Cultura: a crise e o fim do teatro
Fim de ano agitado: mas não é efeito do verão. A crise, ampla geral e irrestrita, varre a cena cultural brasileira e se apresenta particularmente devastadora no Rio de Janeiro. O teatro, espécie de primo pobre sempre esquecido, corre o risco de virar molambo. Ou pó. A situação – grave – solicita um esforço coletivo de pensamento, busca de entendimento e de solução.
Dois caminhos básicos surgem nítidos – a ação política imediata, atenta, urgente, ferramenta eficiente para traçar as garantias mínimas para o exercício da profissão, é o primeiro caminho. Tem sido percorrido com valentia por Eduardo Barata, à frente da APTR, na luta para assegurar o acesso ao MEI (Microempreendedor Individual) e preservar os recursos do Fundo Estadual de Cultura, ameaças resultantes, entre outras, de desvarios governamentais inexplicáveis.
O outro caminho, trabalhoso, levaria ao debate de um projeto cultural do Estado, formas e caminhos para ampliar a institucionalização da cultura, talvez o meio eficiente para fazer com que a cultura se torne uma prática estável, com perfil de mercado definido. A busca seria demandar ao Estado o investimento e a garantia da infraestrutura de produção, em lugar do simples custeio do ramo da cultura. Um pouco como se o Estado viabilizasse o ato de espalhar o teatro por toda parte.
Evidentemente não se precisa provar a importância do teatro para a saúde social da comunidade: basta um mínimo de cultura para saber o valor fundante das artes cênicas para a sensibilidade do homem ocidental. Não existe país ao nosso redor, dotado de uma realidade social civilizada, no qual o teatro esteja no limbo. A rigor, a atualidade supõe a formação básica em teatro como elemento essencial da formação escolar mínima. Vale frisar: este é um valor universal.
E isto quer dizer algo bastante objetivo: o nosso ideal de ser humano, de gente, prevê a formação equivalente ao ensino médio e deste grau de escolaridade participa o conhecimento elementar da arte cênica. A capacidade de redigir uma cena dramática, o conhecimento do que são personagens, ação dramática, conflito dramático e a obra dos maiores dramaturgos locais e mundiais integram esta fortuna pessoal, a ser adquirida nas escolas.
Esta tradição vem desde o Renascimento. As escolas jesuíticas, se não foram as primeiras, foram aquelas que mais profundamente desenvolveram este conceito de formação. Dos jesuítas não nasceu apenas o teatro catequético de Anchieta – grandes dramaturgos ocidentais , tais como Molière e Goldoni, passaram por estes bancos e palcos. E nasceu ainda um vasto público de teatro para a sociedade, depois de atuarem, na escola, em dramas sacros ou de devoção. Teatro e educação andam juntos.
Na crise, a educação é um valor de que não se pode abrir mão. Nos rádios, esta semana, começou uma propaganda do Governo do Estado do Rio de Janeiro, a atual gestão Wilson Witzel, com um teor alvissareiro. Segundo o anúncio, dados concretos indicam que a educação, aqui, melhorou. Ao mesmo tempo, o jornal O Globo publicou uma matéria anunciando a posse da nova Secretária de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.
A nova empossada, Danielle Christian Ribeiro de Barros, possui graduação em Pedagogia, o que é um alento. Pois educação e cultura, no Rio de Janeiro, no Estado e no Município, mesmo quando integravam a mesma pasta, parecem ser norteadas por um conceito de guerra permanente. Agora, já que as escolas estão sendo cultivadas para buscar excelência e a Secretária de Cultura tem formação especializada em educação, pode ter chegado o momento de implementação de um Plano Estadual de Cultura em que se ataque a crise da arte.
A medida é prioritária para deter o desmoronamento da tradição cultural do Rio de Janeiro. E em que consistiria? Em primeiro lugar, é essencial garantir a formação dos estudantes em artes cênicas. Isto significa professor em sala, mas também significa dotar as escolas de equipamentos adequados para a aprendizagem e a prática da arte.
