Com o frio na alma
Ainda existe no mundo um teatro feito de texto e de ator, um desafio para bons diretores, pois eles precisam reger o fluxo poético com sutileza absoluta. Assim, este teatro, filho dileto de Dioniso, consegue jogar o público numa vertigem desnorteadora de sensações, favoráveis ao pensamento cru, impiedoso mesmo, a respeito dos sentidos da vida humana. Não acredita? Ah, que pena.
Ora bem, mas, por favor, confie: corra até o Sesc Copacabana e veja com os seus olhos. No lindo Teatro de Arena da casa – o único edifício teatral em arena que nos resta – está em final de temporada um dos melhores espetáculos do ano teatral carioca.
Dignidade, do espanhol Ignasi Vidal, pretende ser uma pesquisa arrojada a respeito do cidadão ocidental, esta nossa forma de ser-em-solidão. Temas básicos como ética, lealdade, honestidade, honradez e altivez figuram na pauta, a partir do foco na representação política. Até que ponto um político se faz e se projeta como representante autêntico da coletividade – portanto, estadista – ou se revela como simples fachada para agir a favor dos seus interesses pessoais diretos – portanto politiqueiro?
Até que ponto as nossas vidas seguem a linha dos princípios fundamentais para a excelência da vida ou mergulham em cálculos mesquinhos desenfreados de prazer e de auto celebração? Em que medida temos, como líderes, políticos identificados com a nossa própria miséria humana? Ou precisamos lutar a favor de lideranças políticas de alto valor ético e existencial?
A importância do debate é indiscutível. Basta manter o olhar atento nos jornais para constatar a demanda, hoje, por transparência na política. Escândalos provocados pela prática da corrupção, coroados com prisão e destituição do poder, pululam por toda a parte. A verdade é que o tema, no fundo, tem uma extensão mais ampla do que aquela associável ao simples jogo político.
A chave para estabelecer esta dimensão nasce do título da peça: dignidade. No texto, o autor faz uma evocação do princípio latino da dignatas, um valor romano antigo, capaz de levar um político a se exilar ou até mesmo a se suicidar, quando agia com extrema avareza contra o bem comum. Em Roma, após um certo limite, a corrupção se tornava inaceitável e devia ser expurgada com a morte, para a restauração da saúde social.
Sim, saúde social. Afinal, uma sociedade na qual a política deixa de servir ao bem comum, para favorecer estreitos interesses particulares de membros da elite e enriquecer os políticos, está profundamente doente. O assunto parece espinhoso, mas só na sua aparência. Nada que um bom dramaturgo não possa resolver bem.
Pois é admirável a habilidade do autor para tratar tema tão árido e tão abstrato como puro jogo de cena teatral. Trata-se, portanto, de grande dramaturgia, afinal a grande dramaturgia funciona neste diapasão. Grande, aqui, não quer dizer obra prima ou cânone da arte, mas sim eficácia técnica, capacidade para ir ao fundo do debate.
O ponto de partida parece ser uma reunião quase rotineira de um líder promissor, Francisco (Thelmo Fernandes), com o seu principal assessor, Alex (Cláudio Gabriel). Eles são velhos amigos de luta política e de ideais, se preparam para a convenção do partido que escolherá o candidato para disputar a presidência do país.
Numa sala da sede do partido, um grande partido, o encontro começa como uma conversa de tom amistoso. Logo, pequenos indícios denunciam uma certa excepcionalidade, discretamente. A ação dramática acontece como conversação sob uma tensão crescente, acelerada por informações novas, notícias-surpresa e enfrentamentos objetivos, até o desenlace.
Alguns pequenos recursos melodramáticos ancoram a cena junto ao padrão humano comum, naturalizam a trama. São truques eficazes de dramaturgia, para promover viradas de clima, em geral compatíveis com o andamento. O truque mais “artificial”, com um alcance um tanto apelativo, é a revelação do diagnóstico de uma doença fatal, um recurso um tanto forçado para resolver a ação. Ainda assim, nada faz com que a adesão do público esmoreça, até se chegar ao soco na boca do estômago, no final…
De embate em embate, a respiração fica em suspenso, uma fria lâmina de gelo invade a alma do público. Sim, já vimos este filme, na política e na vida, somos uma formidável solidão humana e nos surpreendemos ao ver a cena nua e crua, como os gregos deviam se abismar diante das proezas dos seus deuses em cena, mal comparando… O sentimento se torna maciço em cada um, na plateia, graças ao desempenho magistral dos atores. A tensão e a contracena entre os dois é perfeita.
