Um ano voador e sempre o mesmo Rio…
O ano passou chispando, para usar um verbo batata de Nelson Rodrigues. E qual a razão para escolher o dramaturgo para a última coluna deste ano insípido? Simples: decidi fechar o ano sem falar de teatro. Então, para disfarçar, enveredei por truques evocativos vários.
Não, não é falta de assunto. Assunto teatral não falta – apesar do recesso relativo de fim de ano, o teatro anda por aí dando o que falar. E, claro, dando letras para quem quiser escrever. O que aconteceu, então? Explico.
Sucumbi diante de uma canseira súbita, pesada, como se vítima de uma reza de quebranto de uma vizinha fofoqueira, feitiço de uma tragédia carioca suburbana. Sobrou vontade de ficar de férias, flanar livre pelo Rio de Janeiro, tentar encontrar o nosso amor – mais exatamente o meu romance com a cidade. Afinal, passamos um ano separados. Ok, na verdade, foi mais do que um ano. Contudo, só me senti cidadã-amante-ausente neste quase finado 2021. Sim, senti falta da cidade, da minha cidade.
Ainda outro dia, já em pleno final do ano, precisei ir ao Centro da Cidade. Este é um lugar em que sempre me sinto – ou me sentia? – em casa. Fiz faculdade no Largo de São Francisco e, numa turma de irrequietos, revirávamos o Centro de meio-fio a meio-fio. Pois uma enorme nostalgia me invadiu. Vi o bairro com olhos novos. Fiquei chocada, confesso.
Constatei que ele virou uma espécie de Pelourão – uma versão enorme do velho Pelourinho, de Salvador, que conheci arruinado e triste, para o meu desgosto. Gente, o século caminha e nós, aqui, regredimos… aceleradamente! Onde foi parar a cidade maravilhosa? Não vamos fazer nada? Sim, eu sei, o Rio começou errado e persistiu errado sempre, até chegar a este problemão urbano que nos cerca.
Formoso terreno alagadiço caprichosamente recortado por morros, rios e mar, o sítio espetacular desenhado pela natureza tinha tudo para virar uma Veneza Tropical. Nosso meio de transporte cotidiano deveria ser fluvial e marítimo, não por causa das enchentes e enxurradas, mas por submissão ao traçado natural do lugar. Somos todos, os cariocas, filhos de um rio, o Rio Carioca. E o que fizemos com ele? Nós o transformamos, e a todos os outros fios d’água nativos, em nojentas cloacas cimentadas.
Um outro grande exemplo, é o Banana Podre. Sim, um riozinho mirrado que assustava a população colonial e imperial nas cercanias da atual São Clemente. É ele que passa como um valão pútrido ali, nas barbas do prefeito. Se alguém procura uma servidão rochosa em que ele deveria estar aparente, lá no emaranho da Rua Icatu, verá que ele é só uma gota de água… Portanto, o fluxo que corre nos jardins do edil, é esgoto!
Uma tragédia completa, sem humor. Aterramos todas as áreas alagadas que encontramos, roubamos recortes das praias, lagoas e cursos d’água despejando sobre eles montanhas de aterro, e derrubamos vários morros para fingir que somos seres da planície… Naturalmente, hoje, não temos farta navegação na Baía de Guanabara, não podemos ir de barco da Praça XV para Botafogo ou para a Lagoa, não navegamos na Ilha do Governador… Somos escravos dos automotores e assemelhados!
Considero chocante, entre nós, esta impermanência de tudo, esta forma volátil da vida que insistimos em perseguir e que lançamos até mesmo contra a paisagem. Inventamos a paisagem volúvel! Ou melhor, solúvel em cimento! Vivemos numa cidade mutante, tão mutante que nem mesmo os marcos da fundação da cidade sobraram. Se as palhoças e paliçadas de Estácio de Sá, lá no sopé do Pão de Açúcar, eram precárias, nada justifica a opção pela derrubada do Morro do Castelo promovida em pleno século XX, para onde a aldeia se mudara.
Talvez se pensarmos juntos esta trajetória e conseguirmos entender a sua força motora, as suas razões profundas, talvez conquistemos uma visão da cidade eficiente para deter o seu processo de ruína, para salvá-la. Sem poder vagar pelas ruas, andei passeando por cenas históricas de postais. Um turismo de poltrona divertido, especialmente quando visitamos imagens de outro tempo. E há ainda belos livros para consultar.
