
O Teatro do corpo
“Teatro não é literatura: a afirmação já rendeu bastante polêmica. Ainda rende. Mas ela aparece aqui sob uma outra veste – o que se quer dizer com ela é muito simples. No teatro, à diferença da literatura, a palavra é destituída de seus poderes próprios, ela vira corpo. Isto mesmo – ela corporifica. Palavra no palco é ação, portanto corpos em movimento.
No entanto, a coisa não é tão simples assim: dois caminhos complementares estão insinuados no parágrafo de cima. Um caminho é o da palavra, não está sob o foco agora. Vale observar apenas que a tal palavra é sirigaita, quer dizer, é uma palavra cheia de carne, não é uma palavra seca, perdida em si, como sonha a vã literatura.
O outro caminho, totalmente rebolativo, é o do corpo. Sim, o corpo: esta nossa parte perecível, que vai sumir um dia, para que as nossas palavras, eternas de alguma forma, tenham a razão, a fala final. Por ser perecível, o corpo só cabe em si, nada o preserva, muito embora as emoções elaboradas por ele possam chegar às palavras… Mas este seria o terceiro caminho, ali onde palavra e corpo caminham, não interessa agora.
Interessa apenas e exclusivamente o corpo, esta parte baixa oposta ao espírito. Ele tem uma história vasta na História do Teatro mas, choremos, ainda não se escreveu o precioso volume História do Corpo no Teatro. Valeria a pena, não tenho dúvida.
Para começo de conversa, o corpo não existe, existem os corpos. O corpo grego não é o corpo medieval, não é o corpo renascentista, não é o nosso corpo. Quando se aprende a olhar o corpo, é uma diversão analisar fotos antigas e perceber a linha do corpo de cada tempo. E em cada tempo, múltiplos corpos se comprimem – por idade, classe social, gênero… Há uma cadeia infinita de corpos ao nosso redor.
O curioso é que todos os corpos nascem livres. Nas crianças, apesar da ação rápida das exigências sociais, ainda se consegue ver vestígios da liberdade, gradualmente suprimida pelo jogo social. Para os artistas, na sua formação, é preciso treinar o corpo – contê-lo nos padrões estéticos da época, condicioná-lo ao espírito do tempo.
De toda forma, parece inegável o predomínio, na maior parte da história do corpo teatral, no ocidente, de uma submissão do corpo à palavra. A partir do texto, da ideia do autor, o ator desenha uma realidade física e esta realidade física obedecerá ao fluxo textual.
Direções como as de Debora Colker, em Dancing Days, ou de Duda Maia, em Elza, alcançam uma projeção enorme a partir deste debate. Pois não é que o corpo, nestes casos, insinua um estado de rebeldia, emancipação, voz própria? E é este o ponto principal aqui: em que grau se pode afirmar a existência de um processo novo, do nosso tempo, em que uma potência física desponta e aponta para uma outra construção do ator no palco?
A reflexão importa no drama, no teatrão (se é que ainda temos teatrão, nesta terra sem deus, na qual nem Dioniso emplaca…), na vanguarda e, em especial, no musical. Ao que tudo indica, a intensidade do corpo, plástico e comunicativo, se tornou ferramenta básica para a comunicabilidade da cena. Importa ter o corpo adestrado – e são muitas as ofertas de treinamento – mas, mais do que isto, é imprescindível trabalhar a “fala” do corpo. No musical, o corpo precisa ser música, precisa cantar (isto é um pouco mais do que dançar). Veja-se as coreografias de Victor Maia, agora mesmo nas cenas vibrantes de 70? Década do Divino Maravilhoso, no NET Rio.
No caso brasileiro, pois cada país hoje terá as suas amarras e solturas, vale perceber e dissolver os processos de mordaça e de enrijecimento corporal existentes para conduzir a estruturação do nosso corpo social. Penso nos trabalhos históricos de Angel e Klauss Vianna, Regina Miranda, Joana Ribeiro, Ana Bevilaqua, Suely Guerra – para citar de memória e de impulso. Para situar profissionais híbridos, que volteiam entre a sala de aula, a sala de ensaio e o palco.
Há uma tendência contemporânea para o apagamento de fronteiras, a aproximação das artes, a erosão dos limites dos fatos culturais. Em São Paulo, de 6 a 16 de dezembro, acontecerá um festival, o Risco Festival, em primeira edição, com atividades gratuitas e apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Segundo as organizadoras, estarão em pauta diversas expressões artísticas, “dança, performance, música, artes visuais e foto, que se fundem e complementam para provocar uma reflexão sobre a criação artística produzida por todxs e para todxs…”
Ou seja, há um palco em movimento, ainda que o release do festival não fale no teatro. Mas o teatro em estado pleno precisa ser chamado à arena. Penso em tudo o que se pode fazer nas salas de aulas, para a formação do cidadão, a partir do trabalho com teatro na escola, tema de infinita grandeza e imenso poder estratégico. Na rusticidade das escolas públicas de hoje, o trabalho com o corpo pode ser revolucionário, para famílias em que a opressão é o cotidiano. O cala-boca tem uma extensão inacreditável.
Esta semana um evento universitário, aqui no Rio, dimensiona bem a extensão do debate. Organizado por professores da UNIRIO e da UFRJ, aborda o trabalho de corpo para autistas, com a oferta de oficinas para autistas, psicóticos e acompanhantes e familiares. A iniciativa impactante revela como o corpo cresceu, transbordou da cena e começou a ser uma fala social. Portanto, vale associar os dois continentes, corpo e cidadania. Mas não apenas por causa de uma nova essência do teatro ou da expansão do corpo na sociedade contemporânea.
Na verdade, o teatro é necessidade urgente na sociedade brasileira porque estamos no meio de uma crise histórica sem precedentes, uma ruína dos sonhos de gerações. E de séculos. Basta ler alguns documentos a respeito da história da Inconfidência Mineira (1789) para avaliar como e quanto temos sonhado com estas terras daqui em estado de cidadania livre, ainda que tardia. O problema é que esta tarde não chega. Assim, quem é massacrado pelo edifício social arruinado é o cidadão, o homem comum, aquele que mal começou a ensaiar a sua fala para entrar em cena neste salão de barões e viscondes chamado Brasil.
