
O contraste é chocante: ao lado de farmácias e drogarias que são enormes palacetes, com imensos salões enfeitados com luzes feéricas, teatros tímidos, encolhidos, às vezes quase invisíveis. Há algo errado nesta nova geografia urbana. E o motivo? Para pensar melhor a respeito, vá ver a preciosa peça em cartaz no novo Teatro Ipanema. O nome explica boa parte do problema: Meu Remédio.
É um solo divertidíssimo do excelente ator Mouhamed Harfouch. Para desvendar o significado do título, um belo achado, só indo lá ver a peça. Não é possível dar qualquer pista. Vale a pena ir – é programa na medida para o carioca, que adora rir. Esqueça a farmácia e escolha ir ao luminoso teatro, para tratar de si com mais carinho.
O nome do ator, um tanto difícil para o ouvido e a fala brasileira, é parte importante da trama. Filho de imigrantes – um casamento de um árabe com uma portuguesa – ele até ganhou um Teixeira no meio do nome. Resolveu, contudo, assumir a complicada sopa de letras. A vivência do desafio, ao longo da vida, deu peça. Uma boa peça.

Na verdade, os valores maiores da cena não estão no texto, escrito pelo ator. O original é um roteiro, um bom roteiro, bem estruturado, quem sabe algo repetitivo, mas sempre muito interessante. Afinal, ele está desnudando o “outro lado da história”, quer dizer, ele mostra o ponto de vista daqueles tantos árabes dispersos no Rio que nós, cariocas, entre o preconceito e a desinformação, insistimos em chamar de “turcos”. E cumpre a tarefa com doses generosas de humor.
E música, e corpo dançante, e charme, e flerte com a plateia… Mouhamed Harfouch é um galã brilhante – uma classificação antiga, em desuso, mas que situa com exatidão um tipo de ator protagonista de inclinação romântica capaz de grandes efeitos, resultados cintilantes. Os galãs são apaixonados. Em cena, ele se afirma como um ser apaixonado pela vida, por sua vida, apesar das inúmeras dificuldades e obstáculos vividos, expostos embalados em alguma ficção. Ele consegue expor esta torrente de vivências sob requintada aura teatral.
Na escola, na vizinhança, na rua, nos namoros, no teatro – em todos os lugares, enfim, o nome e o sobrenome se impõem, como se fossem limites para o acesso aos prazeres mais triviais da vida. Mas eles não aparecem sozinhos: apontam para uma cultura e um modo de vida que podem gerar estranheza e preconceito. A escolha parece onerosa: se deixar levar ou lutar pelo direito de ser e de existir.

Curiosamente, o figurino básico, de belo corte, de Ney Madeira e Dani Vidal, sugere um traje militar ou um macacão para o trabalho. Verde, ajustada para compor os movimentos, a roupa sublinha a ideia de engajamento. De certa forma, cria um campo de força que naturalmente desemboca no vitorioso figurino do final.
E como é apresentado este processo de luta? A cena se estrutura especialmente ao redor do mistério do nome que recebemos ao nascer. Traço de união entre todos os seres humanos do nosso tempo, ele permite que Mouhamed fale com a plateia, para a abertura da ação. A iniciativa desperta a empatia e traz o público para o coração do espetáculo. A direção de João Fonseca, além de construir uma cena limpa, de geometria bem resolvida, estimula um ritmo de representação eficiente – ele leva a magia do ator a se impor com intensidade.
A partir de um baú – referência natural quando o tema é a vida de imigrantes – múltiplos caminhos são traçados para a resolução dos conflitos ditados pela origem e pelas raízes. A cenografia de Nello Marrese, minimalista, é exuberante apoio para o despertar do fluxo da memória, processo no qual a iluminação de Dani Sanchez cumpre papel importante.
Trata-se de um espetáculo muito envolvente. A condição de múltiplo artista de Mouhamed Arfouch, cercado por uma produção de alto padrão artístico, dilui as fronteiras tradicionais da definição de monólogo – o ator dialoga com a plateia, canta, toca, dança, atua como apresentação de si, representa múltiplos papéis, narra acontecimentos. Jogando com um discreto jeito tímido, ele brinca com os próprios desconcertos. Em consequência, em várias sequências desperta um riso cristalino.
Sem economizar energia e potência criativa, o ator demonstra com este trabalho o poder do teatro para transformar o palco em fonte de prazer de viver. O Teatro Ipanema, uma joia valiosa para a vida cultural carioca, tinindo de novo após cuidadosa reforma, resplandece: farmácia da alma, ele reforça a esperança de que o teatro possa ser um excelente remédio. E então, bem acompanhado por um requintado galã, o fulgurante palacete teatral nos provoca: será que estamos cultuando os palacetes errados?…

Ficha Técnica:
Idealização, produção e texto: Mouhamed Harfouch
Elenco: Mouhamed Harfouch
Direção: João Fonseca
Figurinos: Ney Madeira e Dani Vidal
Iluminação: Dani Sanchez
Cenógrafo: Nello Marrese
Produtora Executiva: Valéria Meirelles
Coordenação Geral: Edmundo Lippi
Assessoria: GPress Comunicação | Grazy Pisacane
SERVIÇO:
Meu Remédio
Temporada: 10 de janeiro a 16 de fevereiro
Sessões: Quinta a Sábado 20h | Domingo 19h
Local: Teatro Ipanema Rubens Corrêa
Rua Prudente de Morais, 824 – Ipanema, Rio de Janeiro – 22420-040
Valor: R$80 inteira | R$40 meia-entrada
Vendas: Bilhetetia Local e site Eleven Tickets: https://riocultura.eleventickets.com/#!/apresentacao/74bda8fdadc41205267b3e9108a8e84c77c3bb85
Duração: 75 minutos
Classificação: 10 anos
Tagged: João Fonseca, Meu Remédio, Mouhamed Harfouch, Teatro Ipanema