Há uma distância, às vezes perigosa, entre o ato de contar e o ato de representar – ou atuar. No nosso mundo, o teatro, talvez cansado de si ou ansioso por renovar-se, tem procurado com frequência esfumar os limites entre os dois continentes. No ofício de ator, o artista pode, simultaneamente, atuar e narrar. Ou discursar. Mas sempre sob o desafio imenso de permanecer… ator. A proposta está em cena no Teatro Poeirinha, na delicada encenação de Um Lugar onde a Vida Acontece.
Na cena, há uma radicalização forte desta ambição moderna, pois o projeto mergulha fundo nesta duplicidade pendular. Como se fosse uma espécie curiosa de matrioska, ou talvez uma caixa de surpresas, ele foi organizado como uma coleção exaustiva de duplos, jogo permanente de opostos ou complementares.
A chave escolhida começa no texto, assinado pela atriz Helena Varvaki. Ele é a um só tempo biográfico e ficcional, documentário e dramático, ensaiado e improvisado. Foi escrito a partir de múltiplos ângulos: às vivências pessoais ligadas ao espanto com a própria idade, ao chegar aos sessenta anos, agrega entrevistas concedidas por mulheres da mesma faixa etária e referências culturais várias associáveis ao tema.
Assim, o ponto central da trama espelha o impacto de fazer sessenta anos, vivido pela atriz; mostra uma mulher à beira de comemorar a data redonda. Ela recebe convidados para a festa – a plateia – aos quais promete não haver participação do público em cena. Logo a seguir, ela se contradiz e distribui tarefas que irão pontuar todo o espetáculo, um pouco no sentido de que na vida tudo flui, afinal.
A lembrança vaga das ideias de Heráclito não surge em vão. Em boa parte, o pensamento da montagem aponta para a constatação da transitoriedade da vida, focaliza o cruel desafio de encarar o tempo que não para e pretende, portanto, alguma filosofia. Mas, tal ideia, profunda demais, não é adensada, flutua indecisa pelo espaço, como um lenço embalado pela brisa.
O mesmo tom se desdobra na direção, de Miwa Yanagizawa, preocupada em esfumar os limites entre narração e atuação, entre participação e contemplação. Como resultado, Helena Varvaki ocupa a cena com muitos momentos de presença indecisa, apagada, dividida entre a concretude de ações físicas objetivas, relatos pessoais sinceros, materialização de conceitos densos e o mergulho na pura energia de criação. Consequentemente, o fluxo de sedução da plateia se dispersa, oscila demais.
Há uma grande afinação de toda a equipe criativa ao redor da proposta. A direção de arte, de Ronald Teixeira e Pedro Stamford, a direção de luz, de Nina Balbi, e todos os trabalhos de corpo, assinados por Clara Francis e Vaggelis Kamminaris, falam o mesmo idioma. Em harmonia, figurinos, objetos de cena, movimentos, luz e sombra – tudo, enfim – acontece sob uma dupla abordagem.
As louças são suportes para a festa e símbolos do universo feminino e grego – a atriz tem ascendência grega. Taças de vidro cristalino e lenços esvoaçantes falam da fragilidade e da maleabilidade. Os livros aportam, ao mesmo tempo, ideias e se tornam simples decoração, mero efeito cênico. A luz capricha nos focos, sem fugir de explosões de luz geral. Os figurinos são roupas objetivas para a festa e roupas de teatro. Finalmente, o figurino básico insinua a presença de uma mulher andrógina, um tanto vestida de homem, como se quisesse transcender a sua matriz de vida – a escolha insinua uma pergunta, ainda que tímida, sobre a natureza da mulher, na menopausa e em busca do protagonismo na vida.
Dotada de um corpo muito plástico, ágil, belo, esteticamente bem estruturado, Helena Varvaki alcança os melhores momentos cênicos quando transita de gestos cotidianos para gestos de arte, como na dança grega. Quer dizer, quando solta o corpo no espaço como se ele pudesse pretender libertar-se de sua condição material e gravitacional, escrever com a carne uma ode à liberdade.
As sequências mais verbais e densas, inclinadas para o cálculo de tentar tornar o pensamento quase uma materialidade, são, ao contrário, mais frágeis, sofrem com a oscilação permanente do esforço cênico de duplicidade. Não acontecem de forma convincente, não irradiam a sua força conceitual. Como vestir palavras secas de emoção com um véu de sedução?