Para o homem comum que precisa ir ao teatro e dimensionar com sensibilidade a sua existência, a maestria da palavra deve ser incitada. Corporificada, incorporada, encorpada. Portanto, uma palavra nova, plena, redonda de si, carregada de sentimentos e impregnada por um corpo que sente e vive Brasil, este gigante calado há mais de meio milênio. Palavra e corpo não são palavras ocas, oratórias, vazias. Não são apenas recursos teatrais. São sinais vitais de uma sociedade que está aí e precisa mostrar as garras para ser reconhecida. Que as suas garras sejam palavras e palavras bem fincadas na beleza do corpo é a nossa última esperança. Pois o resto, é o caos.
FOTO: Angel e Klauss Vianna.
RISCO Festival, SP – de 6 a 16 de dezembro
Locais e endereços:
Aparelha Luzia (Rua Apa, 78)
Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94)
CCJ – Centro Cultural da Juventude (Av. Dep. Emílio Carlos, 3641)
Centro De Referência De Promoção da Igualdade Racial (Av. dos Metalúrgicos, 155 (Cidade Tiradentes)
CRD – Centro de Referência da Dança – Galeria Formosa (Baixos do Viaduto do Chá, s/n)
Espaço Público – Av. Paulista, altura do número 3000
Espaço Público – Vale do Anhangabaú
Itaú Cultural (Av. Paulista, 149)
Instituto Tomie Ohtake (Rua Coropé, 88)
MIS – Museu da Imagem e do Som (Av. Europa, 158)
SP Escola de Teatro (Praça Roosevelt, 210 – Centro)
Teatro de Contêiner (Rua dos Gusmões, 43)
Teatro Décio de Almeida Prado (Rua Cojuba, 45)
Vila Itororó (Rua Pedroso, 238)
Informações para Imprensa
Canal Aberto Assessoria de Imprensa
III Encontro Circulando: caminhos com o autismo”.
Dias 6 e 7 de dezembro . (UNIRIO e UFRJ)
Coordenação geral: Professores Adriana Bonfatti e Joana Tavares (UNIRIO) e Ana Beatriz Freire e Fábio Malcher (UFRJ)
“Projeto Circulando: Ateliê de teatro para jovens com transtornos mentais” – projeto cadastrado na PROExC, implantado em março de 2013 na Escola de Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, através do oferecimento de ateliês de teatro para jovens que sofrem de transtornos mentais (autistas e psicóticos).
Em 2014 o projeto passou a oferecer ateliês para acompanhantes e familiares.
Desenvolvido em âmbito interinstitucional, o projeto estabelece parceria com o projeto “Circulando entre invenção: um novo dispositivo clínico para jovens autistas e psicóticos”, coordenado pela profa. Dra. Ana Beatriz Freire, do Instituto de Psicologia da UFRJ.
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Sonhar com política: a revolução do presente
Vou confessar um segredo terrível: gosto de política. Desconfio de um contágio prematuro irreversível na infância, do qual não me recuperei. O meu pai era cabo eleitoral no subúrbio, cismava de incentivar os meus supostos dotes precoces para a redação e a oratória. Assim, aos nove anos me tornei locutora de comitê eleitoral e também aquela menina chatinha ocupada em recitar versos e discursar no palanque em louvor à pátria antes do candidato tomar a palavra.
Sim, tomava-se a palavra. Discursar era um ato de verter belas palavras vindas de uma fonte borbulhante de inspiração. Se a política é, em razoável grau, puro jogo de afeto e sedução, outrora tais sentimentos surgiam na fala para expor uma arte. A arte de demonstrar algum entendimento das necessidades sociais e, claro, de revelar capacidade para gerenciar a solução dos males inventariados.
O mundo mudou. A política se fez outra. Por isto sinto certo mal estar diante da política pós-dramática do nosso tempo, em que a ação verbal virou confronto pessoal – o jogo afetivo não é mais para levar o eleitor a acreditar na possível solução dos problemas, nem para expor problemas ou programas para enfrentá-los.

As ondas longas do canto nacional
Ouvidos atentos, olhos conquistados. Muitos estudos precisam ser feitos a respeito da relação brasileira entre rádio e teatro. Ela está na ordem do dia. A aproximação entre os dois espaços de criação nasceu desde a implantação do rádio no país e nem sempre foi pura harmonia, muito pelo contrário… Assim como o cinema despertou temores de que, por causa dele, o palco iria se acabar, também as transmissões radiofônicas, em especial depois da eclosão da paixão pelas radionovelas, trouxeram a suspeita de que os dias da cena estariam contados.
O tema surge para o debate por várias razões. Em primeiro lugar, por causa da insinuação, agora, de novo, de que o teatro poderá morrer em função de ocupações domésticas, tais como a televisão, os filmes em casa, a dedicação ao parque de diversões contido nos celulares. Estive por estes dias conversando com amigos da Zona Norte do Rio e eles se declararam reclusos noturnos, quer dizer, eles não saem mais de casa à noite, por causa do medo da violência. Abdicaram de vez do prazer de ir ao teatro e se dedicam a outras artes e diversões, em casa. Optaram por se divertir entre quatro paredes familiares.
A razão da escolha de agora difere da situação passada, gerada quando o rádio despontou, que era de puro amor radiofônico. Registra, contudo, a mesma inclinação para a diversão doméstica desfavorável ao teatro. Dificilmente a maioria dos recolhidos atuais optará por ouvir rádio, mas, de toda a forma, eles elegeram a opção de se divertir no lar. Este novo recesso me fez lembrar o antigo, rememorar uma velha história importante para o teatro.
Pois existem outras razões para trazer à baila o tema da aproximação entre as duas searas de produção: o rádio, quando surgiu, decididamente enfeitiçou a população. O sucesso fez com que muita gente, artista, migrasse dos palcos para os microfones das estações. Vale assinalar um fato menosprezado, a ascensão do rádio coincidiu com o declínio progressivo do teatro de revista, tema bastante polêmico não pesquisado até hoje. Seria possível argumentar que a revista cumpriu um ciclo e sumiu por sua própria fraqueza.
