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AMIZADE: O ANIVERSARIO DA ARTE

Feliz aniversário – desejamos, abraço apertado, coração pleno, ano após ano, às pessoas queridas. Saudamos o tempo que as mantém ali, bem pertinho, coladas na alma da gente, puro aconchego. Comemorar é fundamental. Mas, e agora? Estamos longe. Um deserto social nos separa. Vamos aceitar,  deixar ficar assim?

Ah, não aceitaremos este pequeno obstáculo do tempo miúdo, que passa, imposto ao grande tempo, das vidas queridas. Precisamos criar novas fórmulas para manter a fibra. Encontrar os caminhos possíveis para celebrar o grande prazer de viver, a arte do encontro, a delicadeza de criar.

Hoje é o aniversário do meu maior amigo. O seu nome? Marcelo Del Cima. Não, não devo dizer esta palavra, amigo, ela não cabe no que acontece entre nós. Somos muito mais do que isto, somos irmãos de alma. De alma? Ou irmãos de éter? Éter, aquela substância inefável que, para os antigos, era a matéria prima dos céus.

Preciso procurar palavras, inventar algum nome novo, nem sei a qual dicionário mágico devo recorrer, para definir esta aliança. Em busca de inspiração, descrevo. Há entre nós um tipo de amizade soldada com firmeza pelos atributos do espírito. Sim, há uma espécie de substância metafísica, mas uma metafísica transviada, pois ela tem uma acontecência terrestre.

A acontecência terrestre desta substância é a cultura. A arte e a cultura. Somos definitivamente seres errantes submersos em letras, imagens, sons, belos efeitos, imagens líricas, arroubos contemplativos. A bem da verdade, o mundo só nos importa porque ele funciona razoavelmente como suporte para a arte. Quando o mundo hesita, vacila, não titubeamos, chutamos o mundo para o escanteio, num futebol muito nosso, bem original.

Ora, por quem sois, para quê serve um mundo sem cultura e arte? Qual a utilidade real da Terra, se não existir uma conexão profunda com o inefável? Quando as pessoas irão perceber, finalmente, que o mundo não serve para nada, não  tem qualquer sentido, é coisa oca inútil, descartável, apenas uma predatória ave de arribação da existência? O que importa está além desta materialidade banal. O mundo é só um pretexto para a vida de cultura.

Assim, tentando definir quem é e o que é este meu amigo tão original, na minha vida, enveredo por letras e mais letras. Descubro algo sensacional – para o seu aniversário, farei isto, uma festa de letras. Letras em polvorosa, em turbilhão, torrenciais, letras esvoaçantes, delirantes, atiçadas pelo dever de tentar expor uma definição deste elo que nos une.

E o que acontece? As palavras não se revelam traiçoeiras, não fogem, não se negam a cumprir o difícil papel que lhes imponho. Ao contrário, até. Elas se agigantam, inquietas, ansiosas para aparecer. Brotam coloridas, como se fossem justamente balões de festa cheios de gás.

A explosão feérica de letras não para, como se fosse uma noite de queima de fogos no réveillon de Copacabana. Copacabana, o bairro de eleição do meu amigo. Aquele ferverinho praieiro e a placidez do meu amigo, bela combinação para tentar chegar a algumas definições.

De repente, a partir da ideia de Copacabana, descubro um mundo novo de cores, jogos, combinações impensadas. Uma leve vertigem me transporta no tempo. Memórias. E retorno a um tempo que já faz tempo, uma noite no teatro, a querida amiga Maria Fernanda afinal disposta a me apresentar ao rapaz de quem falava tanto e tão bem, de quem dizia que eu iria gostar profundamente.

Marcelo Del Cima – a imagem vem emoldurada por letras douradas faiscantes, muito adequadas para realçar a elegância, o porte, o aspecto altaneiro do rapaz. Encantado, encantador, que príncipe este amigo de Maria Fernanda, vem as letras enrodilhando recordações.

O teatrinho era pequeno – não basta o diminutivo para descrevê-lo. A expectativa a respeito da cena era ainda menor do que o espaço. Sentamos um ao lado do outro e a cena, muito próxima, ameaçava roçar nosso cílios. O tom nervoso de tudo na pequena casa certamente fez com que o requintado cavalheiro cometesse um deslize inacreditável: ele esqueceu de desligar o celular.

A cena corria dura, ressecada como pão esquecido no fundo de uma gaveta. Nós nos entreolhávamos assim de soslaio – e havia algum sotaque português no palco – com uma quase incontrolável vontade de rir, quando, de repente, o celular soou, se rebelou. O constrangimento só não foi maior porque, afinal, era quase como se o celular tivesse decidido vaiar o que não via de arte requintada por ali. O riso subiu infantil e traiçoeiro, a muito custo foi sufocado. A peça era séria.

E foi. Deixamos de nos olhar, pois entendemos que falávamos o mesmo idioma e iríamos estourar de rir, como crianças travessas, se olhássemos um para o outro. Sabe aquele riso besta, bobo mesmo, inexplicável, que faz a alma dizer ao mundo “perdeu, carcaça velha!”? Este mesmo.

Mas o mundo não colabora – de repente, bem diante do ponto em que estávamos, uma inacreditável e arbitrária sequência de nu frontal masculino irrompeu em cena. Foi demais – praticamente, viramos beterrabas, de tão roxos, na luta para conter o gargalheiro, que teimava em subir por toda a alma e não podia explodir ali de jeito nenhum.

Na saída do teatro, conversamos um pouco mais, rimos afinal libertos, e selamos uma amizade assim, assim, avesso com avesso. O encontro seguinte coroou esta descoberta interior profunda, deu corpo e identidade ao fluxo de imaterialidade que descobríamos ser a nossa matéria prima comum. Fui conhecer a Coleção Marcelo Del Cima.

