E lá vem a poesia, transbordante, filha do novo mundo; mais uma vez ela vem revestir a cena e magnetizar a plateia. Vale conferir a jovem encenação de Aqueles que deixam Omelas, adaptação teatral do conto da escritora norte-americana Ursula K. Le Guin (1929-2018), novo cartaz do Teatro Poeirinha.
A montagem estreou na Sala Preta do Espaço Sérgio Porto, um recanto teatral intimista, na verdade um tanto tímido para a proposta. Na nova casa, a peça vai alçar voo e provocar todo o impacto que merece obter. Do conto original às minúcias criativas traçadas no espaço cênico, o que se impõe é algo bem fiel à ideia defendida por Edgar Morin; para ele, suportamos a vida muito mais graças à poesia do que à utopia. É para lá que estamos caminhando.
Pois bem, estamos diante da arte do século XXI. A era das utopias passou. A obra deseja discutir, com ferramentas afiadas, exatamente este ponto: a capacidade da utopia para nos cegar, nos transformar em marionetes ou engrenagens mecânicas vivas, para, afinal, deixarmos de realmente ver o humano. No lugar das antigas bandeiras formuladas a partir do século XVIII, prontas para revoluções aparentemente radicais, mas vazias de humanidade, se impõe um gesto mais intenso de sensibilidade, empatia e amor. Quer dizer, o primado absoluto da poesia.
A cena acontece justamente assim: um fiapo de ideia é exposto para acionar sucessivas espirais de expressão sensível, lugares poéticos que incendeiam a atenção da plateia como se fossem faíscas de beleza. O ponto de partida racional para o mergulho no universo poético é construído a partir da trama do conto. Sozinho em cena, o ator João Pedro Zappa conta a história de Omelas, na aparência imediata um lugar de felicidade completa, organizado em sintonia profunda com os ideais utópicos difundidos no mundo até o século XX.
Omelas surge como a pátria da alegria, da realização, da vida solar. O edifício perfeito, contudo, se alicerça a partir de um segredo, uma dor humana profunda, um pacto maligno coletivo, compartilhado por todos. Por isto, existem seres que deixam Omelas, mas o alcance desta fuga, envolta nas perguntas mais urgentes do mundo de hoje, não é respondido pela cena. Ele precisará ser desvelado pela plateia, por cada um que passar pela experiência artística oferecida.
Isto significa um formato teatral novo, ou no mínimo bem diferenciado das práticas consagradas dominantes hoje. A beleza da cena é imensa, arrebatadora, mas tão traiçoeira quanto Omelas: o espectador não consegue simplesmente usufruir ou desfrutar das incontáveis imagens belas. Quer dizer, não consegue se alienar, envolto num manto ideológico acalentador. Ao contrário, a cada passo, ele é levado a aglutinar as peças em jogo e, numa vertigem progressiva, ele mergulha na incômoda pergunta a respeito da origem do belo que lhe é ofertado. Após a revelação do segredo, todo o edifício poético é posto em xeque – qual seria o motor ideal da vida humana no mundo? A vida precisa existir como senhoria da dor alheia?
Talvez o lado mais arrebatador da proposta nasça de sua condição de arte jovem. Exatamente isto: arte jovem para um mundo novo. Quase toda a equipe envolvida com a cena é de talentos em início de carreira. É a estreia do diretor João Maia P, uma estreia de puro ouro poético. O desenho da cena, de sua autoria, obedece a um acabamento formal rigoroso. Está alinhado com a necessidade de construção de um fluxo de beleza intenso, discretamente conduzido por um fio de racionalidade funcional, concebido para o fechamento da obra. Não se trata, contudo, de arte conceitual; João Maia P pratica uma arte poética cósmica, digamos, se precisarmos de um rótulo para defini-la.
Diante desta objetiva paleta de sensações, para afiná-la com muita precisão, a ficha técnica é sintética. Grande parte do impacto alcançado pela cena nasce da luz, absolutamente poética, minimamente narrativa, do mestre Luís Paulo Neném. O foco e as áreas iluminadas, sob alguma variação enfática de cor, produzem uma aura encantadora, em diálogo com a direção de arte, a um só tempo minimalista e eficiente, de Maria Estephania.
E há todo o resto. O resto se chama João Pedro Zappa, um legítimo encantador de gentes. Sim, estamos mudando de era teatral – dos encantadores de serpentes e coisas, passamos para os encantadores de gentes. Houve um longo tempo em que o público era serpente, bicho peçonhento ou arisco, escorregadio, que o palco devia domar ou controlar. Ou, para outros, o público era coisa, espécie de massinha de modelar pronta para ser manipulada em diferentes sentidos. Agora, ingressamos no tempo do encantamento do ser, uma época na qual a magia de existir precisa ser assumida integralmente.
João Carlos Zappa é ator deste novo tempo. Ágil, maleável, intenso, corajoso, ele materializa integralmente a partitura poética da peça sempre sob uma intensidade admirável. Sim, acontece algum desmedido – afinal estamos diante de um ator jovem. O desmedido, porém, dialoga organicamente com a fabulosa vontade do dizer poético. Assim, da fala ao gesto, da tonalidade das palavras aos meneios físicos e às intenções, está tudo lá, em estado de sedutora coerência poética, numa formidável virada de página da fortuna do teatro universal.
Em resumo, esqueça a velha emoção interior do bom Stanislavski, desvie rápido da racionalidade do velho Brecht, faça uma saudação distante ao descabelado Artaud. E voe rápido, com delicadas asas poéticas libertas de todas as velhas opressões, para o Teatro Poeirinha. É uma chance para se embriagar de poesia e conferir o radiante teatro do futuro: lá, ele está nascendo.
Ficha técnica:
Texto: A partir do conto de Ursula K Le Guin.
Direção: João Maia P
Atuação: João Pedro Zappa
Direção de arte: Maria Estephania
Iluminação: Luís Paulo Neném
Designer gráfico: Lucas Pires
Assistência de Direção: Luiza Porto
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Direção de Produção: Dadá Maia
Produção: Ciranda de 3 Trupe
Fotos: Beatriz Salgado
Serviço:
Espetáculo: Aqueles que deixam Omelas
Temporada: 14 de janeiro a 26 de fevereiro de 2025
Teatro Poeirinha: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro/RJ
Telefone: (21) 2537-8053
Dias e horários: terças e quartas-feiras, às 20h.
Ingressos: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia-entrada)
Capacidade: 50 pessoas
Duração: 50 minutos
Classificação etária: 14 anos
Venda de ingressos: pelo site Sympla e na bilheteria do teatro, de terça a sábado, das 15h às 21h, e domingo, das 15h às 19h.
Assessoria de imprensa
Rachel Almeida