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Ei, você aí, me dá um dinheiro aí!

Você gosta de levar susto? Não, não é susto ligeiro, de brincadeirinha, não e não. Pergunto sobre aquele tipo de baita susto, que deixa sua alma suspensa no ar e até o corpo meio desgovernado. É fácil experimentar. Existe um caminho simples para chegar a esta sensação: é só mergulhar na leitura dos jornais.

Claro, os jornais de hoje andam assustadores. Porém, garanto, eles são inocentes, são coisas de crianças bobas quando paramos para ler os jornais do século XIX. Sim, tão perto e tão longe, este pode ser o resumo do primeiro susto. Logo a coisa se agiganta, como o país.

De imediato, desfila nas páginas uma elite que tem aversão ao povo da terra e finge amar o país, finge se importar, como se existisse país sem povo. E vive de… importar! Talvez tenha nascido por aí a mania de amar os coqueiros, a passarada, a natureza pujante. Assim, ficava fácil ignorar o povo indigente – afinal, a tal elite só cria riqueza para si. Não existe o pensamento, obrigatório, de que “ser elite” signfica responsabilidade social.

No entanto, não é só. Na minha experiência recente, não foi este o susto monumental. Afinal, sou uma antiga leitora de jornais velhos. O meu choque atual começou diante de um confronto, velho conhecido, mas cujas dimensões eu ainda não percebera tão claramente. Há nos jornais uma briga teatral curiosa, aliás, até bem pouco tempo ainda estava brilhando forte em cartaz. De um lado figura o teatro disposto a dialogar com a sociedade, o teatro capaz de lutar para viver da bilheteria. Do lado oposto, há uma intelectualidade esnobe que deseja civilizar o país, requintar o povo; este time despreza e ataca de frente o teatro dito comercial, apelativo, a favor das luzes mais requintadas do ocidente.

Acabei acompanhando um pouco da briga, ainda que o meu assunto de pesquisa não fosse exatamente este. No meio do ringue, de repente pulou diante dos meus olhos uma assombração disforme – e aí é que o susto aconteceu. Vi aparecer indícios de leis de tributação do teatro pelo governo. Pois é isto mesmo: no início da República existiram leis de cobrança de impostos sobre a atividade teatral… Ainda não sei muitos detalhes, mas considero a descoberta muito importante.

Fiquei chocada – espero que algum jovem, com um pé no palco e outro nas tábuas da lei, enverede por este caminho e trace uma deslumbrante pesquisa a respeito das relações entre Teatro e Estado no Brasil. Existem trabalhos a respeito do tema, poucos, mas o foco é sobre a regulamentação profissional ou a tentativa de implantar “instituições” de gerência cultural. Falta mapear a trajetória do capital, do dinheiro, do chapéu, da bilheteria, dos cofres públicos e do bolso dos cidadãos. Impostos, tributos, cobranças – e as contrapartidas. E mais, claro, precisamos discutir estes meandros e caminhos.

Sim, é preciso acender a luz neste quarto escuro. De repente, estamos há mais de um século invocando a presença de um fantasma arredio, o papai-Estado, como se ele estivesse imbuído de uma missão no terreiro teatral. Organizamos rituais e celebrações fundadas na ideia de que, para o Estado Brasileiro, a formação cidadã sensível e poética tem valor como lastro social – aquele carregamento que faz o navio da sociedade singrar os mares humanos desenvolto, graças à nobreza da cidadania…

Tudo indica que existe, no máximo, um desejo estatal de situar nos teatros uma atividade de perfil tributável como qualquer outra. Se este fato é concreto e verídico, a urgência se torna outra, não adianta ficar chamando pelo papai: o teatro precisa se unir, tomar conscieincia de si enquanto forma de produção de bens imateriais e simbólicos, para atestar as suas possibilidades de sobrevivência. Que tal tentar dialogar diretamente com a sociedade civil, com as “outras” atividades tributáveis? Dialogar com os cidadãos e seus lugares de articulação? Gerar a consolidação da bilheteria através do convívio social, sem a mediação do Estado?

Na Argentina, Jorge Dubatti, excelente pesquisador e homem de teatro, filósofo, tem liderado a formação de um mecanismo de extrema agilidade para aproximar teatro e sociedade – as escolas de espectadores instauram uma forma nova de convivência entre o palco e os contemporâneos. É verdade que a vitalidade do teatro argentino é surpreendente; por lá, existe o teatro de bilheteria, o teatro comercial, o teatro de grupo, o teatro clássico, o teatro experimental e até híbridos maravilhosos, como por exemplo, o teatro comercial cultural. A impressão que dá, diante do caso argentino, é a de que todo o tetro é comercial.

Não, teatro não é uma forma especial de sacerdócio, não existe para a salvação das almas e não vive da pura energia do universo: sim, o teatro é uma atividade comercial. Não é vergonha ganhar dinheiro com teatro; não é lamentável fazer teatro para dialogar com a sensibilidade da plateia. O artista pode recusar este axioma imposto pelo mercado de arte, traçar uma independência absoluta frente a esta prisão cotidiana, pode tentar inventar o espectador. Representar para o homem ideal que virá-a-ser. De onde vem o dinheiro? Do céu?

