Um dia você desejou mudar o mundo: fazer com que ele, velho e gasto, parasse de atrapalhar o seu sonho de viver melhor. Quem sabe você conseguiu alguma coisa, quem sabe o mundo cedeu, mas, quem sabe ele mostrou as garras cinzentas, passou as unhas afiadas na sua alma. Quem sabe você aprendeu: curou as cicatrizes, sorriu, olhou para a vida com o olhar inteiro e foi viver, pois a vida ainda é o que há de melhor. Se você deseja passar por este caminho outra vez, brindar a vida com olhos de menino diante de cenas de irretocável beleza, corra, não olhe para trás, vá ver “Um violinista no telhado”, novo espetáculo da dupla Charles Moeller-Cláudio Botelho no Teatro Oi Casa Grande. Todo ser humano tem direito ao sonho. Mais: tem direito a um teatro de sonho, de encantamento puro, com o palco concebido segundo a arte de mostrar, cantar, dizer, dançar e emocionar. Raras foram as vezes, no palco brasileiro, que se chegou a este patamar de pura arte. Não deixe de conferir, é História. Faltam adjetivos no idioma para dar conta do que você vai ver, verdadeiro show de encanto, amor e arte.
Em cena, está a pequena Anatevka, com sua rudeza campestre de 1905. A minúscula aldeia russa, construída pelo texto de Joseph Stein a partir da ficção de Sholem Aleichem, feita de madeira, natureza, amor e solidão, é uma delicada jóia cenográfica (Rogério Falcão), capaz de evidenciar o sinuoso trajeto dos vínculos existentes, entre o público e o privado. Abriga a família de Tevye (José Mayer), um leiteiro tão pobre quanto sensível, um desempenho magistral, uma rara combinação de interpretação emocionada e rigoroso desenho musical. O trabalho de José Mayer tem um impacto extremo por conseguir expressar com brilhantismo a idéia do homem como sustentáculo do mundo, o indivíduo como artífice inspirado do jogo social, em particular nas canções “Tradition” e “If I were a Rich Man”. Ele é parte de uma colônia judaica típica da época. Ao lado de sua mulher, Golda, uma exemplar senhora de casa judia vivida em sua plenitude por Soraya Ravenle, atinge o lirismo mais arrebatador na canção “Do you Love me?”.
Portanto, ele não está só – muito ao contrário. Há uma extrema beleza em toda a arquitetura cênica, graças à direção inspirada de Charles Moeller, capaz de expor com maestria a força criativa da tradução de Cláudio Botelho. A beleza também está nos figurinos, mais do que exatos, de Marcelo Pies. Está nas coreografias, a um só tempo elaboradas, bem desenhadas, lúdicas e impactantes, originais de Jerome Robbins, recriadas por Janice Botelho. Ecoa na música, sofisticada mistura de sonoridades heróicas, folclóricas, líricas, populares e dançantes, de Jerry Bock e Sheldon Harnick, sob direção de Marcelo Castro. Reverbera na poesia absoluta da luz de Paulo César Medeiros, responsável por cenas de sonho, enlevo e abstração poética.
E a beleza transparece nos encontros dos diferentes personagens, para revelar meandros humanos surpreendentes – a delicadeza resoluta das filhas casadoiras, Tzeitel (Rachel Rennhack), Hodel (Malu Rodrigues) e Chava (Julia Bernat), decididas a romper com os casamentos arranjados; a determinação sedutora dos noivos Motel (André Loddi), Perchik (Nicola Lama) e Fyedka(Cirillo Luna). A graça do elenco infantil compenetrado – as outras filhas (Sofia Viamonte e Hannah Zeitoune), o pequeno violinista (Jonas Queiroz). A linha de criação é sempre densa, ininterrupta, dá consistência e força lógica a todos os detalhes. É irresistível a bisbilhotice caricata da casamenteira (Ada Chaseliov) e o impacto detalhista das pequenas ambições do açougueiro (Dudu Sandroni). A cena do pesadelo, com um impressionante balé de almas do outro mundo e as hilárias Fruma Sarah (Marya Bravo ) e Vovó Tzeitel (Cristina Pompeo), deve ficar como uma construção antológica do teatro de nosso tempo. Todo o elenco, numeroso, responde com brilhantismo absoluto à proposta, um acerto total em matéria de criação e de expressão teatral.
Parece fora de dúvida que “O violinista do telhado” é o espetáculo deste ano de 2011 e será uma página importante na história do teatro nacional. A trama fala de um drama impressionante, que, no seu conceito, tem impacto forte sobre as nossas existências. Ao lado da vida da família, da rotina da aldeia, da pressão para situar os costumes e as tradições no atrito com a marcha dos tempos, está em cena o jogo do poder ao longo da História, capaz de perseguir e massacrar indivíduos, minorias, pequenas identidades. O lar de Tevye se surpreende com a possibilidade do amor em novas cores – a chance das moças casarem com homens de sua escolha, contra o costume de arranjar noivo. A transgressão é aceita, renova os rumos da vida. Mas, assim como a visita inusitada do amor sacode a casa, assim a aldeia é surpreendida com a falta de amor entre os homens.
Anatevka, pequena pátria poética de Tevye, é também palco do Progrom, a perseguição e o massacre aos judeus, ato de violência que os obriga a abandonar tudo, em busca de novo pouso, novos lares. Ou seja – diante dos poderes dos tempos ou dos homens, o que resta é a habilidade de tentar ser como um violinista no telhado: alguém em busca de um equilíbrio quase impossível, em luta para não sucumbir em um abismo. Em um país como o nosso, afeito a tantas formas de brutalidade existencial, em que as almas precisam se exercitar em um permanente malabarismo para sobreviver, não há a menor dúvida – este é um espetáculo fundamental, para ver e não esquecer jamais. Quem sabe ele nos ajude a todos a viver melhor, deparar sem medo com as superfícies vertiginosas que revestem o chão de nossa época e nos fazem buscar meios inacreditáveis para ficar de pé, sem rodopiar, sem esborrachar no chão. Ao teatro, rápido, lá está da vida a melhor lição!
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