Quem tem medo de você, teatrão?
Amantes do teatro carentes de arte, almas poéticas desvalidas ansiosas por beleza, correi! Chegou ao Rio de Janeiro, a cidade outrora reconhecida como capital teatral do país, uma montagem de teatro de grande impacto poético – Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’ Neill (1888-1953). A majestosa encenação, dirigida com inventividade comovente por Sérgio Módena, cumprirá temporada relâmpago no Teatro Prudential – sim, corra para ver.
A cena acontece diante dos olhos da plateia num espaço cênico deslumbrante, delicado como uma sugestão de carrossel sentimental, gaiola prateada de nevoeiro e dor, imagens sugeridas pelo cenário, uma criação de absoluta beleza cênica, assinado por André Cortez.
Bruno Sigrist, Luciano Chirolli, Gustavo Wabner.
No interior da fina gaiola de metal, uma casa de mobília branca oferece a visão entre frestas de um lar que ameaça se esvair, como se feito de nuvens fosse. Em grande parte, uma casa fantasma, um abrigo afetivo que não aconteceu, varrido da possibilidade de ser um ninho de amor graças ao egoísmo masculino e uma surda auto-aniquilação feminina.
Desgovernando esta espécie de miragem doméstica, tão etérea e delicada como se fosse a perfeita imaterialidade da dor, figura a dilacerada Mary Tyrone criada por Ana Lúcia Torre, um trabalho de interpretação sensível, inteligente, histórico, verdadeiramente arrasador. Uma grande atriz dotada de impressionante capacidade expressiva, Ana Lucia Torre ingressa, com este trabalho, na galeria nacional das divas de primeira grandeza.
A atriz abre em cena um lugar de emoção abissal, pois construiu uma interpretação não só de altíssimo valor teatral, mas de significado simbólico único, neste Brasil-calvário das mulheres. Nenhuma mulher brasileira deveria deixar de ver a peça, pois a criação cênica transcende os limites da aldeia cênica associável ao autor para falar de um mecanismo social no qual o amor pode se configurar como liquidação absurda do outro. E o pior… com a aceitação submissa da parte sacrificada.
Ana Lucia Torre.
A trama, estruturada por O’Neill como uma construção cerrada, num circuito vertiginoso, incorpora o debate das três unidades clássicas atribuídas (arbitrariamente, sabe-se bem hoje) a Aristóteles, para desenhar uma heroína trágica moderna. Trata-se de uma existência promissora, massacrada pela máquina da vida de sedução, aparência e consumo de nosso tempo e, em parte, cruelmente liquidada pela máquina teatral. A ação acontece num único lugar, coincide com a passagem de um dia e envolve o destino da personagem central, portanto há unidade de lugar, de tempo e de ação.
Mary nasceu numa família próspera, recebeu educação esmerada e sonhava crescer para se tornar musicista ou freira. Linda menina mimada, conheceu o ator James Tyrone numa matinê, levada pelo pai, e se apaixonou perdidamente, abdicando da vida estável da família e de seus sonhos para se casar.
Luciano Chirolli e Ana Lucia Torre.
James Tyrone era um ator belo na arte e no porte, uma promessa para o futuro, talvez se tornasse um grande ator shakespeareano, se quisesse. Criado na pobreza, embebedou-se com o primeiro sucesso e, casado, enveredou pelo caminho da arte fácil ao descobrir um texto comercial de gosto popular, fraco, mas rentável. Atormentado pelo pavor da miséria, nunca conseguiu se portar como um verdadeiro homem rico, passou toda a vida agarrado aos tostões.
Inebriado com a fama e o sucesso, valores surpreendentes para o menino irlandês imigrante miserável, James desenvolveu uma personalidade arrogante dedicada a se pavonear entre garrafas e copos nos bares, desapegada da ideia de lar. Luciano Chirolli, favorecido por sua beleza e seu porte imperial, explora em particular a falsa grandeza, a empáfia, o tom impositivo de James. A sua linha de criação é particularmente generosa, por favorecer a projeção absoluta de Ana Lúcia Torre.