Quer dizer – fui saber dos tesouros reunidos por alguém capaz de ir muito mais longe do que eu. Possuímos a mesma síndrome neurótica, a do colecionador. Desde a infância faço – ou tento fazer – coleções de conchas, pedras, folhas, postais, moedas… Mas sou uma candidata vadia a colecionadora, dispersiva, apta a perder uma coleção em prol da próxima ou sei lá por que causa qualquer.

O meu amigo Marcelo, não – a palavra mais adequada aqui é metódico. Ele tem uma devoção sólida às suas coleções, uma devoção que me deixa fascinada, pois jamais consegui ou conseguirei chegar neste grau de entrega à paixão interior. O centro de sua paixão me encanta desde a adolescência – são relíquias cênicas, registros e preciosidades do teatro, da ópera, da música e do ballet e até do cinema. Algo que eu entrevia, bem jovem, com adoração, no velho Museu do Teatro, instalado então no Salão Assyrius do Theatro Municipal. O museu era estonteante – sumiu, após uma estada conturbada em Botafogo, foi extinto.

Fascinação: diante de mim surgiam fotos, programas de sala, desenhos, manuscritos, objetos de cena, relíquias decorativas de espaços teatrais de outrora, adereços, preciosidades sem fim. Um museu vivo, alimentado por uma apaixonada atenção. Fotografias tratadas, recuperadas. Peças alusivas a fatos teatrais produzidas especialmente, por encomenda, por sublimes artistas-artesãos…

Se uma ciranda de sentimentos irmãos me aprisionara logo no momento em que conheci Marcelo Del Cima graças a um teatro-desastre, o ato de conhecer a sua coleção de memorabilia cênica me transportou para o seu mundo particular de entrega ao ato de registrar, com objetos, formas, cores, o fato do teatro-arte no fluxo do tempo. Encontrei na Coleção Marcelo Del Cima o teatro-relíquia, uma forma exemplar de culto à arte da cena.

No percurso da vida, graças a uma busca intensa, descobri que sou historiadora do teatro, esta é a minha escolha existencial maior. Ali, surpresa, eu me vi diante de alguém dedicado aos vestígios da cena que servem como suportes privilegiados para o meu pensamento.

Desde então – e lá se vai o senhor tempo bem redondo, com um acervo surpreendente de velas de aniversário – nos mantemos em profunda sintonia, trabalhamos juntos. Ah, não sei se o verbo é trabalhar – nós mergulhamos nas experiências destes objetos que podem nos contar o que foi a cena que passou. Tentamos pensá-los. Vivê-los.

Não é tão simples, a coisa vai muito mais longe. Marcelo Del Cima tem mania de fotografia e um gosto requintado pela confraternização com as pessoas. No apartamento em que reúne a sua coleção, ele criou uma rotina de organizar encontros, chás, lanches, comemorações… Quer dizer, especialmente festas de aniversário pródigas em abraços e encontros de alma. Ele recebe com a mesma grandeza humana que devota à sua coleção. E isto não basta.

Com a sua calma britânica, como se fosse um sir ou um lorde impassível diante da voracidade tropical, com certeza um príncipe, ele prepara uma casa da mais pura arte na Praça Paris, para abrigar o tesouro que reuniu, instalar um precioso centro cultural. Será um presente régio para o Rio de Janeiro, como se fosse uma daquelas surpresas maravilhosas que todos amavam receber nas antigas festas de aniversário, por enquanto distantes.

As memórias de tantas festas passadas no apartamento elegante de Copacabana estarão lá, irão para a nova casa – festas agora imaginárias, povoadas por Maria Della Costa, Eva Todor, Odete Lara, Kalma Murtinho, Aracy Cardoso, Maria Fernanda, Dayse Lucidi, Theresa Amayo, Eva Wilma, Nathalia Timberg, Lucélia Santos, Rosana Ghesa, Iris Bruzzi, Carmen Verônica, Norma Blum, Alcione Mazzeo, Fernanda Montenegro, Françoise Forton, Beatriz Lyra, Susana Faini, Priscila Camargo, Vera Vianna, Tatiana Leskova, Edwin Luisi, Nilson Penna, José Dias… e tantos e tantos artistas reunidos em torno do encanto do palco e da volúpia da amizade.

Sim, sim elas voltarão a acontecer, como a festa acontece aqui e agora, nesta página, nesta forma delirante propiciada pelas letras no papel. Bolos, velas, doces: então cantamos parabéns para você. E a festa, tantas vezes realizada em homenagem a tantos artistas e amantes das artes, acaba por se tornar uma forma vívida, mesmo que apenas em palavras, escultura da imaginação.

Assim, a festa se transforma em arte da festa. E se confunde com a própria amizade. Ela desponta como simples verbo, evoca um universo de memória palpitante, dispara sentimentos puros de encontro e se revela  uma manifestação de amor requintado à vida. Nas festas, afinal, comemoramos a graça suprema de viver. Arte, amizade são também formas para comemorar a vida.

Portanto, apesar da distância, as palavras surgem vigorosas, para dizer que somos amigos, vivemos a beleza de sermos amigos, enfim o nome é este. E elas transbordam sem freio, encantadas e rebeldes. Em festa. Vencem o tempo imediato ao redor, livres como a nossa primeira vontade louca de rir diante da pequenez patética do mundo. Surgem para dizer simplesmente, com o arrebatamento dos devotos fiéis das artes:  – feliz aniversário, querido amigo Marcelo Del Cima! Muitos anos de vida!

Da sua amiga em arte, para sempre,

Tania Brandão

SERVIÇO:

A festa continua – visite a página da Coleção e se surpreenda com tanta beleza: