Uma rasteira na emoção convencional
Não, eu não vou mandar no seu coração, siga a sua vida, a sua rotina miúda, não vou dizer para você ir ao teatro, este ato de ilusão vadia, hora perdida. Talvez você goste de sofrer ou de ser triste, então não vá. Eu vou só contar para você, com alegria sincera, o jorro de criação, festa, irreverência, cor, música, celebração da vida, um vendaval lírico irresistível, que me arrebatou outro dia no Teatro Net, em Copacabana. Pois é, Copacabana, para sempre terra de perdição: me perdi de mim. E me perdi em boa companhia, a estreia do inacreditável Zeca Pagodinho – Uma história de amor ao samba, de Gustavo Gasparani.
Você não sabe o que acontece de magia carioca naquela casa chique: conseguiram uma reinvenção do Rio de Janeiro. Pudera, o texto foi escrito por um homem de teatro de sete talentos, Gustavo Gasparani, um ser zona sul que é também um homem do samba, passista de primeira linha da Mangueira, especialista em carnaval.
Assim, o roteiro inova como musical biográfico, pois o autor-ator-passista olhou a alma do biografado e decidiu incorporar a dita à estrutura do roteiro. Além de trabalhar com a definição de alma do homenageado, ele amalgamou várias formas históricas do musical brasileiro. A principal só podia ser mesmo a revista, aquela que revelou a musa de Madureira, Zaquia Jorge, e permitiu até que o bairro mágico, outrora, tivesse um teatro.
Neste trilho, o texto apresenta a trajetória do herói sim. Mas ela vem banhada em irreverência, bom humor, alto astral, muito samba e muita suburbanidade, quintal e laje. A fortuna suburbana está por toda a parte, pois Zeca Pagodinho nunca fez a Conceição, digamos – subiu, mas subiu como um artista fiel ao seu lugar, a periferia, e continuou a ser o menino arteiro de sempre. O moleque de turma, que leva o seu povo para a frente e para o alto.
E é em torno disto que a peça roda, como uma roda de samba de chão batido. O ponto central apresentado em cena é a saga de um herói carioca desconcertante, suburbano, sambista, malandro, gente muito gente – não tem mito, não é invenção, é vida vivida na marra e no murro do destino. É de tirar o fôlego.
A vertiginosa ciranda de vida surge retratada em dois tempos diferentes, mas complementares, em dois atos de cenas curtas, rápidas. No primeiro, o nascimento e a formação, no segundo, o desafio fenomenal de alcançar e sobreviver sem mácula à glória. Em todas as cenas, a todo momento, a música surge orgânica, articulada com a ação, uma vaga lembrança de rodas de samba espontâneas, de quintal, quando a invenção musical veste todos os gestos.
Irajá, Madureira, Del Castilho, Ramos, Cascadura – está tudo no palco. E mais – travessuras de menino, biscates, subemprego, jogo do bicho, morro, bebedeiras, botequins, conversa fiada, garra desenfreada de viver, consagração, delírio de fãs, prêmios, sucesso. Uma das cenas de maior impacto é exatamente a cena do encontro com o sucesso, o cantor ingênuo assediado por fantasmas vestidos de clóvis, apavorantes bate-bolas, pesadelo das crianças do subúrbio.
O diretor-ator não economizou no jogo de cena para fazer valer este imenso caleidoscópio humano. Optou, segundo a linguagem que tem explorado nas suas últimas direções, por uma forma teatral épico-narrativa e dramática muito ágil, acelerada como um trem direto.
Para tanto, os atores são narradores e personagens, o elenco funciona como um coro ao redor dos protagonistas e dobra papéis, desempenha um emaranhado de funções. As cenas são movidas pelos atores, um pouco como, na vida, o imenso esforço humano move o subúrbio, sempre abandonado ao seu destino humilde e aos seus moradores.