Aí mora o grande desafio, a liberdade tem preço. Quando o artista recusa o dinheiro do cidadão comum e concede a alguém o poder e o dom de financiar a sua arte,  como se fosse a sua fada madrinha, neste momento abre-se a porta para reconhecer o direito do padrinho. Existe mecenato sem limite à criatividade? O diretor de marketing, o gerente do banco, o milionário excêntrico querem apenas a livre expressão dos seus tutelados, a arte entregue à arte? No Brasil?

Enveredei por estes pensamentos diante de uma pequena nota de jornal. Nela, o colunista divulgava uma nova lei, de 1894,   sancionada pelo prefeito do Distrito Federal (Rio de Janeiro), de aumento do valor dos impostos a cobrar das companhias estrangeiras em cartaz na cidade. O texto explica que, além dos impostos já estabelecidos, cada empresa teria que pagar 200$ antecipadamente e mais 5% sobre a renda bruta dos espetáculos.

Sabe-se, na leitura do texto, que as empresas nacionais pagariam “o imposto atualmente cobrado”, mas passariam a dar semestralmente um benefício em favor do Theatro Dramatico Municipal. O benefício era o espetáculo em que a renda revertia para algum fim, em especial um artista ou uma causa da arte. Da receita bruta destes espetáculos de apoio ao projeto, se poderia excluir apenas a despesa chamada de “rasa” pela classe.

A situação é bastante curiosa, chama a atenção. Claro, espanta muito o caráter improvisado da engenhoca fiscal: no decreto, o prefeito explica que o recolhimento do imposto teatral será realizado por um fiscal e dois auxiliares nomeados por ele. E que a sua remuneração seria apenas um pro labore, arbitrado pelo próprio edil.

O que estava acontecendo? Bem, já estava em curso a campanha para a construção do Theatro Municipal, liderada por Artur Azevedo, que morreria sem ver a inauguração da casa em 1909. E a classe teatral, portanto, pagou pelo projeto, que jamais funcionou como o teatro idealizado na campanha de Artur Azevedo. Apesar de líder do teatro comercial e de bilheteria, ele sonhara com uma espécie de Comédie Française Tropical. Foi um sonho e sonhos apenas sonhos são, não é mesmo?

Quer dizer, o povo do teatro, para trabalhar, pagava imposto. Sonhou com uma casa teatral deslumbrante e pagou por ela – para não tê-la. Afinal, o Theatro Municipal nunca foi, a rigor, um teatro, mas uma casa para a ópera, o ballet, a música… Historicamente, o teatro só andou por lá por acaso, quase de visita; a casa tem coro, orquestra, corpo de baile, mas nunca teve a tal companhia teatral sonhada.

Curiosamente, a classe teatral insiste ainda em acreditar na hipótese de que possa existir um relevante projeto cultural de Estado, para o teatro, no país. Talvez fosse muito mais negócio ampliar as formas de materializar em cena os próprios sonhos de arte – por sinal, esta foi sempre a forma por excelência de criação teatral no país. Aqui, o engenho que move o palco é o ator, o conceito que ilumina a cena é aquilo que a classe teatral pena, com estudo e trabalho, para pensar. O teatro brasileiro é uma grande pátria de mães solteiras: a classe produz como as mulheres fortes do país lideram as suas famílias, na intimidade da solidão.

Ainda não incorporamos algumas grandes lições construídas na cena brasileira com dedicação e amor. Figuras exemplares do universo da produção, tais como Odilon Azevedo, Gomes Cardim,  Sandro Polônio, Miroel Silveira (apesar de crítico…), Fernando Torres, Aurimar Rocha, Carlos Miranda, Lenine Tavares, persistem absolutamente desconhecidas. E, no entanto, construíram um saber, armaram teias fundamentais para a sustentação da máquina de produção.

Este saber está em cartaz, difuso por todos os lados. Quando analisamos a ficha técnica de produções decididamente teatrais, flertamos com esta materialidade. Vale esclarecer: uma produção decidamente teatral é aquela concebida e realizada por uma gente que vive palco, um povo incapaz de tocar a vida sem o teatro. Eles sobrevivem de teatro, mas não fazem teatro para aparecer, fazer fortuna ou cogitar governar os destinos do mundo. O prazer é outro, bem mais profundo, insubstituível. E, com a sua arte, eles mudam as pessoas, nem que seja por um átimo, um riso involuntário, uma lágrima inesperada. Sob o foco está outra grandeza – ou outra miudeza, o puro humano.

Aurimar Rocha, por exemplo, deu um teatro para a cidade – o Teatro de Bolso Café Pequeno. Apesar das polêmicas que cercam o seu nome, ele batalhou a vida toda para oferecer à sociedade um teatro de interesse para a cidade. Nesta semana, a pequena casa estreia uma iniciativa que tem toda a coerência com a devoção teatral dele: o Festival Midrash estará lá no pequeno palco durante todo o mês.

