anda por aí em busca de razões para ser feliz como uma criança de quintal. Pois o melhor de tudo não é ter a listagem das grandezas da cena, mas sim ir até lá, ver com os próprios olhos um elenco precioso, vestido de poesia até a alma, contar a história esfuziante que a equipe criou. Mais do que tudo, eles sabem que estão escrevendo a história do teatro musical brasileiro de corpo, cabeça e raiz.
Esta certeza move o projeto – de certa maneira, trata-se de usar as maravilhas lúdicas e poéticas da infância da vida e do palco para fazer o teatro musical brasileiro ingressar de vez numa fase de existência adulta. Pois, então, vale insistir, faça a sua parte: não vire mula sem cabeça ou mulher do padre. Vá ao teatro, botar o seu espírito para cantar a entrega ao amor e às grandezas maiores da vida, o desejo de sempre de todos os melhores musicais!
SE ESSA LUA FOSSE MINHA
Serviço:
Temporada: 06/05/2023 – 28/05/2023
Horário: sáb 20h, dom 20h
Duração: 140 minutos
Ingresso: R$50 (inteira) / R$25 (meia)
Teatro:
Teatro
Glaucio Gill
Praça Cardeal Arcoverde, s/n, Copacabana, Rio de Janeiro/RJ – 22040 030
Classificação indicativa: não apropriado para menores de 12 anos
Compra de INGRESSOS – FUNARJ on line
Ficha Técnica:
Idealização e Texto de Vitor Rocha
Letras de Elton Towersey e Vitor Rocha
Direção de Victoria Ariante
Músicas, Direção Musical e Arranjos de Elton Towersey
Direção de Movimento e Coreografia de Alberto Venceslau
Preparação de Elenco de Lenita Ponce
Elenco:
Luci Salutes como Leila
Arthur Berges como Iago
Priscila Araújo como Anciã/Madrinha
Marisol Marcondes como Belisa Passaláqua
Thiago Marinho como Florípio
Vitor Rocha como Pirulito
Daniel Haidar como Levi
Edmundo Vitor como Delfim
Leonam Moraes como Capitão R. E. Batesquião
Larissa Carneiro como Sra. Batesquião
Alberto Venceslau como Cirandeiro Ó
Kiko do Valle como Chefe dos Guerreiros
Desenho de Luz de Fran Barros
Operação de Luz de Marina Gatti
Desenho de Som de Paulo Altafim (Audio S.A.)
Operação de Som e Trilha: Thiago Venturi
Realização: Encanto Artístico e Gaulia Teatro
Produção Geral: Lucas Drummond, Luiza Porto e Vitor Rocha
Produção Executiva: Victor Miranda
Assistente de produção: Ana Paula Marinho
Fotografia e Redes Sociais: Victor Miranda
Arte poster: Marina Voigt
Patrocínio: Solo Agência
Assessoria de Imprensa: MercadoCom (Leonardo Minardi e Ribamar Filho)