
Vamos falar francamente: não existe prazer maior ao alcance dos seres humanos acima do pensamento. Discorda? Ah, pense nas outras opções – sorvete, chocolate, desfile de carnaval, cama macia, amor desvairado, sexo e rock and roll… Todas, sem exceção, são formas rápidas, passageiras, quer dizer, tem prazo de duração fixo, curto. Não podem ser imersivas, tampouco se desdobram em múltiplos descaminhos. Já o pensamento…
Pensar traz surpresas bem agradáveis. Um exemplo irresistível é o carnaval. Estamos acostumados a falar “na grande festa popular”, na “festa maior do povo…”. Mas, duvidemos, estas frases sobrevivem ilesas depois de bem sacudidas por fortes sessões de livre pensamento?
Não, não vou explorar eventuais origens religiosas do carnaval, para dizer que ele veio da igreja. Também deixarei de fora as festas pagãs pré-históricas associáveis aos calendários climáticos e não vou cravar a raiz do carnaval na terra. Não sei se acredito em vínculos tão remotos tecendo as almas ao longo de séculos. Ou milênios. José de Alencar já dizia – tudo passa sobre a terra.
Vou ficar por perto: tratarei de associar o carnaval das escolas na avenida à construção do poder absoluto dos reis, contra a força dos nobres feudais. Os soberanos fizeram sucesso desfilando em carros enfeitados para celebrar datas festivas. Fascinaram o povaréu. Precisavam quebrar a nobreza rebelde. A prática surgiu em confronto com memórias recentes, em contraponto com os nobres guerreiros, adeptos de desfiles de cunho militar, sempre capazes de matar alguns anônimos pelo caminho.
Este tipo de desfile festivo real sobreviveu até o século XIX. Ou um pouco mais, para grandes festas ocasionais: basta lembrar dos cortejos recentes realizados na Inglaterra, para integrar o povo na comemoração de casamentos, mortes e coroações. Lá vai o Príncipe Charles – ops, o Rei Charles – que não nos deixa mentir…
No século XIX, no Brasil, além dos cortejos reais festivos e das procissões, surgiram os préstitos de carnaval, quer dizer, os desfiles de carnaval. A moda dos desfiles ecoava a prática da realeza, foi lançada por jornalistas e fascinou a sociedade de bem. Aliás, um nome forte ligado à criação dos cortejos foi, justamente, José de Alencar.

O objetivo, logo alcançado, era acabar com o entrudo – brincadeira de rua de gosto popular duvidoso, de origem lusitana, às vezes bem agressiva, na qual se jogava em quem passasse água de cheiro, farinhas e até mesmo água suja. Ou, como se costumava dizer, água servida – sinônimo de água de penico.
No ano de 1853, os jornais publicaram a proibição do entrudo: “Fica proibido o jogo do entrudo; qualquer pessoa que jogar incorrerá na pena de quatro a doze mil réis; e não tendo como satisfazer, sofrerá de dois a oito dias de prisão. Sendo escravo, sofrerá oito dias de cadeia, caso seu senhor não mandar castigar no calabouço com cem açoites…”
Assim, o ano de 1854 ficou marcado como o último ano em que houve entrudo no Rio. Em 1855 foi iniciado o período dos préstitos carnavalescos, a proto-história dos desfiles das escolas de samba. Um grupo de foliões e jornalistas fundou o Congresso das Sumidades Carnavalescas, que fez um desfile luxuoso pelas ruas da cidade.

O préstito abria com uma banda de música uniformizada como Cossacos da Ucrânia, seguida pelo carro com o estandarte do clube (Sumidades!) empunhado por um D. Quixote. A seguir, liderados por Nicolau I, apresentava-se um grupo de cavalheiros, seguidos por vários carros alegóricos decorados com capricho, que arrancavam aplausos da multidão. O imperador e a família acompanharam o desfile do largo do Paço. A confiar nos jornais, gostaram e aplaudiram alguns carros considerados especialmente belos.
A festa nas ruas seguiu o tom: foi rica em desfiles de máscaras, a pé, a cavalo ou em carruagens. Nas janelas, senhoras e moças acompanhavam os desfiles, atirando flores umas às outras. Os bailes mascarados, nos teatros, prática iniciada em 1840, também figuraram no calendário e ajudaram a mudar o perfil do carnaval, “de sujo” para elegante. Se olharmos com muita atenção, veremos heranças do entrudo por aqui e ali… nos blocos de lama e de sujo.
Mas o gosto crescente da população se inclinava para os desfiles nas ruas, a princípio organizado pela melhor sociedade, especialmente por sua parte masculina. Em 1855 foi fundado o Clube Tenentes do Diabo, de longa história. Em 1867 surgiu o Clube dos Democráticos, que sobrevive até hoje, ainda que tenha deixado de desfilar há muito tempo e tenha se tornado apenas um salão de danças.
A disputa entre as agremiações era bem forte. Em 1856, o grande destaque dos desfiles ainda coube ao Congresso das Sumidades Carnavalescas, porém outros dois préstitos se apresentaram ao povo – a União Veneziana e um outro que saiu da Rua D. Manuel.