Thelmo Fernandes se impõe como monolito de poder e de saber, avança as suas peças do jogo com sabedoria e elegância. Com uma profunda sutileza de expressão, ele comanda o fluxo de emoções da cena de forma direta, orquestra uma preciosa economia de gestos, aciona a transformação da fala em uma corda nervosa pronta para ser tensionada – consequentemente, a voz se projeta como apelo de amizade, comando, representação da autoridade, força, suposição de poder.
Já Claudio Gabriel surge como contraponto escorregadio, argumentação eficiente, mas, ao mesmo tempo, sinuosa, funciona para a indicação crescente de uma nuvem de desconfiança que costuma rondar a trajetória do ser em sociedade. Com brilhantismo, o ator caminha da imagem do assessor de alto padrão para a sugestão de um companheirismo gradualmente suspeito, uma verdadeira armadilha existencial.
À direção de Daniel Dias da Silva cabe muito do sucesso da montagem – exímio diretor de atores, ele soube desenhar uma curva de clima que é uma verdadeira aula de teatro. A rigor, no excelente cenário de Natália Lama, uma simbólica área de jogo, os atores se enfrentam numa partida corrosiva, espécie de representação profunda do embate político primordial do mundo hoje.
Para atingir este tom maior, na arena colorida de preto e branco e de tons que evocam dourados, com peças fixas associáveis ao xadrez e cartas que bailam suspensas no ar, a ação se liberta de referências realistas. Os figurinos, de Victor Guedes, e as garrafas de uísque são os únicos elementos da cena dotados de concretude imediata, compatíveis com a função política objetiva.
Abrigadas nesta cena de requintado desenho poético, sob uma luz de aura incandescente, de Vilmar Olos, de sofisticada sensibilidade, jorram as palavras de um embate dolorido, a revelação de um mundo em que o sujeito se faz como arma de destruição do humano e de si. Deliberadamente.
Dignidade é um espetáculo de extrema importância na cena atual exatamente por isto – por ser teatro no seu sentido pleno, maior. É aquele palco em que as palavras, manejadas por atores de excelência, nos fazem viver o sentido profundo da existência – lá, o frio cortante na alma se torna um rito de passagem, conduz à percepção do mais legítimo calor humano. Em resumo: cuide de si, não deixe de ver.
FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA:
Texto: Ignasi Vidal
Tradução e Direção: Daniel Dias da Silva
Elenco: Thelmo Fernandes e Claudio Gabriel
Idealização: Daniel Dias da Silva, Renata Blasi e Thelmo Fernandes
Diretor Assistente: Sávio Moll
Figurino: Victor Guedes
Cenografia: Natália Lana
Iluminação: Vilmar Olos
Trilha Sonora: Daniel Dias da Silva
Projeto Gráfico: Raquel Alvarenga
Fotografia: Rafael Blasi – Vida Longa Audiovisual
Vídeos: Vida Longa Audiovisual
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Assessoria – Gisele Machado & Bruno Morais
Gestão de Redes Sociais: Ana Lobo
Assistência de Produção: Julia de Aquino
Produção Executiva: Juliana Trimer
Direção de Produção: Renata Blasi e Ana Paula Abreu
Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais
Realização: Blasi & Fernandes Produções Artísticas
Diálogo da Arte Produções Culturais
SERVIÇO:
Temporada: 25 de novembro a 18 de dezembro
Dias da semana: Quinta-feira a domingo
Horário: 20h
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Local: Teatro de Arena do Sesc Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana / Rio de Janeiro
Informações: (21) 2547-0156
Bilheteria – Horário de funcionamento:
Terça a sexta – de 9h às 20h; Sábados, domingos e feriados – de 13h às 20h
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 90minutos