Isto equivale a dizer que os atores constroem, com os corpos, os movimentos e as vozes, os carros, os ônibus, os trens, em cenas dinâmicas, com belas soluções geométricas, composições bem estruturadas. Além disso, os atores movem as peças do cenário de Gringo Cardia para materializarem os diferentes lugares da ação – uma coleção admirável de caixas, cubos, escadas e painéis.
São formas materiais que mimetizam a imensa criatividade popular existente no país, no subúrbio em particular, se apropriam dela. E recorrem ao tropicalismo, ou brincam, debocham, com a mais deslavada verve suburbana, como na impagável cena em que os subúrbios, na estação do sucesso, se tornam rótulos de marcas consagradas, num irônico olhar pop.
As cores e os desenhos de arte são um capitulo à parte, pois evocam tanto o universo criativo das escolas de samba como a história do teatro de revista e a ambiência e a imaginária suburbanas. O subúrbio ardente e solar explode no palco nas roupas solares, coloridas em tons quentes, uma paleta muito inspirada, um painel afogueado apto para destacar alguns tons portelenses ao redor – em Monarco, na sereia e no protagonista.
Graças à luz eloquente e espessa de Paulo César Medeiros, especialmente feliz para desenhar os planos e os focos de ação, os figurinos de Marcelo Olinto marcam o olhar. A cena ferve sem parar, um pouco como o subúrbio no verão.
A mistura quente de religião, irreverência e paganismo aflora em diversos pontos, para ter seu ponto mais alto na deslumbrante cena da música Seu Balancê, em que a sereia, uma aparição estonteante, vem ajudar o artista a sair do lado sombrio que, sem dúvida, ronda toda a sua história. Beatriz Rabello é, no canto, no gingado discreto e na sedução, uma aparição diáfana mais do que perfeita.
Sim, o elenco é composto por notáveis, se em algum momento o bicho do teatro já mordeu a sua carne, você conhece bem o povo que está em cena. Só tem fera escolada. Um delírio teatral. Zeca Pagodinho está em ação em três tempos: infância e formação, adulto e, no telão, ele mesmo em pessoa, quer dizer, filmado, zoado o tempo todo, claro, pela cena.
Criança, até os vinte anos, ele é defendido por Peter Brandão, um jovem senhor ator, no palco o único ainda desconhecido. Ele é surpreendente, uma bela revelação – canta, dança, sustenta cenas e contracenas sob um tom despojado, natural, perfeito para o tema. Está em casa.
Adulto, Zeca Pagodinho conta com a impressionante voltagem expressiva de Gustavo Gasparani, um ator brasileiro de perfil raro, capaz de uma extensa linha interpretativa. Esta fortuna permite que ele mergulhe fundo na indicação da carnalidade do astro, mas que também explore coloridos narrativos e épicos, importantes para o conceito da cena.
E os acertos seguem em tom elevado – Édio Nunes, cômico, brincalhão, passista, cantor, senhor de uma linha expressiva de forte tom popular, encanta em especial ao compor, com o solar Bruno Quixotte, a dupla de compadres apresentadores da revista, guias narradores da ação, os santos Cosme e Damião, respectivamente ao contrário.
Douglas Vergueiro é espontaneidade e vigor em estado puro, dono de excelente sentido de tempo cênico, ator carismático, responsável por cenas hilárias no papel do bêbado que Zeca Pagodinho retirou do desvio da vida e levou para ser caseiro em Xerém. Ana Velloso diverte a plateia como a cegonha manca e distraída, capaz de trocar a mamadeira pela lata de cerveja, responsável pela chegada do bebê pagodeiro na casa dos pais.
Wladimir Pinheiro e Milton Filho alcançam sucesso com a maestria no canto e na limpidez de desempenhos, obras que registram com excelência grandes personalidades do samba. Um tem uma tonalidade mais dramática, o outro mais caricata. Psé Diminuta, Ricardo Souzedo, Lu Vieira, Flavia Santana sustentam cenas corais e assinam aparições eficientes para o andamento da ação em diferentes papéis.