Ela não teria conseguido se reinventar. Não conseguiu se estruturar com estabilidade como atividade de mercado, dentro de um jogo econômico mais competitivo do que o do século XIX, quando o palco era soberano. Só que a nascente música popular, que pulsava no teatro, nasceu nele para as plateias, se tornou uma fortaleza nas rádios. A partir deste trampolim, virou indústria, numa vertigem de capital distante da realidade teatral.
O trânsito atingiu também autores e atores. Alguns dramaturgos – e o maior exemplo é Oduvaldo Vianna, o pai (1892-1972) – se tornaram grandes personalidades do rádio, como autores de radionovela e como dirigentes de emissoras. Algumas vozes célebres de atores do teatro brasileiro só podem ser analisadas com propriedade se considerarmos a sua formação ou a sua aclamação nas rádios.
Mas é possível ir mais longe. Um dado curioso a observar é que hoje um movimento inverso, de retorno, marca a cena brasileira. A música, traidora, que abandonou a cena a favor dos estúdios, voltou a ocupar a velha casa em escala crescente, no ciclo de renascimento, de agora, do teatro musical. A pergunta mais importante do tema é a respeito do fluxo que preside este movimento. O quê move a sensibilidade brasileira neste jogo? O que torna a produção de música importante aqui, irresistível, uma atração capaz de abrir exceção na reclusão atual do carioca? Uma amiga da Zona Norte desistiu do teatro mas, pressionada, reconheceu – vai sair de casa sim, para ir ao Centro, mas para ver musical, suprema delícia, a seu ver.
Vale reler algumas páginas do final do século XIX, assinadas por Machado de Assis, ou do início do século XX, com Lima Barreto. Os dois acusam a existência de um forte gosto brasileiro pela música. Mas, se havia o retrato de uma devoção ao piano, no primeiro, o segundo já fala do violão e da impressão repulsiva que o instrumento, amado pelos marginais, causava nos chefes das famílias, autênticos caçadores de seresteiros. Os primeiros sucessos destes notáveis vadios aconteceram nas rodas de samba e de batuque. Para os palcos das revistas, foi um passo curto. E o violão acabou por se tornar um som nobre da vida brasileira.
Não se pode, entretanto, achar que o passo curto foi fácil, rápido e rasteiro: o processo de namoro foi lento. Não foi uma paixão imediata, fulminante. A música que veio do século XIX, mesmo no violão, era filha dileta do belcanto, amante do dó de peito. Apesar do remoto vínculo idealista, ela mexia com o corpo, com os quadris. O resultado é fácil de imaginar: a revista e o teatro musical do início do século aconteciam sob uma aura de transgressão. Causavam repulsa nos meios intelectuais elevados e nas famílias de qualidade, eram qualificados como terra do trolóló e pernas nuas. E o mais engraçado é que pode até ser que o corpo da roda de samba tenha sido contido para caber no palco. Ainda assim ele era uma facilidade expressiva, era tosco, excessivo, segundo as normas dos saraus à beira do piano. Aracy Côrtes (1904-1985) machucando um maxixe era uma visão obscena.
O que foi que provocou a mudança e fez surgir um tórrido caso de amor? Não há dúvida, para a boa música brasileira, a dissipação dos tabus, a popularidade e o gosto familiar foram conquistados graças ao rádio. E é do rádio que o teatro empresta, agora, os seus maiores sucessos, acontecimentos que podem fazer as pessoas saírem de casa, mesmo com a violência, pois os horários das sessões teatrais começam a se aproximar das tardes. Se antigas marchinhas ironizavam as fãs, vistas sob o rótulo pejorativo de macacas de auditório, hoje se pode ver nas plateias que macacas e madames compartilharam paixões. O caso de amor aconteceu e varreu tudo e todos.
É nesta abordagem que se pode entender a aclamação de vários sucessos da cena teatral musical recente. Olhar a cena carioca neste momento revela propostas de contorno bem nítido, cuja origem só pode ser explicitada se for considerado o sucesso do rádio, dos programas de auditório, a consagração do hábito de ouvir música em casa, na intimidade. E o prazer de ter a alma banhada por belas vozes brasileiras.
Vale destacar que o rádio foi a porta democrática capaz de viabilizar a aclamação de pessoas de origem muito humilde – Elza Soares e Elizeth Cardoso (1920-1990) chegaram ao estrelato absoluto, mais do que merecido, por este caminho. As ondas sonoras levaram para todo o território a arte das duas e o caminho de consagração foi mais eficiente do que o teatro poderia ser, pois era um caminho imediato e nacional. Por mais que o Rio de Janeiro, capital federal, falasse dos palcos para o país, esta repercussão possuía outro andamento.
O rádio proporcionou também o surgimento de possibilidades locais de projeção – novas estações foram criadas por todo o território. É importante observar como, até certa altura, estas manifestações locais não possuíam autonomia e seguiam o padrão ditado pelo Rio de Janeiro. Este jogo centro-periferia transparece no início da carreira de Isaurinha Garcia (1903-1973), uma voz privilegiada de São Paulo que iniciou a carreira na Rádio Cultura e na Rádio Record, de São Paulo, e se firmou como artista a partir de sua cidade.
No início de sua trajetória, as referências com que trabalhava eram Carmen Miranda (1909-1955) e Aracy de Almeida (1914-1988), consagradas cantoras sediadas no Rio de Janeiro. Contratada pelo rádio em São Paulo, Isaurinha construiu uma identidade forte, consolidada na sua cidade, com projeção nacional, graças à beleza de sua voz e ao poder do novo veículo. A sua carreira nacional projetada longe do Rio traduziu, portanto, o esboço de uma nova realidade geopolítica da arte no país.
Pois eis em sua integridade a questão. Por obra e graça do gosto popular por espetáculos musicais, as três grandes cantoras estão em cena no Rio de Janeiro em produções cuidadas e de grande densidade artística. Elizeth recebeu a graça divina do desempenho inspirado de Izabella Bicalho e faz enorme sucesso no Teatro Maison de France. A atriz consegue irradiar o encanto e o magnetismo da cantora, envolta numa aura de época muito bem desenhada.