Vamos aos postais. Escolhi dois. O primeiro choque foi uma panorâmica do Leme, do primeiro decênio do século XX, ao que tudo indica. Diante dos olhos surpresos, floresce um simples areal de arrabalde, selvagem, a materialização de um recanto praieiro irresistível, esquecido no tempo. Cheguei a pensar: está aí o motivo do meu carinho especial pelo Leme… O problema é que este Leme idílico é parente do caviar do Zeca Pagodinho, eu nunca vi, nem visitei. O meu Leme foi sempre terrivelmente urbanizado.
Logo adiante mergulhei numa imagem mais conhecida – uma Praia de Botafogo talvez da mesma época, de toda maneira um registro inegável do sossego do bairro balneário chique. A cena é horizontal, aqui e ali pontuam prédios mais robustos. A torre da igreja se impõe solene ao bairro. Nos dois casos, as encostas e os morros aparecem com escassa vegetação, nus, como se varridos sempre pelas chuvas torrenciais, e não há nenhuma ocupação visível.
Lembrei de uma matéria publicada na Revista Para Todos, em 1927: “Descobrindo a Favella – Habitações sórdidas descortinando paisagens maravilhosas”. Naqueles tempos, a palavra favela ainda não era extensiva às áreas ocupadas pela população pobre. Existia apenas o Morro da Favela, que, segundo o autor, era a última moda, descoberto pelo prefeito Agache, por Marinetti, pelos revistógrafos e jornalistas. Todos queriam visitar o pitoresco lugar, sem fazer nada para mudar a miséria de tudo.
Lá, depois de uma ladeira muito íngreme e 166 degraus, chegava-se a um punhado de casas precárias, esconderijos de bandidos célebres e abrigos de famílias muito pobres, todos premiados com vistas estonteantes da cidade. A matéria é cheia de fotos, para provar a constatação do autor… Para ele, mudar o cenário humano seria tarefa muito fácil, bastava subir com professores, aulas, educação e saúde. Tal, a seu ver, seria um passo fundamental na iniciativa, defendida na época, de civilizar o Rio. Até hoje, ninguém subiu. Devemos concluir, portanto, que o Rio nunca civilizou-se!
Não sei se este tipo de passeio pelas comunidades carentes que herdaram o nome do antigo morro ainda é possível hoje. A matéria sugere que bastava ter fôlego e decisão e seguir adiante, o que também se podia fazer em outras comunidades pobres citadas no texto e em outras passagens ou edições da revista. O tom geral dos comentários, na revista, dá a impressão de que tais comunidades eram pequenas. Nada indica a existência de formigueiros humanos como os que conhecemos.
Portanto, a conclusão, nada festiva, parece simples – faz bastante tempo que a cidade do Rio de Janeiro empilha problemas graves. Alguém dirá – uai, acontece em todo o Brasil. Mas vale destacar: a cidade se manteve cega para problemas sociais gravíssimos enquanto, ao mesmo tempo, detonava o meio ambiente, num esforço para tornar a vida ruim para todos. Em várias passagens da revista comenta-se o desmonte do Morro do Castelo.
Não, não se trata de pessimismo. Nada de negar a hora de celebrações, estouremos os champagnes. O cálculo é apenas um esforço tímido para nos levar a tentar enxergar melhor o pântano tropical antigo, aterrado cegamente, mas para sempre sob os nossos pés. Na mesma revista, em algum comentário evasivo, se fala da maravilhosa ideia de aterrar os mangues, paisagem feia e inferior, prejudicial à cidade.
O dito, assim ligeiro, fala de um comportamento nativo curioso, a dificuldade para reconhecer a beleza particular da paisagem carioca, no fundo um emaranhado de vales pantanosos abraçando pequenas montanhas. Então, aterrava-se para ter um chão firme para os mais ricos. E empurrava-se para os morros os mais pobres.
Sim, comemoremos as férias. Férias são boas para conhecer melhor o Rio, amar mais e mais esta cidade encantada. O tempo passou célere, não foi só este ano que chispou. Mas passou deixando marcas profundas. Somos prisioneiros de um alçapão histórico, armado de pouco em pouco, ao correr do tempo.
Quem sabe não se consegue desarmar algo da arapuca, para fazer com que a beleza nativa aflore? Para ser fiel a Nelson Rodrigues, um dos cariocas de importação mais ilustres que a cidade conheceu, deste lodaçal antigo soterrado, escondido, pode nascer… a flor do lodo! Talvez o segredo esteja por aí, transformar a cilada histórica carcomida e emperrada numa autêntica estufa, para abrigar, fazer viver fortes, as nossas belezas.
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