Transparece aí com muita clareza o problema básico que assola o trabalho teatral contemporâneo com a performance: a distância entre a carne, pulsante de energia e sentimento, e as ideias, as formas rígidas dos conceitos. Entre o cotidiano e o metafísico, o jorro de energia se fragmenta, se perde.
Alguns pesquisadores já escreveram bastante sobre o impasse entre Thespianos e Filósofos ao longo da história do teatro – um autor dedicado ao tema particularmente interessante é Freddie Rokem. O estudo da oposição é fundamental para quem se dedica ao teatro experimental. Os estudiosos, em resumo, focalizam a presença das sensações impregnadas no corpo, naturais ou geradas a partir das palavras, de certa forma a energetic language discutida por Ferdinando Taviani, em contraste com a expressão pura e a formulação intelectual rigorosa de ideias, praticadas de Sócrates a Walter Benjamin, construídas, porém, para seduzir o interlocutor.
Parece muito abstrato? Muito intelectual? Bom, é o preço cobrado pelo ingresso do teatro na vida acadêmica. Afinal, tanto os filósofos, filhos de Sócrates, como os grandes atores da História, de Téspis a Meyerhold ou Stanislavski e Brecht (este, afinal, um ator em ideias…), passando por João Caetano, todos eles vivenciaram este jogo quase sempre no calor da arte escolhida, sem as nossas complicações acadêmicas.
Em consequência, uma pergunta incômoda não pode ser contornada: o que o desenvolvimento destas práticas, racionalmente, na academia, ou intuitivamente, nos tablados, importa para o público? Elas são necessárias para a vida da arte?
Elas são a arte, afinal. Oferecem ao ator régua e compasso. Podem ser intuitivas, espontâneas, ou aprendidas na escola. Elas são exatamente a habilidade para fazer com que o teatro aconteça e arrebate, com a sua força peculiar, a sensibilidade da plateia. Contudo, elas precisam ter unicidade, devem ser orgânicas. Quando o trato de cada campo ou a exploração de sua dualidade surge esmaecida, a plateia vive uma experiência teatral incompleta. E aí, surge um grande abismo. Neste caso, por melhores que sejam as intenções e os esforços, as palavras poéticas ou realistas e os momentos líricos ou de reflexão ecoam no vazio: o teatro não acontece.
Uma montagem como Um Lugar onde a Vida Acontece traz para a vida teatral debates intensos sobre a natureza da arte. O valor da experiência corajosa oferecida, de enfrentamento dos limites da arte, é imenso. Ironicamente, ao lidar com o velho jogo entre emoção e pensamento de maneira hesitante, sem escolher decididamente a que deus servir, a cena não consegue se distanciar muito da velha fórmula teatral prescrita por Aristóteles. Mas vale conferir o resultado: ele oferece, aos amantes do teatro, excelente material para o debate acerca da essência do teatro hoje.
PARA LER SOBRE:
Rokem, Freddie. Philosophers and Thespians: Thinking Performance. Stanford: Stanford University Press, 2010.
Barba, Eugenio. e Savarese, Nicola. A arte secreta do ator. Dicionário de Antroplogia Teatral.Campinas: Editora da UNICAMP/HUCITEC, 1995.
FICHA TÉCNICA
Um Lugar onde a vida acontece
Idealização, atuação e dramaturgia: Helena Varvaki
Direção Artística: Miwa Yanagizawa
Assistência de Direção: Lucas Garbois
Direção de Produção: Felipe Valle
Consultoria de Dramaturgia: Camila Agustini
Direção de arte (cenário e figurino): Ronald Teixeira e Pedro Stamford
Desenho de Luz: Nina Balbi
Preparação
Corporal: Clara Francis
Coreografia Hassipico: Vaggelis Kamaminaris
Design Gráfico: Flávio Luiz
Fotografia e redes sociais: Daniel Barboza
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves (Clímax Conteúdo)
Produção
Executiva: Christina Carvalho
Administração de Projeto: Manoel Prazeres
Realização: LMPR Serviços Tecnológicos e Culturais Ltda
SERVIÇO
De 03 de outubro a 22 de dezembro de 2024
Quinta a sábado às 20h, domingos às 19h
Local: Teatro Poeirinha – Rua São João Batista, 104 – Botafogo
Ingressos: R$80,00 (inteira) / R$40,00 (meia)
Bilheteria – Horário de funcionamento: Terça a sábado – 15h às 20h Domingos – 15h às 19h
Ingressos à venda em https://bit.ly/UmLugarPoeirinha
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 60 minutos
Lotação: 46 lugares