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Crítica de espetáculo:  Clara Nunes – Uma Declaração de Amor

                 

Viva o musical brasileiro!

Vá lá: controle as suas implicâncias. Derrote as suas manias bolorentas. Dê uma chance para o musical brasileiro. Ele promete. Aceite até mesmo esta modalidade tão nossa querida, a do musical biográfico. Lembre-se, o Brasil é um pobre país que precisa de heróis, então é fundamental cultivar nossos valores excepcionais cantando e dançando. Contudo, porém e todavia, se você é de outro time e ama musicais de graça e a seco, corra para ver. Juro que você vai gostar.

Há um musical singelo, quase um caso de arte naif, que você não pode perder. Clara Nunes – Uma declaração de amor está no fim da temporada carioca, justamente em cartaz no Teatro Clara Nunes. Lá a cena nasce desenhada literalmente sob um astral de graça divina.  Para dar vida à nossa preciosa Clara Nunes, absoluto ser de luz, um outro ser de luz varre o palco com a melhor poesia teatral: a deslumbrante jovem Bruna Pazinato.

Atriz e cantora de primeira grandeza, jovem estrela reluzente, Bruna Pazinato vale a noite no teatro. Dona de uma voz de cristal impactante, ela impressiona por sua plasticidade física e por materializar, sem limites quaisquer, o encanto ingênuo, até mesmo místico, característico da cantora homenageada. Trata-se de um fenômeno completo. A rara chance de acompanhar o nascimento de uma grande estrela. Vai perder? Vai contar o quê no futuro?

O roteiro e a direção, assinados por Francisco Nery, favorecem a atriz naturalmente, para dar corpo à declaração de amor do título, razão de ser da montagem. Há uma inteligência aguda na concepção geral da proposta – nascida no religioso interior mineiro, Clara Nunes despontou como cantora nos rituais católicos.

O fato levou à construção de uma cena-altar, povoada durante todo o espetáculo por um coro de santos e decorada por medalhões de artesanato (fuxicos) e estandartes das festas religiosas populares. São Francisco de Assis e Santa Clara de Assis, trabalhos atentos inspirados, de Caio Passos e Amanda Ramos, se destacam na condução da narrativa e no apoio ao andamento dramático. São Jorge (Felipe Portella) e Santa Bárbara (Tina Villela), desenhados sob um tom mais inexperiente, completam a constelação do altar, mas precisavam de uma direção mais forte.

A rigor, as hesitações do espetáculo, provavelmente imperceptíveis para o público regular, partem do texto-roteiro e da falta de mão firme da direção. Contudo, apesar dos percalços, para o diretor, é uma boa estreia na arte.  O original foi concebido exatamente a partir da ideia de “ser de luz”; ela levou o autor a criar uma fórmula religiosa para a narração, salpicada com alguma irreverência – um grande achado. Muito embora estivesse diante de um tesouro narrativo, o autor enveredou por uma linha desequilibrada no tratamento dos fatos.

Neste andamento, a formação da cantora e os primeiros tempos merecem muita atenção, atenção demais. Consequentemente, os quadros, bem divertidos, dedicados aos programas da Hebe e do Chacrinha, se alongam em demasia, se comparados com o auge da carreira da estrela, momento traduzido como uma mera sequência de números musicais apresentados por discretas narrações. 

Fatos retumbantes de sua biografia, como o amor de Paulo Cesar Pinheiro, o mergulho na África, o encontro com a Portela, mereciam cenas singulares. Apesar de tudo, a vivacidade de Bruna Campello para caracterizar Hebe Camargo e a composição luxuosa de Gilson Gomes para traduzir a folclórica figura do Chacrinha compensam o alongamento destes primeiros grandes encontros.

 

A cenografia de George Bravo encontrou uma bela estrutura para materializar um altar que é devoção e música, na realidade, devoção à música, com os instrumentistas no meio da cena, próximos da deusa cantora, enovelados também com os padroeiros da noite. Infelizmente a decoração da cena, mais barroca e brasileira, não se transforma quando acontece a adesão da cantora aos rituais afro-brasileiros. Seria uma explosão sentimental em dó maior.

A solução cenográfica, porém, trouxe alguns desafios para a  marcação e às vezes a cena fica um pouco confusa, sem objetividade. Em compensação, a direção de movimento de Sueli Guerra permitiu garantir bastante foco no desenho dos gestos. Há uma entrega corporal forte do elenco, com as épocas e situações demarcadas com nitidez.

