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Certamente você já sonhou Brasil. Ah, não se envergonhe: assuma. É um pecado de todos nós. Ser Brasil, é ser assim. E,  confesse – você sonhou com pureza, esperança e amor. E ainda mais: você percebeu, ao ouvir as músicas de Djavan, uma conexão intensa entre o seu sonho e o fluxo subterrâneo das canções do poeta. 

Se você quiser mergulhar ao vivo, por inteiro, neste doce mar de sonho, não deixe de ver Djavan – O Musical: Vidas pra contar, em cena no Teatro Multiplan, na Barra da Tijuca. Trata-se de um espetáculo sensacional, imperdível, brasileiro até o fio mais delicado da medula. Pode ser que você saia contrito do teatro, reprimido pelo ar elegante do shopping ao redor, mas a sua alma sairá dançando, tinindo de alegria…

A peça pulsa com um segredo de sedução inacreditável. Ela lida com uma linha de musical biográfico mais recente, pois, justamente, o homenageado está vivo e em atividade. Portanto, não se poderia cogitar apresentar um inventário de sua história de vida; a escolha foi expor, ao lado da trajetória do artista até agora, o sentido maior das suas obras, numa estrutura coerente, na qual a condição objetiva da vida não explica a poesia, apenas serve para mostrar o jorro da criação. 

Reside aí o mérito maior do trabalho – a decisão de tratar de reconhecer a força do fluxo poético de Djavan enquanto um processo seu, interior… Um pouco mais: trata-se de uma forma-Brasil. E como dar conta deste traçado?

Em primeiro lugar, o espetáculo é, do início ao fim, uma torrente arrebatadora de música, verdadeiramente irresistível, muito bem estruturada graças à direção musical luxuosa de João Viana e Fernando Nunes. Há um intenso diálogo entre a música e o texto, em várias passagens conduzido pela música, demonstração perfeita da estrutura específica do teatro musical.

O libreto, escrito por Patrícia Andrade e Rodrigo França, tem um toque de malícia muito peculiar – sugere cenas de memória do astro, cenas de histórias narradas, relatos de entrevistas, como se esboçasse um álbum de recortes. Uma figura unifica este jogo, como um segundo protagonista: é uma espécie de narrador das cenas – Elegbá, entidade afro-brasileira equivalente ao Exú na tradição Iorubá, uma força vital encarregada de abrir os caminhos e orientar o destino, papel desempenhado com excelência por Milton Filho. 

Ao agir costurando todas as cenas, a entidade acaba por destacar a existência da música como força interior, espécie de canto da terra. Algo profundo, maior do que tudo, tudo, capaz de superar os limites e referências miúdas da matéria, para ser fluxo de absoluto amor. Sabe aquele abismo interior em que você mergulha ao ouvir Djavan? Pois é…

Raphael Elias e Marcela Rodrigues.

A requintada direção de João Fonseca explora bem a presença do narrador para aquecer as inserções musicais e esfriar algumas cenas dramáticas. Surge, a partir deste cálculo, um fluxo de emoção muito envolvente, algumas vezes no limite do melodrama, mas sempre escapando a favor de uma altivez de sentimentos – um grande exemplo é a cena da morte de Virgínia, a mãe de Djavan, que se transforma numa delicada passagem para a luz.

João Fonseca estruturou a morte como um quadro vivo sóbrio, sem apelação; sob um desenho seco, os filhos figuram ao redor da matriarca sentada num singelo banquinho-de-preto-velho. Marcela Rodrigues, no papel de D. Virgínia, realça a sofisticação da cena; o trabalho da atriz alcança extremo relevo graças à beleza de sua voz e à sua forte intensidade dramática.

Além da cena da morte, várias são as cenas modelares que poderiam ser citadas aqui. Portanto, em segundo lugar, o processo de celebração da arte de Djavan acontece como resultado daquilo que se poderia chamar de chave poética preciosa de encenação.  A liderança artística de João Fonseca teceu um encontro de arte memorável – a cena, sempre moldada habilmente pela música, materializa a força das sonoridades em todos os detalhes. Assim, a presença da madeira reina no espaço. O inspirado cenário de André Cortez tem como elemento central uma grande parede de madeira – um mosaico de pedaços de madeira –  um pouco como a muralha de barracos de madeira, por tradição, no Brasil, conteve a expressão da população negra.

No paredão, janelas se abrem ao sabor da ação e surgem adornadas com fundos pintados ou decorados ligados às situações – coqueiros de Alagoas, cortinas e lustres para lugares ricos, rendas do nordeste…  O paredão também funciona como tela para receber projeções, como os canaviais cubanos. Nas cenas, com frequência sem apoio de elementos cenográficos, os banquinhos-de-preto-velho, de madeira e com algumas das  laterais pintadas, desempenham múltiplas funções.

A mesma ideia de plasticidade e registro de identidades percorre o trabalho de corpo dos atores, uma concepção assinada por Marcia Rubin com inteligência profunda. A corporeidade trabalhada lida, em várias cenas, com a ideia de ciranda – uma forma de forte sabor nordestino. Ao lado da roda, tanto há o djavanear, um jeito específico de conduzir a música pulsando pelo corpo, como há o futebol, o samba, o jazz e os gestos sociais e cotidianos de nossa brasilidade rotineira. Quase tudo é dançado, como se a forma ideal do corpo “ser” fosse a música.

Os figurinos de Karen Brusttolin registram as épocas, revelam personalidades, plasmam tipos históricos, eventos e situações sociais. A mesma variação – agora para os climas das cenas e para o registro das tonalidades de emoção – figura na luz sensível de Daniela Sanchez.

O elenco numeroso e decididamente abençoado pelo talento para o teatro musical contou com a maestria de Jules Vandystadt nos arranjos e na preparação vocal. E há mais um charme irresistível, não identificado na ficha técnica – um trabalho minucioso, quase de rendeira do nordeste, teceu as modulações vocais para o sotaque alagoano e para a fala de diferentes personalidades figuradas em cena.

Raphael Elias

Neste andamento, Raphael Elias encanta decididamente a plateia com a apresentação de um Djavan que é voz, sutileza espiritual, gênio poético, fibra humana, intensidade emocional e física. Longe de imitar ou tentar mimetizar o astro, Raphael Elias trouxe para a cena, apesar de sua juventude, um trabalho de ator memorável por sua decidida construção como exploração do eu interior. Nada é forçado, mecânico ou esquemático: tudo exala a grandeza de arte que molda os grandes atores. Em consequência, aparece em cena um Djavan que é iluminada fonte de poesia.

Ao seu lado, como seu guia e protetor espiritual, se impõe delicadamente, com suavidade, e, logo, com a autoridade inerente aos espíritos-luz, a figura icônica de Milton Filho – um dos nossos maiores atores negros do presente. Vale prestar atenção à ginga e ao corpo malemolente do ator, capaz de cantar e dançar com extremo magnetismo, e de eletrizar a plateia na abertura do segundo ato.

Milton Filho e Raphael Elias.

Na família de Djavan, ao lado da imponente D. Virgínia, de Marcela Rodrigues, Alexandre Mitre empresta a sua voz notável a Djacir, o irmão mais velho, e Ester Freitas desenha a irmã, Djanira, como símbolo de delicadeza existencial. 

O elenco, exceptuando-se Raphael Elias, desdobra-se em diversos papéis. Nesta batida, alcançam o coração da plateia algumas intervenções fortes.  Eline Porto ecoa toda a pureza e a doçura do primeiro amor ao compor Aparecida, entre o carinho e o humor.  Douglas Netto, em diferentes funções, é pura versatilidade sem medo. 

Tom Karabachian apresenta corajosamente um Caetano Veloso que, inclinado ao sublime, escapa do caricato. Gab Lara causa surpresa forte com um Chico Buarque desenhado com muita argúcia. Walerie Gondim emociona a plateia com uma Gal Costa sensual, homenageada em cena, e resolve com acerto a segunda mulher, Rafaella.

Walerie Gondim

A exposição dos mecanismos criativos do espetáculo poderia ser ainda mais longa; ela obedece a um cálculo preciso: registrar a força, a grandeza, de um musical exemplar. A equipe, sob a liderança madura de João Fonseca, com atores e músicos de alta qualificação na arte, consegue materializar em cena a alma do musical e, ao mesmo tempo, conseguiu fazer o foco incidir sobre a essência da arte do poeta. É fundamental perceber como a arte de Djavan, matriz abissal do amor, impregna o palco.

Trata-se, afinal, de teatro musical em estado puro. Diante dos nossos olhos, desfila em cena uma forma lírica espetacular de alta voltagem. Está no palco uma mistura luminosa de sonho, amor, leveza espiritual – aquela mesma que faz com que sejamos, no fundo de nossas almas, modelos de seres cordiais, seres de amor. Não se trata de um mito, mas de um estatuto fundamental. Contra ele, as impurezas do mundo agem, respingam sobre nós e nos levam, aqui e ali, à triste figura de traidores da humanidade que, muitas vezes, por aqui, somos. No entanto, não há que temer. Ao lado do nosso ser cordial, está o teatro, o  teatro que consegue honrar os grandes poetas. Então, corra até o Teatro Multiplan – lá, a esperança da música nos abraça – lá, sempre teremos Djavan. 

Serviço –

Rio de Janeiro

Local: Teatro Multiplan, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
Estreia: 5 de junho de 2025

Encerramento: 20 de julho 2025
Duração: aproximadamente 2h
Classificação indicativa: 12 anos
Horários: quinta e sexta, às 20h; sábado e domingo, às 16h

Ingressos:

Plateia VIP (220 lugares): inteira R$ 300, meia R$ 150

Plateia (200 lugares): inteira R$ 240, meia R$ 120

Plateia Superior Nobre (80 lugares): inteira R$ 160, meia R$ 80

Frisas (62 lugares): inteira R$ 100, meia R$ 50

Camarote Inferior (38 lugares): inteira R$ 100, meia R$ 50

Ingresso Popular (até 20% da capacidade): inteira R$ 42, meia R$ 21

Duração: aproximadamente 2h
Classificação indicativa: 12 anos

Ficha Técnica

Idealização: Gustavo Nunes

Texto: Patricia Andrade e Rodrigo França

Direção Artística: João Fonseca

Direção Musical: João Viana e Fernando Nunes

Coreografia e Direção de Movimento: Marcia Rubin

Iluminação: Daniela Sanchez

Cenografia: André Cortez

Figurino: Karen Brusttolin

Arranjos e Preparação Vocal: Jules Vandystadt

Designer de Som: João Paulo Pereira

Visagismo: Sidnei Oliveira

Produção de Elenco: Ciça Castello

Produção: Turbilhão de Ideias 

Realização: Nove Produções

Elenco

Aline Deluna – Maria Bethânia e múltiplos papéis

Alexandre Mitre – Djacir (irmão mais velho de Djavan) e múltiplos papéis

Douglas Netto – substituto de Djavan e múltiplos papéis

Eline Porto – Aparecida e múltiplos papéis

Ester Freitas – Djanira (irmã de Djavan) e múltiplos papéis – IRMÃ

Erika Affonso – Alcione e múltiplos papéis

Gab Lara – Chico Buarque e múltiplos papéis

Marcela Rodrigues – Dona Virgínia e múltiplos papéis

Milton Filho – Elegbara e múltiplos papéis

Raphael Elias – Djavan

Tom Karabachian – Caetano Veloso e múltiplos papéis

Walerie Gondim – Gal Costa, Rafaella e múltiplos papéis

Patrocínios e Apoios
Patrocínio: Caixa Vida e Previdência
Apoio cultural: Caixa Seguridade

Canal oficial
Instagram @djavanomusical