Elza Soares recebeu a ousadia de ver a sua identidade plasmada através de um número cabalístico – sete atrizes representam o seu imenso poder artístico no palco do Teatro Riachuelo. Num redemoinho de canções, pulsações, corporeidades, cores, elas revelam a impressionante força de Elza, força humana e força artística.
Já Isaurinha Garcia retorna à cena numa nova encenação sob a luz da excelente Rosamaria Murtinho, criadora da personalidade em 2003. Nesta nova montagem, ela terá a companhia das radiosas Kiara Sasso e Soraya Ravenle. Trata-se de uma narrativa biográfica, dedicada à estrela paulista na época de ouro do rádio, novo cartaz do Teatro Oi Casa Grande. O que se pode dizer?
O encanto que o rádio espalhou em ondas curtas e frequência modulada está entre nós de novo, sob uma outra forma, a forma teatral. As atrizes, contudo, não fazem mais um teatro cabeça-pescoço, engessado como uma ópera velha – elas trazem uma idade nova do musical brasileiro, quente, vibrante, povoado por corpos expressivos, musicais.
Os primeiros musicais biográficos deste novo ciclo histórico – como Dolores ou mesmo Rádio Nacional, por exemplo – ainda possuíam atores em desempenhos quase radiofônicos, frontais, rígidos diante das canções. No início, o palco mimetizava um pouco a situação do estúdio, engessamento ainda presente em algumas montagens, esquecidas do fato de que se trata de uma outra poética.
No geral, contudo, o novo musical busca desenvolver uma forma cênica em sintonia com a vida atual – uma vida em que a intensidade do corpo é um valor de primeira grandeza. Mesmo falando do passado, o teatro descobriu que encenar não é apenas fazer fluir a voz, como se o físico fosse uma estaca alto-falante. A cena mudou e é importante conferir – a homenagem às estrelas fica ainda mais emocionante. Não dá para perder a chance de sintonizar com ondas profundas responsáveis por muito da nossa identidade.
Vale agradecer ao rádio, por ter sido incubadora e abrigo de talentos tão notáveis. E ao teatro, agora numa fase musical intensa, por gostar tanto de música e oferecer oportunidades preciosas para que se saia de casa, se levante a cabeça, e se vença o medo de morar no Rio. Importa usar a velha paixão por canções para lotar os teatros. Nada melhor se poderia oferecer ao sofrido povo carioca neste momento: olhos, ouvidos e corações em sintonia fina.
Elizeth, A Divina
ESTREIA: 04 de julho (4ªf), às 17h
LOCAL: Teatro Maison de France
Av. Presidente Antônio Carlos, 58 – Centro / RJ Tel: (21) 2544-2533
HORÁRIOS: quartas às 17h e quintas às 19h /
INGRESSOS: R$ 50,00 e R$25,00 (meia) / HORÁRIO
FUNCIONAMENTO DA BILHETERIA: 3ª a domingo, a partir das 14h
VENDAS POR INTERNET: www.tudus.com.br /
CAPACIDADE: 355 espectadores / DURAÇÃO: 120 min (com intervalo)
GÊNERO: Musical
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: Livre
TEMPORADA: até 16 de agosto (excepcionalmente nos dias 01 e 02 de agosto não haverá espetáculo, devido a compromissos do teatro previamente agendados)
Elza
Temporada de 19 de julho a 30 de setembro
Quintas, às 19h. Sextas e Sábados, às 20h. Domingos, às 18h
TEATRO RIACHUELO
Rua do Passeio, 38/40 – Centro
Vendas na bilheteria do teatro e site da Ingresso rápido.
Ingressos:
Quintas: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Sextas: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 130 (Plateia VIP).
Sábados: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 150 (Plateia VIP).
Domingos: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Classificação etária: 14 anos.
Duração: 120 minutos.
Isaura Garcia – O Musical
ESTREIA: 29 de Julho
Local: Teatro OiCasagrande, Av. Afrânio de Melo Franco 290 A, Leblon
Temporada: de 26 de julho a 14 de outubro
Horários: quinta-feira, às 20h; sexta-feira, às 20h; sábado, às 17h30 e às 21h; domingo, às 18hPreços: de R$ 50 (inteira) a R$ 150 (inteira)
Vendas: bilheteria do teatro e pelo site Tudus (https://www.tudus.com.br/evento/oi-casa-grande-isaura-garcia–o-musical)
Classificação etária: 12 anos
Tagged: Aracy de Almeida, Carmen Miranda, Elizeth, Elza, Elza Soares, Isaurinha Garcia, Izabella Bicalho, Kiara Sasso, Rádio, Rosamaria Murtinho, Soraya Ravenle, Teatro, Teatro Musical

A prefeitura e o teatro da cidade
Nasci no Distrito Federal, capital cultural do país, capital do país. Durante a infância, me afeiçoei à ideia, por obra e graça do poder, hábil, naquela época, na arte de implantar em nós um profundo civismo. Quando decidiram mudar a capital, eu ainda era criança, mas não gostei nada, esbravejei. A vida seguiu de perda em perda, e foram retumbantes os meus furores domésticos contra o esvaziamento total da importância da cidade. Contudo, ela permanecia linda. E culta. Recentemente…
Bom, por conta da doutrinação insana que eu sofri no inicio da vida, uma cariocagem desvairada, detesto quando maltratam o Rio de Janeiro. Sou Distrito Federal, sou Guanabara, sou Rio de Janeiro. Sou esta pequena partícula de terra bronzeada incrustada nas montanhas cansadas deste litoral velho ao sul. Mexeu com o Rio, mexeu comigo.
Portanto, não desisto de lutar pelo Rio e penso que neste descalabro total em que vivemos agora só há uma saída: teatralizar a cidade. Transformar o Rio num grande fluxo de teatro a céu aberto, Teatro de Janeiro. O plano é diabólico, proponho que a arte do palco envolva tudo e todos, num reformismo mais avançado do que aquele que moveu um dos meus grandes inspiradores, Lima Barreto, carioca também, Distrito Federal destilado. Nada de Pereira Passos, a coisa tem que ser mais adiante! Cariocas, avante!