Festival Midrash 2022, Nem Todo Filho Vinga!

Idealizado por Nilton Bonder e sob a curadoria de Natasha Corbelino e Vilma Melo, o festival permitirá que o espectador de teatro viva uma experiência única, o mergulho na poética teatral negra contemporânea. Os cartazes oferecidos montam um caleidoscópio poético contundente. A proposta, além de urgente, é instigante: será um dos programas obrigatórios da cidade neste mês.

Festival Midrash 2022, Kid Morengueira, Olha o Breque.

Também  estará em cena no mês de maio, no Teatro Dulcina, um espetáculo  bom para afastar fantasmas – Pai Ilegal, de Ulisses Mattos, brinca com os múltiplos ângulos do desafio de “ser pai” no Brasil, uma terra em que até para esconjurar assombração o costume é chamar pela mãe. Neste caso, a grande tradição do riso brasileiro é a tônica, apimentada com a irreverência carioca.

Pai Ilegal, Teatro Dulcina.

O autor sugere a existência, no futuro, de uma imposição legal de formação de pai. A grande consequência da mudança da lei será o aparecimento da figura do pai legal, quer dizer, legalizado, digamos, dotado senão de vocação, ao menos de talento moldado sob provas profissionais. Ou melhor, certificado legal… No país do diploma, pai com diploma.

Para assegurar a qualidade da função, existirá até mesmo blitz policial, nas quais os suspeitos serão testados. A partir de um teste de bafômetro, poderá ser detectada a presença de talquinho, colônia de bebê, pomada para assadura e demais vestígios naturais naqueles que se envolvem na rotina de cuidar de filhos. Neste caso, sem certificado, o pai ilegal vai para a cadeia, para enfrentar uma maratona de regeneração.

Nos dois casos, o que se insinua como modo de fazer teatro brasileiro é a reunião de duas forças colaborativas – de um lado, o ator, ou os atores, ou a classe. Do outro, instituições da sociedade civil, com ou sem vínculos com o Estado, conscientes da importância do teatro para a cultura e a sociedade. O Midrash se enquadra neste fenomenal espaço de investimento na saúde plena das almas.

Então, o monstro assustador que pula das páginas dedicadas ao teatro, nos jornais velhos, não é apenas o resumo dos artigos de uma lei, sancionada para retirar recursos da renda dos teatros em favor do Estado. Bom, é importante reconhecer que o Theatro Municipal se tornou uma joia preciosa no cenário do Rio de Janeiro, não foi demolido, como tantos outros, derrubados pela especulação imobiliária desenfreada. A classe teatral pode se orgulhar profundamente: pagou por ele.

Não, o monstro horripilante não está na superfície da notícia. Não e não. O chocante, terrificante mesmo, é o ato de se dar conta de que esta lição não foi aprendida pela classe teatral, não foi pensada a fundo. A classe teatral não superou este impasse, aceitou as regras deste jogo pequeno. Tanto tempo depois, que Artur Azevedo não nos veja de pires na mão.

Pois o teatro persiste como uma espécie de pai ilegal, desqualificado para cuidar dos seus filhos, sem pleno reconhecimento oficial. Trabalha, produz, paga imposto, mas vegeta como se fosse uma atividade menor, que pode ser relegada ao limbo social. Tanto tempo depois e ainda não existe no Brasil uma política cultural de Estado. Seguimos no escuro, à mercê de podres fantasmas, como se a arte e a cultura não fossem o passaporte ideal para o futuro.

FOTO: divulgação, Festival Midrash de Teatro, espetáculo Iroko, Meu Universo, com Jeff Fagundes.

Festival Midrash

Pai Ilegal

Ficha técnica:

Idealização: Pedro Monteiro

Dramaturgia: Ulisses Mattos

Direção artística: Henrique Tavares           

Direção Musical e trilha original: Marcelo Alonso Neves

Elenco: Pedro Monteiro (Gabriel), Juliana Guimarães (Ísis) e Gabriela Estevão (agente T).

Assistência de direção: Alfredo Boneff

Coreografia: Hanna Fasca

Cenário e Figurino: Marieta Spada

Iluminação: João Gioia

Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues e Rachel Almeida

Gestão de redes sociais: Lyvia Rodrigues e Rachel Almeida

Programação Visual: A4_ – Davi Palmeira

Direção de produção e produção executiva: Tem Dendê! Produções – Tamires Nascimento

Assistência de produção: Jacyara de Carvalho e PV Israel

Assessoria Jurídica: Bruno Assis

Contabilidade: VOX Contábil

Prestação de contas: Alan Isídio

Serviço:

Pai Ilegal

Temporada: de 5 a 29 de maio

Teatro Dulcina: Rua Alcindo Guanabara, 17 – Centro, Rio de Janeiro – RJ

Telefone: (21) 2240-4879

Dias e horários: 5ª e 6, às 19h, sáb. e dom., às 18h.

Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$20 (meia-entrada)

Capacidade: 300 pessoas

Classificação etária: 10 anos

Instagram do espetáculo: @paiilegalteatro