Luciano Chirolli e Gustavo Wabner.
O casal, portanto, levou uma vida de teatro itinerante, de hotel em hotel, de espelunca em espelunca. O nascimento dos dois primeiros filhos gerou forte tensão no casamento; a morte repentina do segundo bebê por omissão de cuidados abalou profundamente a estrutura psicológica de Mary. Após o parto problemático do filho seguinte, o médico barato da família receitou morfina e, atormentada por tantas dores, Mary se viciou e se tornou dependente da droga.
Ao iniciar-se a ação, datada de 1912 pelo autor, mas esfumada na leitura de Modena, a família está na modesta casa de veraneio que a avareza de James permitiu erigir, para desgosto de Mary, que gostaria de ter uma casa com mais qualidade humana. O nevoeiro e a sua sirene criam uma atmosfera perturbadora. A família, ao longo deste único dia, se expõe em cena; cada integrante revela os seus dramas interiores, verbaliza os seus desajustes, participa da construção de um painel humano patético.
O quebra-cabeças doméstico se torna uma radiografia eficiente: demonstra a falência do ser humano, devorado pelas rodas dentadas da sociedade industrial. Trata-se de uma tragédia moderna, evidentemente, o texto não cede àquela temperatura mais amena associável ao drama. Neste tom, as revelações são fortes.
Gustavo Wabner.
O filho mais velho, Jamie Tyrone, favorecido pelo nome do pai, se transforma em ator medíocre contra a sua vontade, consegue se destacar como bêbado e farrista contumaz. Gustavo Wabner equaliza a explosiva fórmula contida no papel com uma maestria admirável – tanto o carinho com a mãe, colorido de discretos tons de ódio, por não ser o único foco do seu amor, como a camaradagem cínica com o pai, rival e algoz, e o desprezo pelo irmão mais novo, que deseja destruir, insinuam o estado de desespero de uma personalidade arrogante derrotada.
Gustavo Wabner e Bruno Sigrist,
O filho mais novo é Edmond – na trama decididamente autobiográfica ele reproduz o perfil do autor – e sonha um dia se tornar escritor, deseja ser poeta, viver de ler e de escrever. O tom flamejante e febril é explorado minuciosamente por Bruno Sigrist, com uma felicidade atenta aos menores detalhes. Inquieto, partiu em viagens pelo mundo para escapar da pegajosa neurose familiar. Neste seu retorno, ele está tuberculoso e, sob a influência destrutiva do ciumento irmão mais velho, envereda pela bebida.
Há ainda uma empregada, Cathleen, um pequeno papel que Mariana Rosa transforma em vertiginosa ferramenta, para revelar um pouco mais da impressionante neurose da família. Funcionária barata, mas muito humana, a empregada pontua o andamento das ações do dia como se fosse uma espécie de maestrina doméstica.
Um passo mais adiante, porém, precisa ser dado para que se dimensione mais claramente a potência do trabalho. Importa reconhecer, na encenação, a extensão da visão poética da obra formulada por Sergio Modena, responsável pela tradução e adaptação do original. A versão assinada pelo diretor é de extrema felicidade e surge em cena trabalhada em uníssono pela equipe de criação. Nesta visão, a cena aparece sob uma arquitetura única, com o trabalho de cada artista dialogando plenamente com os demais.
Ensaio: Sérgio Módena e Ana Lucia Torre.
Destaque-se, por exemplo, a identidade poética entre o cenário, de André Cortez, e o figurino, de Fabio Namatame, cujas cores, cortes e movimentos dialogam intensamente. E há mais: eles aparecem sutilmente afinados com as artimanhas da luz de Aline Santini, hábil para sugerir o carrossel e a gaiola, a luz de ribalta, os mergulhos intimistas, o nevoeiro e o delírio tresloucado. A força destas soluções aparece sublinhada, e sob foco preciso, na música original, de Marco França, preocupada em mesclar sucessos conhecidos ou tradicionais numa trilha de inovações – como se as sonoridades antigas se mesclassem com as canções do presente da cena e apontassem, sem piedade, o poder profundo da dor humana. E do teatro, este mestre da dor.
