
Qual o papel do texto, da peça, no teatro? Deve existir apenas na fala e na voz dos atores? As letras no papel possuem vida fora do palco? Em cena, as letras precisam recorrer ao nobre edifício universal das artes para existir… ou podem ser apenas simples e vulgar teatro?
As perguntas são muito importantes no teatro brasileiro, pois não foram consolidadas aqui formas intensas de vida das peças teatrais fora da cena. Quer dizer, as peças, entregues ao seu feitio de ser, não existem para a nossa sociedade. A condição implica em duas solidões distintas – ninguém lê teatro, habitualmente, e ninguém acredita muito que o texto de teatro tenha valor em si.
Infelizmente, não se costuma ler dramaturgia nas escolas, um absurdo cultural enorme. E não se cultiva o célebre teatro-de-poltrona – quando o cidadão em casa, feliz, se dedica a ler e a imaginar os sentidos de uma peça de teatro apenas escrita ali no papel.
Ainda assim, ao longo da história surgiram guerreiros destemidos decididos a brigar por mudança, lutar contra a corrente de estagnação das ideias. São editores interessados em ver no formato livro as peças do tempo ou da história. Estes audazes lutadores têm uma história forte no Rio de Janeiro, desde o século XIX. Vale exaltar alguns exemplos.
Dois grandes nomes dedicados à atividade precisam ser louvados. O primeiro, a Livraria Cruz Coutinho ou Livraria Popular, notável, entre outros feitos, por ter publicado as cenas cômicas do ator Vasques a partir de 1860. E muito mais. A editora criou uma coleção de prestígio, Teatro Moderno Luso-Brasileiro, que sobreviveu por duas décadas. O espectador podia ler a peça antes mesmo de ir ao teatro, ver o ator.

O outro grande nome histórico foi a Editora Talmagráfica, no século XX. Os dramaturgos de sucesso sustentavam o catálogo da editora: Luiz Iglezias, Pedro Bloch, Joracy Camargo, Gastão Tojeiro e até mesmo Silveira Sampaio, entre outros nomes fortes de bilheteria. E de venda de livros. De teatro, claro. A mesma triangulação espectador-cena-texto era rotina.
A trama de letras, contudo, se perdeu – após o ciclo do teatro moderno, tornou-se cada vez mais raro encontrar a dobradinha palco-editora. Até surgiram políticas oficiais de publicação, porém elas subsistiram instáveis. Finalmente, para fazer a alegria da tribo do teatro, surgiu em 2008 uma editora interessada em recuperar a antiga tradição: a Editora Cobogó.
A linha editorial da casa não abrange só o palco, mas o pensamento sobre arte, cultura e o mundo do presente. Portanto, a Coleção Dramaturgia, a estante teatral da editora, contempla autores do presente, nacionais e estrangeiros – mas nenhum clássico ou dramaturgos de tempos passados. Figuram no catálogo, ao lado do Brasil, dramaturgos da Espanha, da França e da Holanda.
Seguindo essa linha de diálogo com a atualidade, entrou em pré-venda um novo livro dedicado ao teatro – Ana Lívia e outras mulheres, de Caetano W. Galindo. O autor curitibano é escritor, tradutor e professor, vencedor de prêmios literários; o volume de lançamento reúne as suas primeiras peças sob um formato peculiar, digamos, contemporâneo.
Em sintonia com o pensamento teatral mais reflexivo do presente, o livro traz as peças Ana Lívia e Leonora, acompanhadas por um dossiê dedicado ao processo de construção, no teatro e nos ensaios, da peça Ana Lívia. É, digamos, o registro-reportagem do processo de montagem da peça pela companhia de teatro Cia BR116. Um pouco como se as atrizes (e não só elas) entrassem no livro.