A iluminação, de Adriana Ortiz, é o ponto mais fraco da montagem, destoa muito do desenho geral. Não é reconhecível como uma iluminação de musical: escura demais, com focos embaçados ou indefinidos, desconectada dos climas. Algumas cenas ficam visualmente bem pouco nítidas. O tom intimista, de luz fechada e penumbrosa, confessional, é inadequado ao jorro de alegria do musical.

O figurino de Letícia da Hora tanto evoca primorosamente a figura sempre etérea de Clara Nunes como compõe o naipe de personagens com adequação. Há até mesmo notas bem-vindas de alegria e de humor, na elaboração das composições – o luxo folclórico de Hebe repercute, a extravagância do Chacrinha se impõe, a personalidade de cada santo surge à flor dos panos.

E o resto, afinal, é música – um conjunto de instrumentistas batutas, daqueles que fariam Clara Nunes flutuar no céu dos melhores acordes, torna a noite uma aventura inesquecível. Com arranjos de Nico Rezende e Zeh Netto, a partitura de toda a vida da cantora se impõe no palco para emocionar para valer todo e qualquer brasileiro. A beleza é tanta que não há espaço para indicar números de destaque: o ideal é ir conferir in loco.

Claro – a coisa toda veio lá de Minas Gerais, mas um tom carioca domina o espaço. Um toque que parte da velha religiosidade da Penha e desagua no grande oceano musical de Madureira tece o véu da noite, faz aflorar a grandeza maior do Rio de Janeiro, a sua potência na arte. É surpreendente que um espetáculo desta grandeza emocional não tenha recebido a atenção do Prefeito Eduardo Paes e do Secretário Marcelo Calero. Gente, como pode o Prefeito Eduardo Paes não ter ido ainda ver Clara Nunes – Uma declaração de Amor? Ele não diz que é Portela?

Então é isto. Trata-se de uma montagem que deve ser levada para a quadra da Portela, para um projeto música dos deuses para o povo na Quinta, para shows em Copacabana e peregrinação em grandes lonas culturais. Sagração da arte carioca maior.

Pois uma coisa é batata: o povo adora os musicais. Vibra com musicais biográficos. Sente intensa paixão pela arte de Clara Nunes. E, sinto desagradar as zelites do nariz torcido, que sempre odiaram o musical brasileiro, mas a verdade precisa ser dita em alto e bom som: este é o musical brasileiro.

Ele chegou, ganhou a cena sob múltiplas formas, inclusive biográficas. E vai ficar, por ser pura delícia para as almas. O verdadeiro sonho de liberdade do ser: cantar e dançar livre no espaço, entregue ao fluxo livre dos sentimentos. Musical é isto. Portanto, não se deixe atropelar pelo bonde da História, corra, vá ver.

Clara Nunes – Uma Declaração de Amor

Ficha técnica:

Roteiro e direção: Francisco Nery

Direção musical: Nico Rezende

Direção de produção: Ernaldo Santini

Cenografia: George Bravo

Figurinos: Letícia da Hora

Iluminação: Adriana Ortiz

Arranjos: Nico Rezende e Zeh Netto

Direção de movimento: Sueli Guerra

Assistente de direção: Wagner Brandi

Assistente de direção musical: Zeh Netto

Cenotécnica: Humberto Silva e

Humberto Silva Jr.

Designer gráfico: Paulo Cordeiro

Assessoria de Imprensa: Julyana Caldas

Elenco:

Clara Nunes: Bruna Pazinato

Hebe Camargo: Bruna Campello

Chacrinha: Gilson Gomes

Santa Clara: Amanda Ramos

Santa Bárbara: Tina Villela

São Jorge: Felipe Portella

São Francisco de Assis: Caio Passos

Serviço:

Local: Teatro Clara Nunes – Shopping da Gávea

Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 52 – Gávea – tel: 2274-9696

Temporada: 10/08 a 10/09

Horários: quinta, às 18h / sextas e sábados, às 20h / domingo, às 19h

Duração: 1h30 min

Classificação: 12 anos

Gênero: musical

Valores: Plateia e balcão R$ 140,00 inteira e R$ 70,00 meia / Balcão superior R$ 50,00 (preço único)

Onde comprar: Sympla