
Cessa tudo o que a antiga musa canta, outro valor mais alto se alevanta: as palavras do poeta traduzem com exatidão o mapa teatral brasileiro atual. Em lugar do velho eixo Rio-São Paulo, instaurado nos anos 1950 como força vital do palco do país, agora temos o triângulo Rio-Sampa-Curitiba. A cidade da flor do manacá se tornou uma referência teatral equiparável às duas antigas capitais teatrais do país e o verso de Camões, aqui, é constatação, não é retórica.
Como foi que este movimento cênico-tectônico aconteceu? Qual foi a força responsável por esta reviravolta histórica? A bem da verdade, alguma coisa acontece nas terras do Paraná, algo a ser estudado por pesquisadores, pois a terrinha há muito tempo é pródiga em talentos teatrais e em amor ao teatro. Contudo, de imediato, uma evidente força de transformação começou a operar a partir de 1992: o Festival de Curitiba. O evento deste ano, a 33ª. edição, está só começando, vai sacudir os tablados e as almas de 24 de março até 06 de abril…
Os números atuais levam a uma constatação impactante: trata-se do maior evento teatral do Brasil. Mais, até: ele é o maior festival de teatro da América do Sul. Naturalmente, o maior efeito político imediato do certame é a projeção de Curitiba como cidade de referência teatral para o país. Deve se considerar, a seguir, a elevação da cidade à condição de maior palco brasileiro – afinal o festival se espalha por toda a área urbana.
O inventário das atividades programadas revela números muito impactantes. Ao todo, mais de 350 atrações serão oferecidas, com uma diversidade enorme de espaços ocupados, dos palcos às praças e ruas; na listagem oficial de endereços, descontadas as praças, constam 52 espaços de apresentação, entre teatros, centros culturais e auditórios.
Contudo, importa acrescentar um detalhe que faz toda a diferença – existe vida teatral em Curitiba. Existe mercado teatral, quer dizer, existe uma classe teatral estruturada como categoria profissional, dedicada ao ofício, com público constante, apoio da comunidade e das autoridades, ainda que este mercado de arte padeça com esgarçamentos semelhantes aos que envolvem a vida de teatro carioca e paulista.

Curitiba – e o Paraná – tem os seus ídolos locais, muito embora ainda não se possa falar em projeção nacional para os grandes talentos radicados na terrinha. Este, claro, é um passo que se anuncia, pois, conjuntos estáveis como o Ave Lola, nesta edição do festival sem programação na grade, caminham a passos largos para conquistar o Brasil. A casa de teatro liderada por Ana Rosa Terra está em processo de montagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare, com estreia prevista para maio. Quer dizer, o festival termina, mas os tablados curitibanos seguem a todo o vapor.

Um outro exemplo eloquente é o Teatro Lala Schneider – lá, João Luiz Fiani lidera uma família teatral incansável, dedicada com afinco ao culto do teatro. Praticam teatro de repertório – e registram o recorde de ter uma peça de teatro, A casa do terror, em cartaz há 30 anos, fato único no teatro brasileiro. Serão 8 peças em cartaz durante o festival, além de mais 2 cartazes no Teatro Fernanda Montenegro.
Se o teatro se mostra como atividade nativa intensa na cidade, vale perguntar: como a teia do festival está organizada hoje, para alcançar repercussão tão grande no país? Ela se apoia numa estrutura forte, consolidada, que chegou à maturidade em diálogo com a classe teatral local e em sintonia com os desejos culturais da cidade. Esta condição genética determinou a afirmação de uma vocação para um festival de amplos horizontes culturais. Acontece de tudo em Curitiba. Consequentemente, a variada programação foi organizada em oito segmentos diferentes.
O núcleo central gira ao redor da Mostra Oficial Lúcia Camargo, homenagem a um nome fundamental da história do festival, da vida cultural curitibana, paranaense e nacional. Sem a mente visionária, a incrível capacidade de produção, a inclinação bem-humorada para o diálogo e a excelência humana de Lúcia Camargo (1944-2020), o festival jamais teria se tornado o colosso cultural de hoje.