Começaria assim – faríamos uma intervenção decidida na gerência urbana mais ampla. Exigiríamos do alcaide que estivesse no cargo a adoção de um Plano Diretor de Vitalidade Urbana – o PDVU. O PDVU imporia uma visão teatral para cada recanto da cidade, detalhadamente, ao ponto que se pudesse ter uma cidade-poema cênico, uma instalação de arte coletiva capaz de deslumbrar todo o ocidente. Sim, a ação aconteceria por bairros e de bairro em bairro ergueríamos uma cidade-arte inédita, nunca vista no mundo, quiçá na Via Láctea ou mesmo em todo o universo. Seria uma teatralização moderna, construída a partir da realidade cotidiana aqui e agora, e não uma enxurrada de voos metafísicos.
É evidente que o lugar número um da proposta do PDVU seria Copacabana. A Princesinha do Mar seria transformada de maneira descarada no bairro trans, no bairro fantasia, no bairro sonho. Por todas as esquinas seria estimulada a implantação de lojas de fantasias. O traje típico de Copacabana seria “à fantasia”. Os salões de beleza – você sabem que Copacabana tem uma inflação de salões de beleza, não? – seriam estimulados, com redução de impostos, para que organizassem desfiles, mostras, encontros de Fantasia de Si. Quer dizer, além de andar metido em fantasia, o transeunte poderia usar os salões para transformar face, cabelos, superfícies maquiáveis.
As lojas de fantasias seriam (ou poderiam ser) verdadeiros ateliês de criação – fantasia encalhada, fantasia reciclada. Imaginação pediu, fantasia surgiu – qualquer um poderia encomendar aquela fantasia esquisita desejada por toda a vida sem esperança de realização. No Carnaval, seria permitido usar fantasia de gente comum, para surpreender os turistas desavisados que estivessem muito exaltados buscando adrenalina nas ruas do bairro. E Copacabana continuaria a ser assim a nossa maior referência universal. A trilha sonora seria o bolero e a marchinha, a chuva seria confete, as cortinas puras serpentinas.
Ipanema seria outra coisa – seria o bairro intelectual, suprema ambição de seus moradores célebres, e teria livros por toda a parte. Além de livrarias, teria praçatecas, digamos, praças com estantes para o acesso universal e pleno aos livros. E para organizar a brincadeira festiva solene do bairro, tão agradável, do livro-esquecido e do livro-revelação. O jogo teria regras simples: todo ipanemense teria que, uma vez por mês, abandonar um livro amado, importante para as letras do mundo, no santuário-mor do bairro, a Praça Nossa Senhora da Paz. E teria também que “achar” um livro para ler, dentre aqueles deixados pelos concidadãos. A teatralização seria o ato de ler – e mesmo quem não gostasse seria convidado a vestir o figurino, andar com páginas ao redor da alma. Ler em voz alta, em público, seria a suprema manifestação de amor e civilidade.
Alguns bares e esquinas seriam nomeados como academias ipanemenses. O assunto em suas mesas seria necessariamente a vida intelectual do bairro, da cidade, do país e do mundo, jamais trivialidades, fofocas ou besteirol. Uma ou duas esquinas seriam transformadas em locus poeticus – assim mesmo, em latim macarrônico – tribunas livres para a recitação de poesias. E a roupa ipanemense seria esta mesma que muitos deles usam, um misto de panos enviesados, fardão acadêmico, invenção e informalidade – aquela coisa de: veja, estou na moda. Ou: eu sou a moda! A música seria a Bossa Nova, claro.
E por aí seguiria o plano reformador, conduzindo as almas a outros lugares: distantes das agruras de hoje, eles se tornariam lugares maravilhosos. Mas as vocações destes lugares não seriam arbitrárias, seriam ditadas pela tradição local, nada seria imposto por ato de autoritarismo. A população seria ouvida duplamente, através da escuta refinada da tradição, a qual todo bom carioca conhece bem, e através de eleição popular, bairro a bairro, em assembleias públicas bem barulhentas e sem os riscos e os custos de modernices fantasiosas como as urnas eletrônicas.
Não vou expor todo o plano diretor aqui – não quero correr o risco de algum aventureiro dele lançar mão. Porém, alguns exemplos mais, bem eloquentes, podem ser expostos. No caso do barulho, vejamos. Reza a tradição carioca que o bairro da Urca, talvez por ser tão novo, ter idade ao redor de um século, se tornou notável por ser um paraíso de silêncio e tranquilidade, mesmo com as tsunamis tradicionais de suburbanos que varrem o recanto nos fins de semana de verão – afinal, isto faz parte da rotina do Rio.
No entanto, um belo dia inventaram a mureta e a pobreta e, tchibum, adeus silêncio. Em particular no verão, há um bafafá noturno de assustar sentinela distraído. Pois bem, considerando a tradição de quietude, o plano pretende propor para o bairro a situação de oásis da pesca. Aos jovens mureteiros e pobreteiros seria oferecida requintada formação em pesca. Por todos os cantos possíveis seriam abertas lojas de equipamento de pesca e os militares do bairro, nas horas aquarteladas ociosas nas matas, providenciariam belas minhocas nativas para refinar a qualidade da atividade. A Urca permaneceria pululando juventude à beira mar, mas haveria um grande silêncio, pois ninguém consegue pescar com barulheira. E note-se: a amurada da Urca é um ponto tradicional de pesca da cidade, nada seria feito contra o que já está na essência do que é.
Pois o plano não torceria nunca a vocação de um lugar. Exemplos? Pois bem – Cascadura poderia se tornar um bairro de comércio de pedras preciosas, em honra ao nome. A música? Chá-chá-chá – um som bom para casos calientes de amor alimentados tantas vezes por belas pedras. No entanto, a arte de tecer sapatos artesanais sofisticados, inclusive para fantasias de luxo e para bailados de qualidade, muito bem exercitada no bairro, seria mantida, pois seria também um ato precioso.