Vale destacar ainda duas grandes qualidades do musical. Há um acerto importante na direção de movimento e na coreografia, de Renato Vieira, uma vitória para o musical brasileiro. Ele trabalha com o que se poderia chamar de coreografia espontânea – uma base técnica simples, eficiente, a partir da qual o corpo dança, para expor, sem artifícios, coreografias e movimentos, às vezes até a partir de gestos cotidianos, num fluxo natural de muita beleza. Em vez dos atores se adequarem à coreografia, ela nasce deles ou com eles.
A outra força impressionante é a música, direção musical e arranjos do maestro João Callado. A partir de estruturas simples, com apenas cinco músicos (Glauber Seixas, Lucas Brito, Naná Simões, Rodrigo Jesus e o regente), ele consegue fazer a plateia vibrar como se estivesse diante da sonoridade generosa de Zeca Pagodinho. A roda de samba acontece, o pagode ganha as almas.
E a noite flui tranquila, abençoada por São Jorge ou Ogum, apadrinhada pela eficiente assistência de direção de Cristiano Gualda. É para cada um sair do teatro sob uma aura iluminada, apaziguadora. Se o camarão que dorme, a onda leva, este espetáculo chegou aqui para provar que a cena musical carioca não dorme. Ela está em plena ebulição, apesar da crise e de todos os contratempos vividos.
Dá para constatar que o musical sobrevive um pouco como o subúrbio, que apanha, sofre com o desprezo, mas alimenta a cidade, enquanto um incêndio cotidiano, de sol e de pura energia de vida, toma as suas ruas. Você pode não saber o que é um musical – nunca ter visto nem provado, só conhecer de nome. Mas, se você sintonizou em algum momento com a potencia musical do Rio, não espere ganhar na loteria: fuja da rotina, deixe a vida levar os seus passos e leve o seu coração ao teatro. Ele vai gostar.
Texto,Roteiro Musical e Direção Geral: Gustavo Gasparani
Co-direção: Cristiano Gualda
Direção musical e arranjos: João Callado
Direção de movimento e coreografia: Renato vieira
Produção Geral:Victoria Dannemann e Sandro Chaim
Direção de Arte e Cenografia: Gringo Cardia
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Design de Som: Branco Ferreira
Preparação e Arranjos Vocais: Maurício Detoni
Visagista: Beto Carramanhos
Produção de elenco: Marcela Altberg
Assistente de direção e diretor residente: Fabricio Polido
Assistente e Produtor de Cenografia: Jackson Tinoco
Assistente de Coreografia: Marluce Medeiros
Figurinista Assistente e Produtor de figurino: Almir França
Elenco: Ana Velloso, Beatriz Rabello, Bruno Quixotte, Douglas Vergueiro, Édio Nunes, Flavia Santana, Gustavo Gasparani, Lucianna Vieira, Milton Filho, Peter Brandão, Psé Diminuta, Ricardo Souzedo e Wladimir Pinheiro
Músicos: Glauber Seixas, Lucas Brito, Naná Simões e Rodrigo Jesus; Regente: João Callado
Ensaio aberto: 21 de setembro
Estreia: 22 de setembro
Temporada: 29 de outubro
Local: Theatro Net Rio
Endereço: Rua Siqueira Campos, 143 – Copacabana, Rio de Janeiro
Capacidade: 620 lugares
Classificação: 12 anos
Duração: 120 minutos em 2 atos, com 15min de intervalo
Horários: Quintas e Sextas às 21h, sábado às 17h30 e 21h, domingos às 20h (Não haverá sessão às 17h30 no dia 23/09)
Vendas: Plateia e Frisas – R$150; Balcão I – R$130; Balcão II – R$50
Ingresso Rápido (www.ingressorapido.com.br)
Bilheteria: De segunda a domingo, das 10h às 22h
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Maravilhoso amei!!!! parabéns