Ano Novo? Teatro novo?
Muita gente pergunta: como o teatro acontece, quando ele acontece? O que faz uma sociedade gostar ou não desta velha arte? Quais as forças sociais e sensíveis que explicam o acontecimento do teatro? Perguntas difíceis. Respostas difíceis. Podemos enveredar pelas perguntas e desejar um ano novo de teatro sesquipedal, uma espécie de grito do Ipiranga cênico?
Ora, seja independente, faça os seus votos de ano novo. E debata teatro. De saída, vale destacar a liberdade das perguntas. Elas supõem que o teatro, afinal, pode ou não acontecer. Ele não é obrigatório? No nosso tempo, as sociedades podem existir sem teatro? Ele seria descartável? Ou seria um lugar de inquietação social, um laboratório – ao vivo – de experiências a respeito da vida e do ato de viver?
Mas, mais exatamente, vale insistir, o que é teatro hoje? O ano começa e ainda não sabemos ao certo o teatro que ele nos trará. A pandemia da covid 19 enfraqueceu bastante o mercado teatral carioca, que já sofria com inúmeros pontos frágeis. O fim do ano trouxe a retomada, a classe teatral se desdobrando para recuperar a força de produção da arte.
E na mais absoluta solidão, com o apoio de alguns agentes culturais consolidados, os parceiros de sempre. O sistema S, os centros culturais dos grandes bancos, alguns nobres teatros empenhados sempre no estímulo à produção… Algo mais? Nada, não? Estes velhos parceiros demonstraram a força de seu compromisso com o teatro. É pouco, para um país continental, com uma população ávida por cultura.
A crise profunda, marcada por um questionamento denso a respeito da própria definição de humano e de humanidade, deveria fazer surgir uma avalanche de propostas e de iniciativas capazes de criar ou burilar valores próprios para o momento, essenciais. Não deveríamos bailar no vazio.
Esta é a primeira constatação brutal, arrasadora: a crise, monumental, não fez surgir uma nova visão política oficial a respeito da arte, que honrasse a sua importância para a dinâmica social do presente. É como se os governantes acreditassem que a população é constituída por super-heróis ou robôs, espécie de gente-coisa capaz de receber, aparar e absorver todo e qualquer impacto. Alguém precisa avisá-los: não somos isto. A conta vai chegar.
Felizmente, distante da insipidez oficial, a cena não é feita por indiferentes nem autômatos. Apesar da precariedade de recursos e dos limitados investimentos, muita gente consegue enxergar a dimensão do drama social e propor belas saídas.
Um lugar de urgência para a crise e para o teatro em geral reside bem ali, na natureza específica da arte: mais do que nunca é preciso definir o que é teatro, para que se possa pensar a ação teatral necessária, na sua melhor densidade. Uma pergunta muito atual determina a arquitetura total do pensamento.
Performance é teatro? Ou a performance é uma forma diferenciada de arte, um acontecimento estético? Se a performance acontece como apresentação do eu (mesmo quando envolve muitas pessoas), ela não deve ser classificada como teatro, arte que se supõe como expressão do coletivo?
Das indagações surge o específico teatral e, no seu centro, o tema da dramaturgia. Sim, este debate é profundamente teatral – não interessa nem mesmo ao campo da performance. A rigor, se o teatro é a arte do ator oferecida a um público, expressão do coletivo, o dramaturgo está implícito na definição, pois o ator é verbo, palavra, é movido por palavras.
É curioso destacar: mesmo no teatro do primeiro ator, a presença do dramaturgo se impunha, no século XVIII e especialmente no século XIX. No teatro moderno, todos os diretores-encenadores de destaque reconheciam, com ênfase, a natureza fundante do autor para a encenação. A encenação se fazia como forma de materialização cênica da obra do poeta.
Pois este é um lugar de urgência do teatro da crise: qual a dramaturgia que nos dará alento para convivermos com este rascante mundo novo? Será que a tradição pode nos servir de guia, em algum grau? Pois então, que venha o ano novo, há um enorme espaço para a tradição em 2022. Duvida? Nada pode ser tão fácil quanto argumentar a favor deste raciocínio.