O bairro do samba seria, claro, Madureira. Mas a macumba e o bate tambor dividiriam morada, pois são parentes muito chegados e afins. Embaixo do viaduto continuaria a ter a festa dos ritmos urbanos da hora. A roupa ia juntar o branco ritual, as baianas e os shortinhos, com alguma ostentação nas beiradas. Vila Isabel não se aborreceria com o samba sediado lá para o meião da linha da Central, pois se tornaria morada da seresta e da vida de bar. As modinhas românticas embalariam as noites, em contracanto com todo o cancioneiro de Noel.
Para o Méier migraria toda a moda, mesmo com o jeans continuando com a sua sede em Vilar dos Teles. Sim, ok, Vilar dos Teles pertence a outro município, São João de Meriti, o plano diretor não vai se atrever a gerar conflitos intermunicipais, vale só o exemplo, para tornar mais clara a coisa. Veja-se bem um outro exemplo – Botafogo, outrora um bom reduto de lojas de produtos de macumba, se tornaria o abrigo das ervas, todas as ervas, com as fantasias de folhas nativas liberadas para os moradores. Chapéus de embaúba serão acessório banal, espanadores do calor sob o ritmo de polcas e lundus.
E isto sem conflitos com São Cristóvão, senhor das flores, embalado com o xaxado e todos os ritmos nordestinos comendo solto. Para a Tijuca iriam os médicos, hospitais, clínicas e assemelhados, toda a população junto, aderindo aos higienizados uniformes. A música sem dúvida seria a valsa. O rock dominaria Laranjeiras, pois lá estaria o bairro hippie, pazeamor e zen. Enfim, a geografia toda se tornaria ato de arte, a partir dos matizes da própria vida cotidiana, local, como se o gosto pela performance fosse a razão de ser da polis. Os teatros brotariam do chão como uma espécie de cogumelo ávido, pois seria preciso ter muitas assembleias e muitas representações das artes locais.
Parece delírio de quem já está desesperado diante da crise carioca sem fim? Devaneio louco de quem não aceita a situação patética de abandono da cidade maravilhosa? Encosto de alta voltagem das almas de dois dos cariocas mais profundos, o maranhense Artur Azevedo e o nativo de estirpe Lima Barreto?
Sei não. Pois desconfio que a coisa está nos ares, traduz o descontentamento abissal com as omissões governativas do momento. Podem me refutar, se eu estiver errada, mas achei tudo coerente, depois do meu delírio, quando li o release da deliciosa ópera Bastien und Bastienne, de Mozart, que será apresentada no Rio neste fim de semana.
Justamente ela estará em cartaz nos dias 14 e 15 de Julho, na Cidade das Artes, aquele insano monumento ao desperdício que a cidade foi obrigada a engolir. No PDVU a Barra da Tijuca, por razões muito evidentes, será o bairro da ópera, com grandiloquências urbanas novas prolongando as grandiloquências inacreditáveis locais. A Barra vai se assumir em veludo, véus, bordados preciosos, rococós. Portanto, o espetáculo é mais do que bem vindo, é precioso.
E basta uma olhada rápida nos detalhes da proposta para que se perceba a sua beleza e a oportunidade de tudo. A ópera foi composta por Mozart aos 12 anos, razão pela qual a versão apresentada irá incorporar a figura de um narrador menino que sonha uma visita ao Rio no futuro, uma visita a uma exposição do pintor Pieter Godfred Bertichem. Deslumbrado, ao acordar ele escreve a ópera. As cenas irão surgir aos poucos, enquanto ele escreve a música.
O artifício dramatúrgico permitiu à concepção da montagem incorporar imagens do Rio dos séculos XVIII e XIX – verdade, aquele Rio arrebatador que virou a cabeça de tantos artistas e estrangeiros – sugerindo, hoje, um passeio visual por uma cidade apagada no tempo, desconhecida de verdade para nós, na atualidade. Um ato de magia teatral, não há dúvida, imperdível – o enredo de Bastien und Bastienne traz exatamente este colorido. A história – um Singspiel – conta as desventuras de Bastienne, jovem camponesa que perde o amado, Bastien, para uma mulher nobre. Desesperada, louca para recuperar o amor perdido, ela recorre ao mago Colas, que aconselha ao jovem casal o que fazer.
O diretor Manuel Thomas, em boa hora para as dores do Rio, optou projetar em cena reproduções gigantes de artistas das missões francesa e austríaca – e este procedimento ofecerá ao público a rara chance de mergulhar num túnel do tempo peculiar, de banho de amor à cidade, um banho teatral restaurador da esfrangalhada auto-estima carioca.
Vê-se muito bem, portanto, que está em pauta um ciclo de celebração muito especial. O foco é a recuperação da cidade. Em sintonia com este movimento, o PDVU tem larga perspectiva de sucesso. Você, carioca, fiel devoto da mais bela cidade entre todas (nenhum carioca de verdade descrê deste dogma, mesmo que não o confesse publicamente), precisa começar a agir. Pois se o Rio de Janeiro é mesmo o coração do carioca, corra, antes que o seu órgão vital seja esmigalhado, depois de arrancado brutalmente do seu peito. Nos ensinaram a amar, agora querem nos levar ao ódio. Então, lembre-se: imposições do poder à parte, o Rio merece todo o seu amor. Precisa dele. Inventaram o carioca, acreditamos: não vamos abrir mão da velha fantasia.
Datas: 14/07 a 15/07
Horários: – Sábado:20h; Domingo: 19h
Duração: 60 Minutos em média
Local: Cidade das Artes
Sala: Teatro de Câmara
Classificação etária: Livre
Preços: Inteira : R$ 70,00/ Meia: R$ 35,00
Direção Musical e Regência: Evandro Rodriguese
Direção Cênica: Manuel Thomas
Pianista Preparadora: Eliara Puggina
Elenco
Bastien: Rodrigo Sammarco,
Bastienne: Chiara Santoro
Mago Colas: Rafael Siano
Mozart: Vittório Gava
Atlantis Opera Orchestra
I Violino: Kelly Davis Moura
II Violino: Sarah Cesário
Viola: João Reis
Violoncelo: Diogo Moura
Contrabaixo: Matheus Tabosa
Oboé: Ruan Pablo Ribeiro
Trompas: Jhonatas Oliveira, Felipe Alves.
Produção: Kether Arts
Imagem: Hospício de D. Pedro II, Praia Vermelha,Pieter Godfred Bertichem.
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Teatro e futebol: formas do saber humano
Já conheci várias pessoas com uma característica espantosa: o ódio ao teatro. Algumas tinham o coração entregue ao futebol, arte mais verdadeira e intensa, na sua opinião. No conjunto, os motivos do ódio são vários. Impossível elencar todos – vão desde a convicção de que o teatro é velho, superado, passam pela certeza de que a cena explora apenas a vaidade e o exibicionismo rasteiros e chegam até o mais puro desencanto com a arte. Para este ponto de vista desencantado, o teatro estaria devotado mais à materialidade fútil do que à intensidade ideal da poesia. Algo assim como se um craque se preocupasse mais com os volteios do seu penteado do que com a qualidade dos seus chutes, digamos.
A lista das queixas é longa. Já sai de uma peça de vanguarda obscura com duas senhoras devotadas ao teatro, desconhecidas, indignadas com a cena apresentada. Exaltadas, elas declararam com veemência que iriam abandonar o teatro em favor do cinema, pois, amantes da velha arte, enfrentaram naquela semana uma sequência de peças experimentais no seu entender inúteis, equivocadas mesmo, como estudo da humanidade. Elas estavam furiosas e chegaram até a zoar o elevador canhestro do velho prédio: já que o foco da casa era a invenção, qual o motivo de ter um elevador modesto, trôpego pelos andares?, proclamaram.
Ouvi em silêncio. Mas entendi que existe uma falta, um abismo, entre o palco e a sociedade brasileira. Depois do jogo da seleção, ao andar a pé no meu bairro, na universidade em que trabalho e por diferentes recantos da cidade, o que eu ouvi em todas as bocas era a discussão, às vezes bem exaltada, a respeito dos rumos do futebol brasileiro – vale topete, pose, maquiagem ou o importante é o pé, o cérebro de par com a bola…? Foi jogo ruim ou roubo? O futebol fez vários gols estes dias e disparou os corações. O teatro com frequência não consegue nada parecido, mesmo com aqueles que o amam com intensidade. A norma é o tédio e não há nem mesmo a vontade de xingar o juiz.
Podem ser ciclos da sociedade humana – no século XIX, a vida não era assim. Não existia o futebol, nem o cinema, ou a TV. O teatro era o rei do pedaço. Sim, tinha a concorrência da ópera e da música, mas, desde a função de ser a escola de costumes, até o nobre papel de apontar a definição requintada do ser, tudo era próprio do gramado do teatro. Neste século XXI, quem sabe o futebol esteja com os seus dias contados, prestes a morrer, a favor de uma nova arte, a arte de viver virtual, um casamento da internet com a performance? Não, não será uma forma de teatro, será outra coisa, ainda sem nome. E o teatro?
Sobreviveremos – vale a resposta curta, histórica, emprestada por Tchekhov. Impossível saber para onde andará o teatro: sempre usamos um edifício velho no nosso tempo novo, pois, quando as paredes teatrais se erguem, registram, a rigor, o teatro que passou. Sempre usamos fiapos do que fomos e fizemos e da arte cristalizada no ar, sempre recorremos ao público fiel – portanto, passados, todos passados. Ansiamos o futuro, mas vivemos ancorados no passado. Como dimensionar o futuro? Impossível saber. Porém, a necessidade de aprender com a presença humana, de ouvir o outro e se encantar, sempre existiu e sempre existirá – sobreviveremos.
Vale buscar, olhar e avaliar a cena que consegue pulsar no meio da Copa do Mundo. Vale tentar entender o que faz com que tantos percam o seu tempo, sem lamentar, com os olhos pregados nos pés dos atletas e rejeitem, sem piscar, a dedicada energia de tantos artistas da cena. Há um saber humano aí? Há sentimento bruto, de um lado, refinamento de emoção, do outro? Qual o caminho?
De longe, chegam aqui atestados da grandeza do teatro brasileiro. De Portugal, do FITEI, um festival de teatro que sobrevive há 41 anos, chegam notícias do sucesso das apresentações no Porto do nosso celebrado Caranguejo Overdrive, da Aquela Cia. Além do tema, o descompasso profundo entre poder e sociedade que dilacera o país desde sempre, indicador da não superação aqui da condição colonial, alcançou impacto lá a forma da linguagem. Entre o documentário e o drama, alicerçado a um só tempo na narração, na representação, na performance e na apresentação, o trabalho despontou como eloquente registro da expansão da sensibilidade individual no nosso tempo. A forma da cena não fala mais apenas de sensibilidades conduzidas, integradas, como quer a linguagem teatral convencional, o velho drama, mas também de sensibilidades que pleiteiam a maestria da própria expressão.
O FITEI – Festival de Teatro de Expressão Ibérica – oferece uma gama variada de atividades – além da apresentação de peças nacionais e internacionais, conta com oficinas, concertos, debates, encontros, festas. Esta edição acontecerá de 12 a 22 de junho, contemplando não só o Porto, mas Vila de Gaia, Matosinhos, Felgueiras e Viana do Castelo e a presença brasileira está bastante forte.
Não se pense, contudo, na existência de facilidades para a arte em Portugal. Na semana passada, outro festival de projeção, de Almada, promoveu o lançamento de sua 35A., a ser realizada de 4 a 18 de Julho. No lançamento, além da definição da programação, foi reafirmado o compromisso público de manutenção do festival, apesar dos cortes de verbas anunciados. A expectativa é a de que a redução do financiamento público, divulgada em março, seja revista em prol da sobrevivência do encontro cultural importante.
Enquanto isto, lá como cá e por várias partes do mundo o dinheiro jorra nos gramados e a favor das chuteiras. Ninguém fala em corte de verbas para o futebol. Ele figura como necessidade primeira. Apesar dos escândalos de corrupção, do roubo e do vedetismo consumista exaltado dos craques – com frequência mergulhando no ridículo – nada leva a crer na possibilidade de falta de capital para o futebol nos próximos tempos. E, se tal acontece, uma coisa é certa: multidões apaixonadas garantem a sobrevivência da atlética ocupação.
O diagnóstico do caso, visto do lado do teatro, pode ser preciso. Talvez seja o caso ululante de uma unanimidade burra, como diria Nelson Rodrigues, ele próprio louco por futebol, ainda que não pudesse ver claramente qualquer jogo, por problemas sérios de visão. Mas ia aos estádios e simulava bem um domínio perfeito das artes da bola no campo, para atiçar os ânimos, como deseja o jogo. Ou o teatro. Teatro, futebol, Nelson Rodrigues: quem sabe se misturar tudo permita que se chegue a algum novo entendimento da espécie humana?
Pois, nesta semana de copa, paixões acirradas, torcidas histéricas e descabelamentos atléticos, uma sensacional montagem de Nelson Rodrigues estará à disposição do distinto público. E de graça. O Espaço Furnas Cultural, em Botafogo, vai apresentar a irresistível Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Rodrigues, de 16 a 24 de junho, às 19h.
A peça é um clássico do autor e exala aquele sentimentalismo transgressivo exaltado do grande torcedor do Fluminense. A direção de Daniel Herz alcançou um efeito potencializador da dinâmica do texto, graças a uma cena límpida, geométrica, marcada por desempenhos intensos, realçados pela cenografia cirúrgica de Fernando Mello da Costa e pela luz diabólica de Aurélio di Simoni.
A oportunidade é de ouro, como a falecida taça Jules Rimet – ela permite pensar algo a respeito de um encontro improvável, mas desejável, entre teatro e futebol. Ao escavar o subterrâneo das almas, o autor fala da estrutura de sombra, paixão e dilaceramento que ergue o homem, talvez os mesmos engenhos que o futebol aciona, numa outra voltagem, quando instaura no estádio o urro coletivo. Quem sabe se este tipo de programa desperte a necessidade de teatro que sobrevive em todas as almas, ajude a diluir o ódio equivocado ao teatro, o ódio estranho que grassa por aí e impede a arte de revelar democraticamente as belezas que pode oferecer, em benefício da iluminação da vida?
Perdoa-me por me traíres
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Daniel Herz
Elenco: Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, Gabriela Rosas, João Marcelo Pallottino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelack
Espaço Furnas Cultural
R. Real Grandeza, 219 – Botafogo, Rio de Janeiro
Temporada: 16 e 17, 23 e 24 junho
Entrada franca
Horário: 19h
Classificação: 14 anos
Duração: 80 minutos
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A voz do corpo: Alvaro Assad, carioca de Alegrete (RS), 46 anos. Se decidíssemos destacar apenas um encanto em particular da montagem de Mistero Buffo – tarefa ousada – teríamos que escolher o requintado trabalho corporal da equipe. E o encanto tem nome e sobrenome: Alvaro Assad. Importa conhecer um pouco da identidade deste criador tão especial.
GENTILE MARIA MARCHIORO POLLONI
Óbito dia 24/01/2015 às 16h30
O teatro brasileiro perde uma de suas maiores atrizes: Maria Della Costa. A sua carreira no palco, iniciada em 1944, foi marcada por uma notável multiplicidade – ela se projetou graças à atuação em grandes textos, de importância histórica notável, autênticos desafios teatrais, e alcançou forte sucesso popular com o desempenho em peças de impacto comercial, garantia para a sobrevivência de sua companhia.
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A festa da rua e a festa da cena
Diário do Festival de Teatro de Curitiba – parte II
Não há dúvida: o nosso tempo é privilegiado. Ao menos segundo o ponto de vista daqueles que amam teatro. Pois é bem certo que nunca antes em toda a história houve uma época em que o palco aconteceu sob tamanha variedade de formas. E a agenda do 23º Festival de Teatro de Curitiba comprova a assertiva à exaustão. Nas ruas, em lugares específicos, em salas, galpões, auditórios e em múltiplas formas de palco lá está o teatro, apaixonante e apaixonado, uma beleza de ver.
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Festival de Curitiba: a matéria profunda de todos nós
Não percebemos, mas a nossa vida se esvai em um fluxo contínuo, infinito, como uma névoa perdida bailando sobre um antigo cais. Acreditamos saber quem somos, confiamos que somos as nossas lembranças, mas a memória se faz por fragmentos irrecuperáveis, um jogo sentimental a um só tempo rude e delicado, um redemoinho doce em que se perde a vida. Um sopro primeiro, antigo, talvez explique quem somos. Mas nós o mantemos soterrado sob pesadas camadas de ilusão. Ou de quinquilharias.
Sim, deve ser esta a chave do encanto de Cais – ou da indiferença das embarcações, um trabalho antológico de Kiko Marques. A inspiração clara para a formulação da encenação tem duas origens, dois eixos diferentes nortearam a sua concepção. O primeiro, a peça escrita por Kiko Marques, cuja composição foi iniciada em 2006. O segundo, o espetáculo Les Ephémères, de Ariane Mnouchkine, apresentado em São Paulo em 2007. Portanto, um projeto dotado de maturidade.
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Sentimentos comuns, teatro de exceção
Evoé, São Paulo – e eis que uma brisa bandeirante vem da montanha decidida a varrer a nossa praia e demonstrar a superficialidade de nossa existência litorânea. O teatro paulista (ou paulistano?) pede passagem e não deixa pedra sobre pedra onde passa. Muito bom: uma das coisas boas da vida é o teatro denso, bom de ver. Em especial este teatro cotidiano, dialógico, de fino acabamento e excelente composição, que vem até nós para falar de coisas simples, a nossa condição rotineira, os desafios dos nossos pequenos dramas. Em resumo, o teatrão comercial demonizado pelos jovens e experimentais, que não está inventando a essência da vida, apenas deseja lidar com o valor imediato da arte na ciranda de todo dia.