Imagem real da casa da família (programa da peça).
A peça de Eugene O’ Neill é, afinal, o que se costuma chamar de clássico contemporâneo, uma peça que nasceu imortal. Foi escrita como um ritual de catarse pessoal e trabalhada minuciosamente pelo autor para se organizar dentro de um artesanato poético rigoroso. A sua montagem, segundo determinação expressa de sua parte, só poderia acontecer 25 anos após a sua morte. A viúva, contudo, autorizou a sua estreia em 1956 e a obra ganhou o Prêmio Pulitzer póstumo, um feito notável na história do teatro.
Por estes dados, percebe-se bem: Longa Jornada Noite Adentro é um monumento teatral raro, um dos grandes pilares do teatro ocidental. A encenação de Sergio Modena, ao tratar o texto um pouco adiante do requintado realismo proposto no original, marca um novo tento significativo na história da peça. A transgressora materialização da trama sob uma visão de realismo poético abstrato, digamos, alcança uma contundência digna de nota.
Foto do cenário, puro realismo simbólico, montagem de São Paulo.
Os dados, então, impõem um outro reconhecimento histórico – com este trabalho, Sergio Modena ingressa na galeria dos grandes encenadores brasileiros, um clube de poucos membros, muitos dos quais estrangeiros. Quer dizer, ele assina uma cena capaz de propor uma leitura nova, densa, de um grande texto, densa o bastante para emocionar o teatro do país. Simples assim.
A passagem rápida do tempo com frequência nos cega. Mas em cada época teatral acontecem grandes montagens, as grandes montagens do tempo. Aqui estamos decididamente diante da primeira grande montagem brasileira do século XXI. Moral da história? Corra para o teatro para conferir: se o seu coração bate no compasso da cena, esta peça você não pode perder, pois você terá a grande chance de alinhar as suas palpitações com a marcha histórica do palco.
SERVIÇO:
Longa Jornada Noite Adentro
Teatro PRUDENTIAL (359 lugares)
Rua do Russel, 804 – Glória, Rio de Janeiro
Sexta e sábado: 20h
Domingo: 17h
Ingressos: Setor A – R$ 80 (inteira) / R$ 40 (meia)
Setor B – 72 lugares (20% da lotação -contrapartida social ingresso popular ) R$ 39 (inteira) / R$ 19,50 (meia)
Duração: 110 minutos
Classificação: 14 anos
VENDAS: www.sympla.com.br
Estreia dia 12 de maio
Temporada até 28 de maio
FICHA TÉCNICA
Texto EUGENE O´NEILL
Idealização, Tradução e Direção SERGIO MÓDENA
Música Original MARCO FRANÇA
Elenco:
ANA LUCIA TORRE- Mary Tyrone
LUCIANO CHIROLLI – James Tyrone
GUSTAVO WABNER – Jamie Tyrone
BRUNO SIGRIST – Edmund Tyrone
MARIANA ROSA- Cathleen
Cenário ANDRE CORTEZ
Figurino FÁBIO NAMATAME
Iluminação ALINE SANTINI
Diretor Assistente LURRYAN NASCIMENTO
Assistente de Cenário MARISTELLA PINHEIRO
Visagista DHIEGO DURSO
Cenotécnico TIBÚRCIO PRODUÇÕES
Coordenação de Comunicação BETH GALLO
Assessoria de Imprensa – BARATA COMUNICAÇÃO
Programação Visual VICKA SUAREZ
Fotos PRISCILA PRADE
Filmagem JADY FORTE
Redes Sociais e Textos ANA PAULA BARBULHO
Coordenação Administrativa DANI ANGELOTTI
Assistência Administrativa ALCENÍ BRAZ
Assistente de Produção REBECCA MOMO
Administradoras da temporada MAGALI MORENTE e ALCENÍ BRAZ Produção Executiva MARTHA LOZANO
Produtoras SELMA MORENTE e CÉLIA FORTE
Uma produção Morente Forte
Realização Ministério da Cultura