A rigor, os préstitos mimetizavam os desfiles grandiosos da realeza e da alta nobreza, forma de afirmação social do poder dos reis, contaminados, porém, com referências ao carnaval de Veneza. O sucesso foi tão grande que a prática atravessou o século XIX e chegou ao século XX, com as agremiações passando a ter o nome de Grandes Sociedades – forma de desfile que foi influência direta para a origem das escolas de samba atuais… formadas, estas novas agremiações, originariamente pela população preta e pobre de áreas periféricas da cidade. Até uma data avançada, perseguidas pela polícia e mal vistas pela gente de bem.
Este, contudo, é um outro ponto – basicamente, nestas vésperas do carnaval, este texto pretende apenas provocar o pensamento para a análise da complexa natureza daquilo que, por vezes de forma bastante superficial, se costuma qualificar como arte popular... Vale também para implicar com a mania de considerar o carnaval como puro exercício da carne: pensemos.

O fato que se deseja destacar pode ser enunciado de forma direta: os caminhos do poder podem chegar às sensibilidades de forma bastante insuspeita. Tramam e implantam hierarquias. Vale o debate. Se os primeiros cortejos das Escolas de Samba pareciam muito mais com os “blocos de corda” de hoje, parece inegável que o formato repleto de alegorias e grandes carros tem parentesco direto com o carnaval dos préstitos e cortejos amado pela alta sociedade.
E vale o debate também graças ao lançamento do primeiro grande livro dedicado aos grandes nomes do carnaval atual – a obra focaliza, a partir do olhar de vários especialistas, os carnavalescos mais notáveis da história da festa. O livro, organizado por Luisa Duarte e Miguel Pinto Guimarães, é lindo, uma obra de arte.
E é mais – é útil para desencadear boas discussões. Apesar das insinuações e suspeitas de que os grandes carnavalescos possam ser filhos das Belas Artes ou das Artes Plásticas, muita pesquisa ainda precisa ser feita, muita história deverá ser escrita.
Pois os artífices criadores dos grandes carros dos préstitos e dos desfiles das Grandes Sociedades eram, na sua maioria, os cenaristas dos teatros. Então, compliquemos a argumentação. A arte e a beleza das Escolas de Samba têm também uma outra filiação de alta nobreza, são filhas dos cenaristas, os fidalgos pintores e escultores das cenas teatrais… O carnaval foi, em algum momento, teatro em movimento…
Tais fidalgos, no entanto, não seriam jamais o que foram sem aqueles especialistas que hoje chamamos cenotécnicos. Podemos suspeitar, então, que um saber de barracão foi consolidado ao longo deste século e tanto de carnaval. Seria uma forma de saber popular? Consequentemente, pode existir carnavalesco sem academia, mas é impossível existir carnavalesco sem barracão.
A grande virada para pensar todo este nó pode ter como ponto de partida o capítulo do livro assinado pelo jornalista Aydano André Motta, Mestre Múltiplo das Artes Carnavalescas, dedicado ao grande Laíla. Fica muito claro no texto um ponto denso, o grande desafio para as definições de raízes, filiações, conceituações.

Laíla, um pouco como o carnaval, é filho de barracão. Mas o barracão tem olhos para o mundo, ciência para sobreviver, sensibilidade para filtrar as tramas de poder em circulação. Como se faz a passagem dos saberes sociais em circulação para o chão das ruas? É no barracão? Afinal, o que é exatamente, no Brasil, a carnavalização?
São perguntas boas para quem decidir descansar o corpo da folia, enquanto mantém o cérebro aceso até mesmo diante do carnaval. O convite para a dança das ideias no recesso carnavalesco pode ser inspirador. Neste outro lugar da folia, podem surgir surpresas. Ali aparece clara a silhueta intrigante da genialidade brasileira, uma magia do saber que pulsa inconteste no carnaval.

SERVIÇO:
FOTO: 1958, foliões descem o morro para o desfile do Império Serrano.