De imediato, uma constatação rigorosa: para celebrar o lado do espírito profundo da nossa natureza nacional, este deve ser um ano de culto a Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673). Sim, Molière, pois nós somos cômicos desde o fundo da alma, apesar de toda a imensa dor que nos rodeia. Ele fará 400 anos de nascimento este ano – uma bela história de comando dos humores das gentes.
E qual foi a sua aventura por aqui? Exatamente Molière foi o autor que inspirou Antônio José da Silva (1705-1739), a barraca do Teles, Martins Pena (1815-1848), Artur Azevedo (1855- 1908), Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981) – para ficarmos só nas linhas gerais da cadeia nacional de humor inspirada por ele.
Neste ano, como voto de ano novo, eu pediria aos deuses do teatro que inspirassem Fernanda Montenegro para dirigir jovens atores de talento numa leitura dramática de O Médico Volante, de Molière, no Teatro Raimundo Magalhaes Jr.. Sim, seria também uma ode cênica ao Teatro dos Sete…
Contudo, como bem sabemos todos, desejo é um desgoverno, não tem limite. E eu iria adiante, desenfreada, claro. Afinal, este também será o ano de ingresso da atriz na Academia Brasileira de Letras. Enquanto ela se torna imortal, um jovem possante teatro de ideias carioca se tornará debutante, fará quinze anos. Neste caso, eu rogaria aos pés do altar da arte que um grande projeto de montagem envolvesse a atriz, o esfuziante Teatro Poeira de Marieta Severo e Andréa Beltrão e um outro alicerce profundo da arte nacional, Jorge Andrade (1922-1984).
Sim, será o centenário de nascimento do monumental dramaturgo paulista. Que tal uma remontagem comemorativa de A Moratória? Nos meus sonhos, eu indicaria a sensacional Julia Stockler para o papel que lançou para o estrelato Fernanda Montenegro, na Companhia Maria Della Costa, na montagem de estreia do texto, dirigida por Gianni Ratto.
Ao lado dos sonhos, contudo e ainda bem, existem os fatos. Assim, logo agora no dia 7 o Teatro Poeira vai inaugurar uma exposição dedicada aos quinze anos da casa. Importante conferir a materialidade de uma história tão rica, tão importante para o Rio, neste momento em que as bússolas se tornam essenciais, para definir rumos para a arte.
Pois logo ali perto, um evento de alcance histórico também marcará o mapa de busca de ações para fortalecer a cena. No Solar de Botafogo, na sexta-feira, serão conhecidos os vencedores do Concurso Nacional de Dramaturgia Flavio Migliaccio, organizado pelo dramaturgo e jornalista Francis Ivanovich. Além de homenagear a grandeza teatral notável de Migliaccio, um artista teatral múltiplo, o projeto, que deveria ser copiado por toda a parte, amplia o espaço da escrita dramatúrgica de maneira exemplar. Pois haverá a premiação, a publicação dos textos das peças em livros e, com estreia no mesmo dia, a montagem da obra vencedora, Trivia, de Danilo Salomão.
Isto quer dizer algo simples: não economizem nos seus votos e desejos de ano novo, não desanimem diante dos ventos contrários, ousem propor os seus maiores projetos, pois o ano promete. Embarquem no teatro.
Se não fosse assim, não teríamos como grande anúncio de celebração do verão o retorno ao palco, no belíssimo Teatro Riachuelo, do primoroso espetáculo A Cor Púrpura, de Marsha Norman. Trata-se de um texto histórico, muito bem transposto para a cena, com uma versão brasileira particularmente feliz, assinada por Artur Xexeo.
O espetáculo é programa obrigatório para quem vive de fato a nossa época, sintoniza de verdade com a marcha de transformações decisivas da sociedade destes tempos. Um dos grandes destaques do espetáculo – são inúmeros – é a direção inteligente, assinada por Tadeu Aguiar, hábil tanto na direção dos atores quanto no cuidadoso equilíbrio da alquimia do palco. Música, cenas dramáticas, coreografias, efeitos de cena, tudo, enfim, acontece sob uma medida requintada, como se uma corda sensível vibrante fosse tensionada para envolver palco e plateia. Sim, é aquele espetáculo para chorar, chorar lágrimas libertadoras, atuais e ancestrais.
