Vamos tentar discutir a pauta: o Planalto precisa, com urgência, de um funcionário especial, qualificado, o criticorte. Vale chamar um plebiscito. O criticorte teria a função – e o tempo do verbo anda com força por lá! – não de impedir os micos, pois estes são parte constitutiva do poder, mas sim de sustar a possibilidade dos orangotangos, aqueles episódios mostrengos orquestrados pelos poderosos da estação.
Por exemplo, hoje, véspera de Natal, no jornal O Globo, há uma matéria com foto radiosa de excelente valor didático, na página 9 do Primeiro Caderno. Ela diz muito claro o que o cidadão carioca pode esperar do governo. Digo cidadão carioca não para falar dos habitantes ou votantes radicados no Rio de Janeiro, não se trata disto. Quero propor, com a expressão, a identificação de uma nova categoria de brasileiros, nem tão nova assim, pois, segundo as minhas pesquisas e as minhas suspeitas, ela surgiu pela primeira vez no século XVI. Refiro-me ao sujeito nascido no Brasil, em qualquer rincão, particularmente dotado de perspicácia e sentido crítico, cara pálida de espanto mesmo, alguém que vive à parte – e por isto carioca, casa de branco, o forasteiro náufrago perdido que ficava à espreita dos índios com a esperança de entender o que era aquilo… Segundo o populacho adesista e capacho, a definição objetiva significa reconhecer que o sujeito é do contra. Pois existem nesta terra muitos indivíduos deste tipo. E este tipo pôde constatar hoje, graças à rispidez absurda do Sr, Pimentel, que o governo não está aí para nada, segue ao lado e ao largo, com suas enfumadas convicções.
Mas, se houvesse em Brasília um criticorte competente, a cena não teria sido tão grotesca, tão digna de uma república musácea, próxima do Zorra Total. Pois um criticorte, hábil gestor de cena para o primeiro escalão, instituiria de saída uma oficina de treinamento corporal para os donos do poder. Logo nas primeiras lições, depois de aprender que falar com os jornais é falar com o povo, e, reforçando a educação básica, aquela que vem de casa, sublinhando a obrigatoriedade, no estado democrático, de dar entrevistas, o primeiro escalão aprenderia que não se aparece em fotografia com os braços cruzados, cara de pêsames e fúria, a não ser que a própria mãe tenha morrido. Ou a mãe de alguma figura de extrema projeção popular.
Vários treinamentos seriam postos em prática, com o objetivo de fazer com que nós, cidadãos cariocas, não tenhamos sinistras impressões do governo ao ler as páginas. Um curso permanente, de longa duração, seria a arte zen do sorriso. E da cara zero, a deusa dos diplomatas, praticantes cotidianos da modalidade, seres treinados para ouvir batatas sem mover músculo. Outro curso revelaria a importância da intensidade e da limpidez do olhar quando se tem alguma boa intenção – ou permitiria ao menos desenvolver a arte de bem disfarçar, com um bom uso dos olhos, a alma espúria, o mau-caratismo e assemelhados. Continuaríamos a ter maus políticos, nenhum estadista, porém teríamos o prazer de averiguar o grau de evolução expressiva de cada canastrão que se projetasse, depois de arrebatar um bom renque de votos ou ao usar com maestria relações sociais estratégicas – seríamos mais sofisticados. E sofisticação, em sociedade, é fundamental.
A seguir viriam aulas básicas de figurino: ao Sr. Pimentel, seria recomendado o abandono do terno preto de listras, muito associado à máfia e aos gangsteres, em tal grau que hoje em dia os maiores bandidos, quer dizer, a elite do banditismo, os mais inteligentes, até evitam este figurino, para não dar bandeira. Outra peça a aposentar seria a gravata roxa, cor ainda associada ao luto, ao enterro, aos pêsames, sentimento que muita gente teve ao ler a reveladora entrevista do ministro, quando se esperava alguma indicação de limpidez, transparência e elegância no proceder.
São palavras ao vento, na verdade. Brasília não se importa com o cidadão carioca, cada vez mais uma parcela menor da população, sem força política. Dizem que se trata de um problema de geografia – Brasília não tem paredes, não tem rochedos, nem morros, colinas, montes ou montinhos. Significa dizer, a cidade tem uma propriedade especial para o som – tudo se ouve, tudo se sabe, mas nada ecoa… Vai daí, ninguém vai criar a função de criticorte – e talvez seja bom mesmo, até porque é melhor deixar claro o tamanho da pedrada e do descaso. Não vale falar ao povo e para todo o País com elegância existencial, pois talvez este artigo esteja em desuso. Recorra-se ao jogo grosseiro – a partida se torna bem franca. O interlocutor fica logo sabendo que a sua opinião e até mesmo todo o povo é só um detalhe, como alguém lá mesmo no poder já proclamou. Portanto, de lá para cá, é tudo direto. Não há contradição entre fala, imagem, expressão, gesto e figurino. Melhor assim: de Brasília, ninguém pode dizer que não exista por lá uma espantosa coerência! Então, que venham os orangotangos… E poderosos.
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