A curadoria da mostra nesta edição, integrada por Daniele Sampaio, Giovana Soar e Patrick Pessoa, selecionou 26 trabalhos, do país e da latinidade, com foco especial em acontecimentos cênicos de impacto, atenção especial para propostas inovadoras. Basicamente, mesmo espetáculos associados ao jogo de linguagem mais ligado às tradições, têm uma aura de experimentação.
A Mostra Surda de Teatro, com 7 espetáculos na grade, dialoga diretamente com a mostra oficial, sintonizada com o debate da inclusão social. Ainda no quadro da mostra oficial, projeta-se o segmento Guritiba, dedicado ao teatro infantil.
Ao lado e ao redor da mostra oficial, há o grande panorama teatral da atualidade, configurado no Fringe, de certa forma um festival dentro do festival. É a mostra sem curadoria, aberta a inscrições nacionais e internacionais. O segredo principal desta, digamos, mostra paralela, é a sua condição de vitrine privilegiada das pulsões e desejos do país. Ela é praticamente um mapa da vida teatral brasileira hoje.
Neste nicho, a programação abrange as frentes Espetáculos de Rua, Mostras e também o Circuito Independente, quer dizer, a programação autóctone, a prataria da cidade marca presença de forma enfática. Trata-se de um universo gigantesco que inclui um leque imenso de trabalhos; muito provavelmente, nenhum ser humano será capaz de afirmar “no festival, eu vi tudo do Fringe e vou contar para vocês o que aconteceu por lá.” Além de espetáculos, há uma oferta impressionante de atividades ligadas ao teatro, de natureza muito diversificada… Mais do que tudo no conjunto do festival, o Fringe encarna com perfeição a ideia colada à edição deste ano, o anúncio de que se trata de um evento “para todos”.
O melhor de tudo, porém, é a constatação de que o festival vai bem mais longe. Um sucesso imenso, desde que foi incluído na programação, é o Gastronomix, primeiro evento ao vivo gastronômico ao ar livre do país. A convite do celebrado chefe Celso Freire, os melhores chefes do Brasil marcam presença no encontro, sob uma atmosfera de harmonização musical bastante eclética – música brasileira, jazz, pop e blues envolvem o espaço. Além de oferecer uma seleção requintada de sabores, a mostra conta com aulas-show e feira de produtos, à disposição de toda a família.
Para honrar ainda de forma mais ampla o compromisso com a cultura, o festival apresenta o segmento Interlocuções, com uma agenda repleta de cursos, palestras, oficinas, mostras e lançamento de livros. Neste espaço, se pode ter acesso objetivo a uma amostra do saber e do fazer teatral em circulação na atualidade.
Contudo, dialogar com a atualidade tem um alcance estratégico importante: afinal, atualidade em teatro significa em grande parte atenção ao gosto do público; arte da presença, o teatro só pode acontecer se e quando o palco aceita dialogar sem reservas com os contemporâneos. Este vínculo é o motor do Risorama, em cartaz de 27 de março a 1 de abril – segmento do festival que honra a decidida paixão do brasileiro pelo humor, exercitada desde o século XIX. Neste caso, a apresentação de grandes nomes da comédia stand-up acontece sob o formato de show, com direito a comes e bebes…
Um outro ângulo da prática teatral vai sacudir a cena curitibana, nos dias 5 e 6 de abril: o espetáculo MishMash. Dedicado à apresentação de histórias fantásticas, com talentos de todo o país, a proposta é para eletrizar as vidas. Um pouco como registra uma das velhas matrizes da alma nacional, encantada por mágicas e feiras de variedades desde o final do século XIX, a aposta é bem direta: oferecer o percurso de “uma montanha-russa de emoções” e “tirar o fôlego da plateia” …
Finalmente, dentro da mostra oficial, duas iniciativas diferentes pretendem lidar diretamente com a expansão do pensamento crítico em arte e cultura. A primeira, Ações Críticas, oferecerá ao longo do festival conversas críticas ao vivo após os espetáculos, com a presença de críticos e debatedoras. A segunda registrará um fato histórico de grande repercussão: será o ato, no dia 4 de abril, de formalização da AJACEN-PR, Associação dos jornalistas e críticos de cultura, arte e entretenimento do Paraná, convocado pelos jornalistas Maximillian Santos e Mariane Antunes. Num momento de crise e de mudança de paradigma da imprensa e de apagamento radical da função de crítico de teatro nos veículos de comunicação, a iniciativa é, no mínimo, corajosa.
Todo este edifício se ergueu na cidade nesta edição a partir de duas pedras fundamentais de grande efeito, lançadas na abertura do evento – a recepção do público pelo sensacional mestre de cerimônia Milton Cunha, um dos maiores especialistas do país em cultura popular, e a encenação de Os Mambembes, adaptação de uma das peças-monumento de Artur Azevedo (1855-1908).
A montagem, dirigida por Emílio de Mello e Gustavo Guenzburguer, está percorrendo o país e foi convidada para a abertura do festival. No elenco, o espetáculo conta com atores notáveis: Cláudia Abreu, Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Leandro Santana, Orã Figueiredo, Paulo Betti e o músico Caio Padilha. Assim, a festa sinalizou a favor de um festival com maior alcance popular, sintonia histórica com as grandes tradições do país e densidade da linguagem da arte.