Neste quadro, a integração entre Educação e Cultura precisa ser um exercício diário. Várias escolas estaduais, na cidade do Rio de Janeiro e por todo o Estado, contam com palcos ou auditórios que precisam ser mantidos em funcionamento. Alguns chegam a ser ótimos. Estes espaços, além de receberem os alunos, deviam ser inventariados e programados para constituir uma Rede Estadual de Teatro.
A partir da Loterj, o Estado deveria constituir um fundo para o financiamento de projetos teatrais culturais, para a oferta permanente de teatro nesta Rede Estadual Pública. Atores profissionais, grupos e companhias estáveis formulariam projetos dedicados à História da Dramaturgia, à História da Cena ou à História do Teatro para turnês nos teatros. Além disso, o Estado conta com escolas de teatro que produzem peças – a Martins Pena e a UERJ.
Para não contar apenas com um repertório didático, o Estado pode promover um edital anual para selecionar espetáculos de carreira, do mercado, para apresentações, cumpridas as exigências de adequação às faixas etárias contempladas. A partir da simples estruturação de uma Rede Estadual de Teatro pode nascer uma revolução artística de grande repercussão histórica.
Vale chamar a atenção para um outro fato de divulgação recente. Segundo o IBGE, os dados apurados em pesquisa sobre o desempenho econômico do setor cultural brasileiro, em 2018, são bastante eloquentes. A atividade ocupava 5,2 milhões de pessoas e movimentou a cifra nada desprezível de R$ 226 bilhões. Isto significa um lugar de potência que não pode ser ignorado. E no Rio de Janeiro, outrora o inconteste estado sede da capital cultural do país, é prioridade investir e expandir o campo.
No entanto, apesar de tais cifras, um outro dado faz soar um alarme muito preocupante – o mesmo estudo indicou que as livrarias estão sumindo da paisagem urbana do país. Os números, severos, mostram que, em 2001, 2.374 municípios brasileiros (42,7% do total) ostentavam pelo menos uma livraria. Mas, em 2018, apenas 985 dos 5.570 municípios brasileiros (17,7%) contavam com este recurso, condição que faz o livro caminhar para o status de artigo de luxo.
Para delinear um quadro ainda mais surpreendente, a pesquisa apurou que existem mais municípios com videolocadoras (logo elas, aquelas que tantos consideram ultrapassadas!?) do que com livrarias. A cifra revela uma diferença não negligenciável, pois mostra que 23% das cidades brasileiras ainda contam com esse tipo de estabelecimento. Talvez se possa cogitar que o resultado permite pensar em um divórcio sério entre educação e cultura, com a escolas se distanciando das letras? Por isto, o desprestígio dos livros e das livrarias?
Seriam necessárias algumas pesquisas para tentar entender o que acontece por aqui, sem dúvida. De qualquer maneira, uma certeza parece surgir como derivada natural do quadro – o teatro está em perigo por mais de uma frente, pois o teatro não vive sem livros. À exceção da literatura, obviamente, nenhuma outra arte apresenta uma cumplicidade tão grande com os livros como o teatro… o palco vive rodeado de folhas impressas.
E assim caminha a temporada, ao sabor do suspense, pois algo precisa ser feito antes que o teatro acabe. Afinal, o ano se encerra, um bom momento para fazer belos projetos e tentar melhorar tudo em 2020. E o fim do ano traz uma leva irresistível de livros teatrais, livros para todos os gostos. Do teatrão à vanguarda, passando por estudos do corpo, peças, monstros sagrados e engajamentos, a força do teatro brasileiro baila nas páginas, para nos surpreender.
Ok, temos uma baita crise – mas, ao lado de Fernanda Montenegro, com dois cuidadosos livros autobiográficos, temos Tônia Carrero, uma diva inefável, alquimia de beleza extasiante, inquietude e arrojo cultural. E temos Sérgio Carvalho, com a Companhia do Latão, com o lançamento de três peças do grupo.
Ainda podemos contemplar a obra de Gerald Thomas, polêmico homem de teatro, cujos textos teatrais, acompanhados de críticas, estudos e iconografia, surgem em volume alentado. Por uma estranha coincidência o livro de Thomas surge por aqui no mesmo momento em que está sendo lançado o documentário sobre o ator Sérgio Britto, “ Ultima Gravação”, na Mostra Itinerários Únicos, do Festival do Rio 2019. O velho ator lançou Gerald Thomas no Brasil, ao convidá-lo para vir trabalhar no Teatro dos Quatro.
A nostalgia, contudo, também visita terras bem apadrinhadas pela tradição, lá onde a crise acontece sob contornos de quem tem a cultura muito bem instituída. Em francês, em Paris, foi lançado um livro dedicado ao teatro não dramático de Antoine Vitez. Dos anos 1960 aos anos 1980, ele levou ao palco textos não–teatrais, textos que ele considerou adequados para, livres das exigências dramáticas e cênicas convencionais, revelar a aberração de muitas das convenções e convicções da cena. Instaurar a crise do teatro…
A autora do estudo – Brigitte Joinnault – fala em destruição fecunda, conta a história de uma confrontação audaciosa com o irrepresentável. De certa forma, trata-se de uma destruição do velho e bom teatro, promovida por um homem de teatro genial, para colocar, no lugar, mais e mais teatro.
Portanto, uma crise muito diferente da nossa. Aqui lutamos contra aqueles que atacam o teatro para derrubá-lo, reduzi-lo a ruínas e, no lugar, deixar apenas o vazio. Um crime contra o teatro e contra a Humanidade. Pois o vazio, é o vazio interior das pessoas, pessoas que, indefesas, desprovidas de uma proteção sensível para dialogar com o mundo, acabam à deriva, ao sabor do tempo, desprotegidas. E, desprotegidas, elas simplesmente se entredevoram.
Serviço:
Lançamento Ibis Libris e Livraria da Travessa
Amigos Para Sempre, Tonia Carrero e Luis Artur Nunes.
Livraria da Travessa Ipanema – 11/12/2019
Rua Visconde de Pirajá, 572
Das 19h às 22h
Documentário Última Gravação – sobre o ator Sérgio Britto
Festival do Rio 2019
Mostra Itinerários Únicos do
dia 17/12, 18H na Estação Net Gávea.
Lançamento (em Paris)
Brigitte Joinnault
Antoine Vitez: La mise en scène des textes non dramatiques. Théâtre-document, théâtre-récit, théâtre-musique. Paris, Max Milo, collection « Champ théatral », avril 2019, 384 p.
Lançamento
Um circo de rins e fígados: o teatro de Gerald Thomas
Organizadora: Adriana Maciel
Edições Sesc São Paulo
2019
Páginas: 594
ISBN: 978-85-9493-190-0
Dimensões: 17,5 x 24,5 cm
Preço: R$ 95,00
SÃO PAULO
Dia 11/12/2019, Quarta-feira, a partir das 20h.
Local: Sesc Avenida Paulista – Av. Paulista, 119, Bela Vista, São Paulo.
Tel.: 11 3170-0800
20h às 21:30h – Bate-papo com Gerald Thomas e Dirceu Alves Jr, seguido de leitura de textos.
21:30h às 23h – Sessão de autógrafos.
VAGAS LIMITADAS. RETIRADA DE INGRESSOS 1 HORA ANTES, NO TÉRREO.
RIO DE JANEIRO
Dia 12/12/2019, Quinta-feira, às 19 horas.
Local: Arte Sesc – Rua Marques de Abrantes, 99, Flamengo, Rio de Janeiro.
19h às 19:30h – Bate-papo com Gerald Thomas e Luiz Felipe Reis, jornalista, curador e dramaturgo.