A obra consagra no formato editorial um processo de criação teatral importante no nosso tempo – trata-se do reconhecimento de uma relação íntima entre a sala de ensaio e a concepção da dramaturgia. Se, diante do teatro do ator Vasques, o espectador comprava e lia o texto da peça escrito pelo ator para desfrutar mais profundamente da capacidade de invenção cênica do artista, até mesmo do seu vigor para mudar o texto, agora a pegada tem outra natureza.
Hoje, o amante de teatro leitor de Caetano Galindo – vendo ou não a representação da peça – pode dimensionar a participação da cena no processo de criação do texto, graças ao registro do processo de montagem. De certa forma, desnuda-se uma parceria, uma prática antiga, mas até o presente desprezada, pois parece evidente que, em cena, a favor da cena, muitas vezes a obra do dramaturgo foi sacudida. E até mesmo atropelada.
O tema tem muito fôlego. Vale lembrar, por exemplo, a insistência de Procópio Ferreira em afirmar a grandeza poética da sua arte de palco. O grande ator costumava dizer que respeitava muito os textos, os autores, não recorria a cacos – apenas se preocupava em ser um colaborador inteligente do autor. Portanto, introduzia falas e mudanças ali onde percebia que o dramaturgo se traíra, vacilara nas próprias intenções. A seu favor, costumava afirmar que com frequência os autores levaram para a edição das peças criações suas, pois elas completavam o texto…
Evidentemente, os conceitos de peça de teatro, dramaturgia e escrita teatral ficam sob o foco. Apontam para o dinamismo essencial da arte do teatro, sempre vinculada ao espírito do próprio tempo, condição que obriga as letras a bailarem no palco de acordo com a música da época. O diálogo primordial do teatro é com o tempo em que ele acontece? A dramaturgia é filha dócil do tempo e precisa se submeter humildemente a ele? Onde fica a genialidade do autor para perceber esses vínculos sutis? Qual o eixo de criação regente do palco?

A Cia BR116, de São Paulo, criada em 2009 sob a direção de Bete Coelho, Gabriel Fernandes e Ricardo Bittencourt, foi responsável pela encenação de Ana Lívia em 2023, em São Paulo. A história do coletivo segue um ritmo acelerado de invenção – quer dizer, a velocidade aparece tanto na busca de um encontro cênico de artes, como na sintonia com os temas mais contundentes do presente.
A tônica da trajetória do coletivo torna natural a combinação de audiovisual e teatro, por exemplo, marca assumida em 2020, com a criação de Medeia, adaptação do mito grego assinada pela dramaturga Consuelo de Castro. E, no caso de Ana Lívia, texto escrito para a companhia, aflora o poder da literatura, das letras propriamente ditas, em ebulição.
No original, o autor, que traduziu Ulysses, de James Joyce, usa referências consagradas do universo literário para estruturar o texto – Dylan Thomas, Emily Dickinson e o próprio Joyce marcam presença. São duas atrizes em cena, enredadas numa rede enigmática, convidadas à exploração intensa das palavras e dos gestos. Elas, nos próprios nomes, Ana e Lívia, desmaterializam as suas existências a favor de um cálculo de arte – Anna Livia Plurabelle, afinal, personagem de Finnegans Wake, de Joyce, é considerada como símbolo da mulher eterna, universal. Pode-se dizer que se trata de um teatro que se trama em si, sem trama.
Surge do processo um resultado poético natural. Uma linha de racionalidade se insinua entre o texto e o leitor e ela atenua o efeito catártico convencional do teatro. O conhecimento do processo de encenação contribui para a percepção das cores desse palco mais frio, mais distante, quase pós-teatral. Vale, portanto, conhecer o texto da peça, mesmo sem a chance, no momento, de vê-lo em cena.
Em conclusão, há uma constatação preciosa: é fundamental reconhecer a imensa contribuição que a jovem editora presta à cultura brasileira, ao lançar o foco sobre a cena e permitir que tenhamos ao alcance da mão os textos das nossas cenas teatrais. Sob roupagens inventivas emprestadas pelo pensamento de arte contemporâneo, retoma-se uma prática do passado que deveria ter se tornado tradição.
A edição espelha com rigor o programa de ação da casa. A oferta generosa é, afinal, uma oportunidade muito curiosa para o público entrar em sintonia com um teatro contemporâneo que se constrói como encontro deliberado de artes.
Bom, pode parecer saudosismo. Mas… No fundo, ecoa aí uma nota dolorosa – até que ponto este belo concerto poético universal das artes nos joga para fora do palco e é, na verdade, um apagamento implacável do próprio teatro?…

Ficha técnica
Título Ana Lívia e outras mulheres
Autor Caetano W. Galindo
Idioma Português
Número de páginas 136
Editora Cobogó
ISBN 978-65-5691-164-9
Capa Celso Longo + Daniel Trench
Encadernação Brochura
Formato 13 x 19 cm
Ano de publicação 2025
CDD B869.2
Preço 55,80
Fotos: divulgação e acervo da autora.
https://www.cobogo.com.br/produto/ana-livia-e-outras-mulheres-765?language=pt-BR