Belos exemplos deste caminho apareceram na programação da primeira semana – ao lado da requintada arte da cena apresentada por Débora Falabella em Primafacie, espetáculo de importância histórica, mais uma direção magistral de Yara de Novaes, a plateia do Teatro Guaíra pode se emocionar com Ray. Você não me conhece, espetáculo de Rodrigo Portella.
Nos dois casos, o tema do popular apareceu infiltrado de forma curiosa. Em Primafacie, Débora Falabella demonstra a grandeza do seu vínculo com o palco e com a produção requintada de arte. Apesar da sua consagração como atriz de telenovelas, a atriz, com larga história no teatro de grupo dedicado à pesquisa de linguagem, decidiu se dedicar à encenação de uma peça estruturada de forma densa, de perfil profundamente desafiador e à frente do nosso tempo: a demonstração dramatúrgica da omissão da justiça diante da violência da própria justiça, hoje, contra as mulheres.

Sozinha em cena, com um cenário de contornos abstratos que se modifica segundo o andamento da ação, um figurino teatral em sintonia com as mudanças da vida da personagem, Débora Falabella expõe uma advogada triunfante. Mas ela se afirma na profissão após muita luta para descobrir que pode ser vítima e injustiçada, pois as leis, hoje, não são instrumentos isentos quando a violência atinge as mulheres. Simplesmente, vale insistir na afirmação, trata-se de um espetáculo histórico. É um trabalho de tirar o fôlego e um atestado de mérito na grande arte.

Na encenação dedicada a Ray Charles, inspirada no livro de Ray Charles Jr., a forma singular, transgressiva, migrou para a interpretação coletiva. A direção e a dramaturgia têm a assinatura de Rodrigo Portella. Com um elenco de atores negros exemplares – destaque especial para o ator mirim Caio Santos e para os veteranos Flavio Bauraqui e Letícia Soares – a peça focaliza o drama da vida de Ray Charles de forma inventiva e inusitada.

Para traçar um panorama da dor de existir que cercou a vida do artista, a trama, pontilhada por muitos dos seus grandes sucessos, mostrou um enfrentamento imaginário entre o pai e o filho no dia seguinte ao enterro do músico. O fantasma, um homem contraditório de várias facetas, e o filho, esfacelado, traduzidos em forma jogral por vários atores, desfilam memórias pungentes, para iluminar a fragilidade do que é humano; a criação cênica engenhosa deu vida a mais um musical biográfico, gênero que muitos, por aqui, combatem.
Estas são discretas amostras de uma vasta programação, preocupada em oferecer vivências teatrais antenadas com o palco mais inventivo de hoje. Uma conclusão se torna evidente diante dos fatos: o Festival de Curitiba se tornou uma instituição nacional, superou as fronteiras locais. Se, quando andamos a esmo pela cidade, percebemos que é raro encontrar alguém que não saiba o que é e que não valorize o festival, a meta agora é outra, é conseguir demonstrar o quanto o festival se tornou um festival-Brasil. Com engenho e arte, acima de gregos e troianos, é possível supor que os feitos de Curitiba se projetem agora, na maturidade, a favor de uma arte maior, o refinamento da sensibilidade do país.

FICHA TÉCNICA
De 24 de março a 6 de abril
ONDE: Curitiba
DIREÇÃO
Leandro Knopfholz
Fabíula Bona Passini
CURADORIA MOSTRA LUCIA CAMARGO
Daniele Sampaio
Giovana Soar
Patrick Pessoa
PRODUÇÃO
Direção de Produção:
Bina Zanette
Produção Executiva:
Siciane Geruntho
Anna Paula Vendramin
FRINGE
Rana Moscheta
Dadi Aguiar
Augusta Guedes
Majô Farias
MOSTRA SURDA
Coordenação geral e Curadoria
Jonatas Medeiros
RISORAMA
Curadoria:
Diogo Portugal
GURITIBA
Programação:
Fabíula Bona Passini
MISHMASH
Curadoria:
Rafael Barreiros
Muga Riesemberg
Pedro de Freitas
GASTRONOMIX
Curadoria:
Celso Freire
Gabriela Nickel Freire
IMPRENSA E NOTÍCIAS
Coordenação:
Maximilian Santos
Nacional:
Pedro Neves
LOGÍSTICA
Coordenação:
Duda Slud
REALIZAÇÃO
Parnaxx
Sinapse
Portugal
Ápice