Em cena, sob a temática da conquista social do protagonismo negro e feminino, a montagem apresenta um debate fundamental para a sociedade brasileira. Além do viés étnico e de gênero, um mundo muito nosso de sofrimento aterrador, se projeta a grande chaga da alma brasileira, o calvário do indivíduo. Desvela-se, nesta nossa sociedade de castas, o sofrido espaço reservado ao empreendedorismo. Em resumo, a partir da temática afro-americana, o que a cena nos leva a sentir é como é difícil ser gente no Brasil, um país que ainda conserva uma conexão direta com a escravidão. Mas não há derrotismo nem pessimismo: a cena investe fundo no poder de superação.
Como se não bastasse o oferecimento desta sensacional oportunidade para iluminar a alma, A Cor Púrpura, bem resolvida na luz, na cenografia e nos figurinos, lançou para o estrelato a jovem Letícia Soares, dotada de refinado carisma e belíssima voz. No elenco, alguns desempenhos impactantes como os construídos por Lilian Valeska e Flavia Santana, ao lado da maturidade profissional de Alan Rocha num requintado papel de coadjuvante cômico, comprovam como é bom ter teatro ao alcance dos olhos e ao lado do coração. Sim, presente de ano novo. Não dá para perder.
Isto significa chegar a uma conclusão importante: não pare de sonhar. Acredite nos seus sonhos e não economize nos votos de ano novo. E sonhe com teatro. Pois, para a crise, um dos remédios essenciais é o teatro. Consequentemente, para a crise do teatro, a solução é fazer teatro, mais teatro. Se ao fim e ao cabo ainda não soubermos dizer que coisa afinal é esta arte, ao menos ela nos ensinará a perceber um tanto mais que coisa, de verdade, é esta delicadeza chamada gente, em particular a gente que o destino fez nascer aqui, neste emaranhado histórico chamado Brasil.
A Cor Púrpura
Ficha técnica:
Texto: Marsha Norman
Músicas: Brenda Russell, Allee Willis e Stephen Bray
Versão brasileira: Artur Xexéo.
Direção Geral: Tadeu Aguiar
Direção Musical: Tony Lucchesi
Elenco: Letícia Soares, Sérgio Menezes, Lilian Valeska, Flavia Santana, Jorge
Maia, Alan Rocha, Ester Freitas, Erika Affonso, Analu Pimenta, Suzana Santana,
Cláudia Noemi, Hannah Lima, Caio Giovani, Renato Caetano, Thór Jr, Gabriel
Vicente, Leandro Vieira, Nadjane Rocha
Assistência de direção:
Flavia Rinaldi
Produção de elenco: Marcela Altberg
Cenário: Natalia Lana
Figurino: Ney Madeira e Dani Vidal
Desenho de luz: Rogério Wiltgen
Desenho de som: Gabriel D’Angelo
Coreografia: Sueli Guerra
Visagismo: Ulisses Rabelo
Assistência de cenografia: Gisele Batalha
Assistência de Coreografia: Olivia Vivone
Assistência de direção musical: Thalyson Rodrigues
Registro Videográfico: Paulo Severo
Comunicação em redes sociais: Rafael Nogueira
Projeto gráfico: Alexandre Furtado
Coordenação de produção: Norma Thiré
Produção Geral: Eduardo Bakr
SERVIÇO
Teatro Riachuelo
Endereço: Rua do Passeio, 38 – Centro.
Horário: Sextas às 20h ; sábados às 16h e às 20h; domingos às 18h
Temporada: 07/01a 13/02/21
Classificação: 12 anos
Ingressos: Plateia Vip R$170 (inteira); R$ 85 (meia)
plateia R$130 (inteira); R$ 65 (meia) / balcão nobre R$90 (inteira); R$ 45 (meia) / balcão superior R$50 (inteira); R$ 25 (meia)
Bilheteria: Sympla
Gênero: Musical
Duração: 180 minutos
Capacidade: 999 lugares
PARA LER:
MOLIÈRE – há uma coleção razoável de títulos em português…
A COR PÚRPURA: