
Teatroville
Alguma vez na sua vida você viveu a experiência luminosa de flutuar no espaço infinito, liberto de toda materialidade mesquinha, entregue ao mais requintado jogo de ideias? Não, não é bebida, nem droga, nem alucinação ou pancada na cabeça – é teatro, puro teatro, na sua quintessência mais etérea, o velho e bom teatro amante dos humanos, soberano absoluto das almas.
É Dogville, adaptação teatral do filme de Lars Von Trier, assinada pelo genial diretor Zé Henrique de Paula, cartaz do Teatro Clara Nunes. Corra para ver e leve a sua turma: pode ser a única experiência teatral absoluta da sua vida. Você não vai esquecer nunca mais. E vai sair do teatro aturdido, pensando no que é que você faz na sua vidinha miúda com você. É o velho teatro revisto e sintonizado com as ferramentas criativas do nosso tempo, um mergulho na cena envolto em imagens fugazes de vídeo e filmagem, música rascante, vertigem de luz.
A cena árida de saída vai conduzir a sua percepção para um lugar trevoso, apagado, um galpão abandonado, um vazio humano disfarçado de cidade pequena. Um jogo teatral requintado começa: o palco é um palco, está quase nu, mas apresenta e representa. Assim, diante da plateia há um espaço vazio que é mesmo um palco, marcado por estruturas móveis, telas, vai e vem de cadeiras: ele é uma cidade. Impressiona a textura das cores, sombrias, do cinza ao preto, cores sujas, uma espécie de lama original, sobra de incêndio, coisa de lixo.
Um jovem mestre de cerimônias, quase um oficiante de um ritual de iniciação, frio, calculista, distante, protagonista fantasma, narra a ação dramática, do prólogo aos nove quadros, e comanda a ação num sentido surpreendente, para o desenlace. Vestido de preto e sem cara de sujo, o narrador construído por Eric Lenate indica a excelência da direção de ator de Zé Henrique de Paula graças a uma nota comum a todo o grande elenco. O desenho físico e gestual combina corpo natural e corpo simbólico de uma forma muito ardilosa, num convite permanente para a passagem do real ao simbólico.
Eric Lenate explora uma sinuosidade de corpo – e de alma, vale acrescentar – adequada ao seu papel de orquestrador supremo da história, encarregado da sentença definitiva a respeito de tudo. O seu personagem é duplo – numa evocação dos coloridos diabólicos dos autos medievais, ele transita como uma figura em negro, com filigrana vermelho, para narrar, mas se torna um misterioso poder em vermelho-sangue sobre tom negro, para tecer os meandros do desfecho impactante.
A trama é simples. A rigor, trata-se de uma fábula, estruturada como um ato de teatralidade profunda, sob uma clara influência de Brecht e Pinter, com um alcance moral direto. A mistura é inusitada, pois o primeiro buscava mostrar a razão e a verdade em cena, o segundo banhou o palco em desrazão plausível. Aqui o foco é o sonho de felicidade do indivíduo-cidadão. Mas há algo mais: o texto é inegável texto do nosso tempo, deste novo século, tem um cálculo corrosivo nosso na sua construção, um tom de nihilismo e de ousadia intelectual – o sonho é impossível.
O formato determina um enfrentamento desabrido da ideia de humanidade, revelada como tecido corroído, como se a moralidade pudesse ser apenas patrimônio de cada um, portanto impossibilidade. No meio dos cachorros, a virtude é filha do gangster e, no fim, o poder acaba por ser um acordo entre os dois. Explosivo, nitroglicerina na alma.
A proposta, basicamente, é a de oferecer um caminho épico-dramático de deslumbramento para que você, afinal, pense o seu lugar na vida em relação aos valores mais nobres do mundo ocidental. Portanto, há uma lição, como soe ocorrer nas fábulas. Para chegar até ela, o narrador conta a história de uma cidade cachorra, perdida no mapa, povoada por uma gente lixo, cachorra, esquecida de si e do mundo. Uma gente simples que poderia ter alguma envergadura civilizada.
Ilhas humanas desgarradas no seu fim de mundo, estes seres tão pequenos precisam de um outro personagem para conduzir a ação, no oco da cidade: um escritor-cachorro, sem livros e sem certezas, interessado em demonstrar uma improvável grandeza humana do lugar, Tom Edson. A figura, esculpida em cena com roupa farfalhante de cortante colorido em tons de terra, combinação desconcertante de barro e lama, impacta graças ao desempenho estruturado por Rodrigo Caetano, uma mistura sutil de parvoíce e cinismo. Espécie de co-protagonista, também diabólico porque inconsequente, é ele quem aciona a imaginação da plateia no grau delirante necessário: deseja demonstrar como as pessoas de Dogville são, na sua essência, boas.
Para cumprir a sua obra, ele é contemplado com a divina aparição de Grace – a graça feminina de bondade e ponderação, manipulada em requintada alquimia por Mel Lisboa. Arrebatadora, a atriz se impõe como o anjo do bem, delicado emissário metafísico capaz de suportar as misérias terrestres mais brutais em favor da comprovação da grandeza humana. Irresponsável por si, no seu idealismo tonto.
Ela é uma fugitiva e, fugidia, busca abrigo contra misteriosos perseguidores. Não deseja voltar ao mundo lá de fora. A sua aparência é um híbrido, estopim para incendiar as almas pequenas. É tanto a imagem do desejo, latente na roupa alinhada provocante, no batom, no tom solar, dourado, no vermelho paixão. E é também a pureza da graça, na sua lourice de tranças. De certa maneira, a trama apresentada contém uma revisão de A Alma Boa de Setsuan, de Brecht, um exercício teatral para delinear os riscos da bondade, com a visita de deuses à Terra para procurar ao menos uma pessoa boa.
Denunciada por Moisés, o cachorro da cidade cachorra, justo o nome daquele que trouxe as tábuas da lei, Grace é aceita pela comunidade por interferência de Tom. Em troca, se presta a realizar pequenos serviços para todos, ainda que, de início, deles eles nem precisassem. Logo a bela moça inexperiente se transforma numa escrava branca barata, aviltada, torturada, massacrada, pois teria se tornado perigoso abriga-la graças à procura intensa da polícia. As maiores barbaridades são cometidas contra ela – e perdoadas por ela.
Cada habitante, mesmo o menino imberbe, representa um pecado contra a ordem humana. Desfilam em cena o egoísmo, a avareza, a mesquinharia, a inveja, a mentira, o autoritarismo, a luxúria, a ira, a preguiça, a vaidade… o cortejo das baixarias capazes de reduzir a humanidade ao mais sórdido pó é pródigo. Haveria uma fina fresta, totalmente pessoal, por onde esgueirar-se neste jogo para fugir, mas isto significaria retroceder diante das próprias certezas. Quer dizer, aceitar o jogo do poder, pois o poder, a ordem de comando, humana, não parte necessariamente de uma força do bem. O poder, ao olhar apenas o seu próprio interesse, é um tipo de gangster.
Trata-se de uma obra monumental de ourivesaria teatral. Para alcançar este feito, Zé Henrique de Paula, um dos maiores diretores brasileiros da atualidade, fino desenhista da ação em cena, desde a marcação, no espaço, até a configuração do rol das intenções, no fluxo etéreo, recorreu a um elenco capaz de transportar todo e qualquer mortal aos céus. São texturas preciosas de expressão, movimento, irradiação de aura, percepção de conjunto, doação pública.
Fábio Assunção, virgem de teatro, entrega toda a sua força expressiva para a arte e é de lamentar o tempo que perdemos com a sua distância do palco – o seu Chuck reúne brutalidade, ignorância, carência, inteligência perversa num jogo sutil e multifacetado. Bianca Byington concilia a sua característica delicadeza inefável com o desespero, o egoísmo, a ausência maternal e a cegueira existencial de Vera, num exercício exemplar de não ver o próximo. A força telúrica impressionante de Selma Egrei transmuda-se em impactante avareza, transubstancia-se no ícone perfeito da mulher má. A naturalidade do menino Dudu Ejchel, na construção de Jason, é uma ácida insinuação de que a má fé pode ser erguida desde cedo.
Enfim, não há qualquer possibilidade de lançar restrições ao trabalho do elenco. A direção, na condução de atores de fôlego, desenhou um elenco no pleno sentido da palavra. Todos (e cada um) se projetam na medida exata da fábula, na arquitetura precisa das cenas, no jogo com as projeções e o vídeo-mapping, como se não houvesse amanhã e o teatro maior do mundo fosse este, hoje.
Anna Toledo (Martha), Marcelo Villas Boas (Ben), Gustavo Trestini (Sr. Henson), Fernanda Thuran (Liz), Thales Cabral (Bill Henson), Chris Couto (Sra Henson), Blota Filho (Thomas pai), Munir Pedrosa (Jack McKay) e Fernanda Couto (Glória) transformam pequenos nadas em lâminas de fatiar almas. Integram uma máquina de emocionar e de fazer pensar muito requintada. No palco, espectadores omissos do mundo, cada personagem tem uma cadeira, explorada em múltiplos simbolismos. O movimento se amplia a partir da esfera corporal de cada um e, no palco vazio, como se o sórdido galpão fosse metáfora do mundo, eles sugerem pobres nichos para chamar de seus e se abrigar da verdade da vida.
A cenografia de Bruno Anselmo participa de forma muito integrada na armação deste jogo cênico – praticável, maleável, móvel, também de cores sujas, ela se presta para construir o espaço volátil e para as projeções. A luz de Fran Barros ultrapassa todas as exigências técnicas – dar visibilidade, desenhar climas, amparar as projeções – para contribuir de forma decisiva para a criação de uma comovente poesia do espaço. É arrebatador. Vale o aviso: prepare-se para voar.
Sim, poesia do espaço, importa frisar – dogville, cidade cachorra, é antes de tudo um lugar. Uma espacialidade adequada para dizer muito, alto e bom som, de uma humanidade nossa, de hoje, perdida de si, dos valores que deveriam ser a base de sua existência, deveriam ser a sua razão de ser. Isto se desejarmos de verdade preservar a vida, honrar o humano. A radical poesia cênica arrebata por falar de nós, homens sem Deus, ainda que religiosos, derrotados filhos do lixo e do plástico que nós próprios criamos, incompetentes diante do nosso mundo. Um tapa na cara, para crescer. Atenção, a temporada será curta, corra para ver. O velho e bom teatro vai te abraçar, vai te deixar voar livre, puro, num mundo de ideias interessadas em celebrar o humano, ideias teatrais essenciais.
P.S. – Depois que o teatro raptou a minha alma, nos anos oitenta, passei a ter muita dificuldade para me manter fiel à minha velha paixão cinéfila, cultivada desde a infância. Passei a trair sem dó o cinema. Perco todos os filmes. Não vi Dogville. Recomendado por uma aluna brilhante, Paula Sandroni, comprei o dvd – mas até hoje ele permanece virgem na estante. Portanto, fica a dica: esta crítica é um puro e simples olhar para o teatro.
Título Original: Dogville.
Autor: Lars Von Trier.
Direção: Zé Henrique de Paula.
Elenco: Mel Lisboa (Grace), Eric Lenate (Narrador), Fábio Assunção (Chuck), Bianca Byington (vera), Rodrigo Caetano (Tom Edison), Anna Toledo (Martha), Marcelo Villas Boas (Ben), Gustavo Trestini (Sr Henson), Fernanda Thuran (Liz), Thalles Cabral (Bill Henson), Chris Couto (Sra Henson), Blota Filho (Thomas Pai), Munir Pedrosa (Jack McKay), Selma Egrei Ma Ginger), Fernanda Couto (Glória) e Dudu Ejchel (Jason).
Idealização: Felipe Lima.
Cenário: Bruno Anselmo
Luz: Fran Barros
Figurino: João Pimenta
Visagismo: Wanderley Nunes
Trilha Sonora Original: Fernanda Maia
Realização: Sevenx Produções Artísticas.
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli
Estreia dia 2 de novembro no Teatro Clara Nunes.
Temporada: De 2 de novembro a 16 de dezembro. Sextas e sábados, às 21h e Domingos, às 20h.
Duração: 120 minutos. Classificação: 16 anos. Ingressos: Sexta-feira Plateia: R$ 80,00 (inteira) / R$ 40,00 (meia). Balcão: R$ 50,00 (inteira) / R$ 25,00 (meia). Sábados e Domingos: Plateia: R$ 100,00 (inteira) / R$ 50,00 (meia). Balcão: R$ 70,00 (inteira) / R$ 35,00 (meia)
TEATRO CLARA NUNES – Shopping da Gávea, R. Marquês de São Vicente, 52 – Gávea, Rio de Janeiro – RJ. Tel.: (21) 2274-9696
Horários da bilheteria: Segunda a sábado, das 13h às 21h. Domingo, das 13h às 20h.
TEATRO PORTO SEGURO – SP
De 25 de janeiro e 31 de março de 2019 – Sextas e sábados às 21h e domingo às 19h.
Ingressos: Sextas-feiras R$ 80,00 plateia / R$ 50,00 balcão/frisas. Sábados e domingos R$ 90,00 plateia / R$ 60,00 balcão/frisas.
Classificação: 16 anos.
Duração: 100 minutos.
TEATRO PORTO SEGURO
Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo.
Telefone (11) 3226.7300.
Bilheteria: De terça a sábado, das 13h às 21h e domingos, das 12h às 19h.
Capacidade: 496 lugares.
Formas de pagamento: Cartão de crédito e débito (Visa, Mastercard, Elo e Diners).
Acessibilidade: 10 lugares para cadeirantes e 5 cadeiras para obesos.
Estacionamento no local: Estapar R$ 20,00 (self parking) – Clientes Porto Seguro têm 50% de desconto.
Serviço de Vans: TRANSPORTE GRATUITO ESTAÇÃO LUZ – TEATRO PORTO SEGURO – ESTAÇÃO LUZ. O Teatro Porto Seguro oferece vans gratuitas da Estação Luz até as dependências do Teatro. COMO PEGAR: Na Estação Luz, na saída Rua José Paulino/Praça da Luz/Pinacoteca, vans personalizadas passam em frente ao local indicado para pegar os espectadores. Para mais informações, contate a equipe do Teatro Porto Seguro.
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O amor ao teatro e a paulicéia zampariana
Eu te amo, ó São Paulo! – e este amor é tão mais sincero do que tudo, por uma razão bem simples: sou carioca. Portanto, em nome de uma esquisita rivalidade incentivada por tantos há séculos, eu deveria espumar ódio, ranger os dentes e elencar um rol interminável de defeitos contra a enfumaçada megalópole. No entanto, a realidade é outra, o meu coração saltita feliz diante da agitação louca daqui. Ó, São Paulo! Que as suas luzes façam sempre a minha felicidade!
Confesso, sem medo: a minha vontade é bailar pelas ruas, como se doida eu fosse. Alguém pode perguntar, aflito, a razão de tamanha euforia. E eu direi que, por enquanto, é o teatro, sim, só o teatro, pois não tenho tido tempo na vida para averiguar se a cidade tem outros encantos tão irresistíveis quanto o teatro para oferecer. Deve ter, suponho, mas não quero nem saber, pois se eu conhecer algo mais assim tão arrebatador, vai ser um perigo, me mudo.
Recentemente, graças a uma aluna estudiosa, voltei mais uma vez as ideias para Franco Zampari (1898-1966). Não dá para pensar o teatro do Rio e o de São Paulo sem passar por ele, quer dizer, sem passar pelo TBC (1948-1966?). Zampari instituiu um modo novo, louco, absurdo, extemporâneo mesmo, de produzir teatro, com um padrão econômico delirante, dissociado do real. De certa forma, ele quebrou o padrão antigo, das velhas companhias dos primeiros atores, formulado no Rio, sem botar nada no lugar, pois o modelo que jogou na praça era inexequível. Uma via de exceção.
Este pode ser um debate longo, capaz de gerar uma forte controvérsia. E, quem sabe, pode ser até bem divertido. A Companhia Maria Della Costa (1948-1974), gerenciada por Sandro Polonio, seria um contraponto no exame do caso, ainda que o modelo proposto por Sandro, uma espécie de modernismo moreno, não tenha sido reconhecido na época. Bem ao contrário, até: Sandro e Maria apanharam muito, injustamente. Mas não é este o foco aqui. O que importa frisar é que, como herança do redemoinho de busca de um teatro precioso, de preço irreal, capitaneado por Zampari, surgiu uma carpintaria esmerada de trato da cena. Poderiam cogitar dizer aqui que a matriz foi a cabeça italiana, dos diretores italianos, mas eu discordo – defendo que a origem é a loucura absoluta de Zampari. A ostentação levou ao refinamento formal.
Esta forma cuidada se tornou o berço do teatro paulista. As produções paulistas surpreendem sempre: elas podem ter texto ruim, atores canastrões ou artificiais, direção pífia, mas a cena em que este todo precário se move… é sempre preciosa. O acabamento dos cenários, a qualidade dos figurinos, a geometria da luz, toda a cena, enfim, é, digamos, zampariana. Vale criar o novo adjetivo e honrar a origem.
No Rio, no entanto, o efeito foi outro. A partir da aventura tebecista, morreu o estilo preconcebido de cena e de solução de palco dos velhos atores, mas não se afirmou o esmero zampariano. A cena tendeu a se refugiar na exploração do encanto dos atores ou na inventividade dos diretores – palco nu, mal vestido e mal acabado não é coisa rara. O padrão zampariano não vingou na praia carioca. Despojamento e irreverência se tornaram rimas fáceis para descuido, desleixo, falta de acabamento. A consciência da cena como espaço de construção artística não se tornou uma constante, um a priori. Em alguns casos, a impressão que se tem é que os artistas pensam que a plateia vai olhar apenas para os atores e tudo ao redor pode ser descuidado.
Nestes dias agora, em São Paulo, rápidos demais, mesmo com baixo índice de espetáculos vistos, este diagnóstico, que me aparecera há algum tempo como intuição, se confirmou. Vi quatro espetáculos em três dias. Por total falta de ingresso e de acesso à produção, não consegui ver Chaplin, no Espaço Tomie Othake, montagem a respeito da qual eu teria interesse em escrever. Em compensação, fui ver um espetáculo muito ruim, fraco mesmo, tão fraco que não desejo me estender na sua abordagem. No entanto, vale a ressalva: apesar da cena ruim, o acabamento da produção era grandioso.
Os outros trabalhos vistos merecem destaque: obras admiráveis. Fui ver Anatol, de Arthur Schnitzler, direção Eduardo Tolentino, montagem do grupo Tapa, no excelente Teatro Paulo Eiró – uma casa de bairro de qualidade bastante boa, sem equivalente no Rio de Janeiro (aliás, os teatros de São Paulo merecem um estudo à parte). A oportunidade da encenação é surpreendente. O tema, tratado numa coleção de histórias, focaliza o universo das conquistas masculinas, o donjuanismo. Leva ao debate acerca da liberdade no afeto, a natureza verdadeira do amor, o direito ao uso e ao abuso das mulheres, enfim, à visão masculina do amor e à camaradagem entre os homens. A montagem apresenta o original num formato de painel teatral muito interessante.
As tramas passam em sequência progressiva, com o elenco armando e desarrumando os cenários, em composição sempre pontual, sugestiva, até chegar ao desenlace, à cena vazia e à solidão, no frio e na neve, na linha de Alphie (Como aprendi a amar as mulheres). Com ótimos desempenhos – a direção de ator de Tolentino é sempre um deslumbramento para quem gosta de teatro – a qualidade da cena estimula o pensamento a respeito de um tema quente atual, os limites do direito de cada um do uso do outro.
Uma outra encenação cortante materializa uma verdadeira celebração em grande estilo da arte do palco, em cartaz no SESC Vila Mariana. Deverá – vamos torcer – vir para o Rio, pois trata-se de um trabalho excepcional de arte e de contemporaneidade. Trata-se do icônico Vincent Rider, de Philip Ridley, encenação de Darson Ribeiro dotada de um grau de resolução cênica de tirar o ar. Não vou estender os comentários aqui, pois pretendo escrever uma crítica da peça. É preciso assinalar, contudo, que o cenário sufocante é varrido por uma interpretação de abalar a estrutura do mundo, de Sandra Corveloni, a mãe de um jovem assassinado de forma bárbara por ser homossexual.
Finalmente, fiz questão de ver Natasha, Pierre e o Grande Cometa de 1812, de Dave Malloy, direção brasileira de Zé Henrique de Paula, espetáculo apresentado no 033 Rooftop, espaço alternativo do Teatro Santander. Colorido, dinâmico e divertido, O Grande Cometa tem o mérito de sugerir o debate a respeito da estrutura do espaço cênico teatral. De repente, é como se o Teatro de Arena casasse com o TBC e a união desse certo – fossem felizes para sempre.
O libreto apresenta uma linha de ação dramática bastante convencional, enquanto dramaturgia: é apenas uma história de amor. Mas, convenhamos, que amor… Em resumo, a partir de um recorte da trama de Guerra e Paz, de Tolstoi, narra-se com razoável humor e certa irreverência formal uma história de amor ousada para 1812, com a mocinha traindo o noivo e encantando, ao final, o melhor amigo do ex-noivo.
Brincando com a possibilidade de ser múltiplo, própria do teatro, o espetáculo aposta nesta visão inventiva do mundo – se o cometa pode mudar os seres humanos, por que os seres humanos não podem mudar o teatro? – a cena pergunta. E responde com euforia, através de muita dança, música, canto, dramatização cantada e dançada. O espaço ajuda, o jogo de cena se espalha por cinco áreas de representação e duas passarelas. A estrutura permite que as cenas aconteçam em diferentes cantos, sejam vistas por ângulos variados, ainda que o fio condutor permaneça claro e contínuo, progressivo. Isto significa que não há uma visão única do espetáculo. Um pouco como se o século XIX trouxesse uma forma caleidoscópica de ver o mundo, a forma que prevalece no nosso tempo, uma era de multiplicidade de visões e de opiniões.
Aliás, vale observar a dimensão do novo em cena – a ação dramática é praticamente toda cantada. Mas o canto dos atores, contudo, apresenta variações muito interessantes, oscila entre o dramático e narrativo. Em vários momentos, em especial na abertura e no encerramento, no Baile e em Balaga, o conjunto dos atores ganha a cena e instaura um reino feérico de luz e de plenitude estética humana, festa para o olhar. A sensação é inusitada, com palco e plateia se entrelaçando. A montagem vale uma ida a São Paulo, pois dificilmente poderá ser apresentada no Rio.
Nestes três casos, duas características são decisivas: o preciosismo cênico e a intensidade-densidade atoral. O preciosismo cênico deve e pode ser vinculado a Zampari, seria a sua grande herança positiva. Ele aparece até mesmo no seu esmero maior, a preocupação de trabalhar com grandes diretores, prática que instituiu um grau de exigência sério, no mercado paulista, para a definição da função de diretor.
Já a qualidade dos atores, sua intensidade-densidade, tudo indica que precisamos reconhecer como coisa nossa, marca da identidade nacional. Na área da História do Teatro, ainda não sabemos explicar este fenômeno. Temos um teatro que foi inaugurado por um grande ator – pois nenhum autor do seu tempo alcançou a força artística de João Caetano (1808-1863). Talvez a garra da alma brasileira tenha um papel neste campo. E, afinal, a força e o ímpeto dos atores viabilizou, ao que tudo indica, a sobrevivência do palco nacional, após o encontro da cena com o extremo desmedido que foi, exatamente, a figura de Zampari.
Há, então, um subtexto caudaloso sob as palavras, sob as letras. O subtexto diz de uma força paulista peculiar, a capacidade de gerar um teatro de impacto, importante mesmo para a sensibilidade do país, desmedido como o jeito de ser-Brasil, um jeito comum a todos da terra. Só que, diante de teatros oscilantes por todo o território, São Paulo construiu um mercado de teatro de alta voltagem. Lado a lado, há o teatro-diversão, bem comercial, o teatro cultural, o teatro de arte, o teatro de invenção. Todos os gêneros desfilam na cena, ainda que a velha ala intelectual tacanha torça o nariz para certas linhas: até isto há por lá.
Na sala de espera de uma das montagens, presenciei pessoas comuns debatendo entre si as peças que viram recentemente com extrema propriedade e um interesse comovente. Nos diferentes teatros, mesmo na tal peça ruim, não falta público. Em consequência, nós, forasteiros, deixamos de ser sedentários e nos transformamos numa espécie de inversão dos velhos bandeirantes, agora em busca do ouro da alma de São Paulo. Como se contemplássemos minas faiscantes, ficamos extasiados diante de palcos paulistas, tão prodigiosos. Corações na mão, não existe saída: só nos resta amar São Paulo.
Anatol
Teatro Paulo Eiró
Sextas e aos sábados, às 21h
Domingos, às 19h
Ingressos: R$ 20,00/R$ 10,00 (meia entrada)
Ingressos somente na bilheteria do teatro
(aberta com uma hora de antecedência)
Até 30 de setembro
Avenida Adolfo Pinheiro, 765 – Santo Amaro
Duração: 110 minutos
Classificação: 14 anos
Vincent River
Teatro SESC Vila Mariana
Categoria: Drama
Classificação: 12 anos
Duração: 1h 30m
SESC Vila Mariana
R. Pelotas, 141 – Vila Mariana – Tel: 5080-3000 Apresentações: Sex 20h30, R$20 | Sáb 18h, R$20 Temporada: A partir de 17/08/2018 até 29/09/2018
O Grande Cometa
Teatro Santander – 033 Roof Topper
Sexta 21h30, Sábado às 16h00 e 21h30, Domingo às 19h30
Classificação: Não recomendado para menores de doze anos
Duração: 2h30 (com 20 minutos de intervalo)
Ingressos: De R$ 65,00 a R$ 160,00
Experiência Gastronômica Russa (cardápio com entrada + prato principal + sobremesa): R$ 130,00 (compra exclusiva pelo site)