A inutilidade dos atores, a eternidade do sensível

Os atores não servem para nada. São poeiras de arte descartáveis, miudezas que se perdem no tempo, desaparecem. Existem, pulsam, criam, arrebatam, sacodem os humores e puff!, para nada. O seu destino é ser esquecido. Logo, são inúteis.

 

Não, não acenem com a ilusão de que o cinema, a foto ou a televisão mudaram este jogo, pois mesmo quando impressos em imagens etéreas em movimento, o fim de todos será, de verdade, desparecer. O ator filmado está ali, mas fica ultrapassado – espere passar um tempo para olhar outra vez e verá – o danado sumiu. Quem é esta criatura? A resposta: ninguém. O ator filmado é tão volátil como o álcool canforado.

 

Injeção de álcool canforado foi um remédio – nem sei se é correto chamar de remédio – famoso no século XX. Não é do meu tempo e gastei horas de trabalho para descobrir do que se tratava. Ao que parece, existiam aplicações de álcool canforado, como injeção, para levantar o ânimo caído de uma pessoa. Algo semelhante à Coca-Cola com café, na minha geração, tão intragável que a criatura não dormia.

 

Vi uma citação do produto numa declaração pessimista de Procópio Ferreira (1898-1979). O grande ator dizia que o teatro, lá pelos idos de 1940, estava morto. Tão morto que mesmo injeções de álcool canforado seriam insuficientes para reanimá-lo. Parece que a nota ferina era para acertar Sergio Cardoso (1925-1972), a grande revelação do momento, que teria o hábito de se espetar para ter a energia incandescente, furiosa, despejada por ele no palco a cada noite.

 

Pois bem – mais de uma vez entrei em classe e diante das jovens memórias decididas a abraçar o palco eu perguntava sobre Procópio Ferreira, sobre Sergio Cardoso. O silêncio doía nas paredes. Eram nomes perdidos, devorados pelo tempo, devorados pelo tempo em que viveram. Só quando havia um ou outro desgarrado mais velho, já profissional, os nomes despertavam as centelhas cabíveis e um fluxo incandescente se espalhava no ar. Ah, grandes atores!

 

O fato sempre me incomodou. Penso a respeito faz tempo. Um dia, juntei a coragem necessária – em geral sou tímida – e fui até o Edifício São Paulo, na Avenida Atlântica, tirar uma dúvida. Perguntei ao porteiro plantado na portaria se ele sabia me dizer qual era o apartamento do Oscarito. A cara do senhor foi desencorajadora. Franziu a sobrancelha e perguntou o nome do homem. Ahnn? Qual era mesmo? Repeti. Logo fuzilou, bem impaciente com a minha ignorância:

 

– Não, não senhora, né esse nome não, é seu Oscar, marido da síndica. Morreu.

 

Insisti que não, não era o marido da síndica, não era um morador atual. Alguém do passado. E nada. Desdobrei com a afirmação de que era um artista famoso, muito engraçado, popular, fazia filmes. Aí, então, a cena embolou de verdade. O pobre homem me assegurou que não, não sabia de nada, no seu entender nunca o prédio abrigara alguém assim, famoso. Seria de outro prédio. Jogando a toalha, perguntei bem explicado se ele já tinha ouvido falar de Oscarito, se já tinha visto filme dele. E ele cortou:

 
– Filme velho eu não vejo não. Isto aí não é do meu tempo…

 

Fiquei desolada, confesso. Oscarito (1906-1970), um ilustre desconhecido. A partir daí fiz mais esforço para difundir a figura deste artista encantador, tão vital para o jeito de ser brasileiro. E fiquei acostumada a conviver com este vazio – ele me apareceu mais sufocante ainda no caso de Itália Fausta (1878?-1951).

 

A grande trágica brasileira hipnotizou a turma do sereno, no Campo de Santana, aqueles populares de sempre, impedidos de entrar para ver o seu Teatro da Natureza (1916). Lá fora, eles conseguiam ouvir o vozeirão da musa. Pois apesar de sua voz tonitruante, dos inacreditáveis feitos teatrais, de ter sido a primeira diretora do teatro brasileiro, ela desapareceu da mente nacional. Duvido – aposto o que quiserem – existir uma alma caridosa qualquer que, fora do teatro mais especializado, saiba dizer: sim, ela foi… isto, aquilo, etc e tal. Ninguém sabe quem foi Itália Fausta.

 

Pois esta semana chispou para as altas esferas celestes mais uma estrela brasileira absoluta: a deslumbrante Beatriz Segall (1926-2018). Defini-la é um nobre desafio, pois a sua arte era um extenso terreno de habilidades. Dona de uma máscara facial de extrema capacidade expressiva, senhora de um jogo de olhar de infinitos significados – de dar inveja ao mais encorpado dos dicionários –, ela andava mais distante do teatro, nos últimos tempos, do que o que eu poderia considerar justo.

 

Ver Beatriz Segall em cena era a certeza da bela palavra esculpida com as mais matizadas emoções, era a visão de uma construção de personagem minuciosa, requintada, generosa. Ela dominava o humor mais sutil, sabia lidar com finas lâminas de ironia. O seu trabalho se fazia com uma magia encantadora, em que as ideias, o espírito, moldavam a materialidade. Por isto, sempre, a sensação tão agradável de elevação, sofisticação e requinte que ela transmitia – de uma maneira doce, despojada, ela impunha uma forma de existir capaz de suplantar a trivialidade, o ordinário cotidiano. Exalava ideias, condição que resulta, necessariamente, em elegância de ser.

 

Daí a insinuação equivocada de que era uma atriz mais eficiente para representar mulheres ricas, de alta função. Ou mulheres poderosas e más – Odete Roitman. Bobagem: Beatriz Segall era, como o seu nome diz, duas vezes atriz – atriz de carne e atriz de espírito. Nesta densidade, o seu grande mérito era a capacidade de representar com carnalidade racional, o requinte maior do humano.

 

Porém, ela nos deixou. Vai desaparecer no tempo, desintegrar-se, apesar dos diamantes de emoção que nos ofereceu. Ao que tudo indica, em uma ou duas gerações ninguém mais saberá dizer algo a seu respeito. Ou não – se conseguirmos entender de verdade, afinal, o que é ser ator. E levarmos esta noção para virar certeza nas ruas.

 

Ator: o ser que age, o epicentro do fato teatral, uma forma social prioritária, essencial, importante para conduzir o rumo do mundo. Sem ele, o mundo descarrilha, desengonçado, sem razão de ser. Exagero? Querem provas? A principal prova é da ordem da necessidade racional – constatada por Aristóteles para defender a imperiosa necessidade humana de teatro. O ser humano constrói o seu saber e o saber a respeito do mundo por imitação. O ato de ver uma ação conduz ao aprendizado, a racionalidade assim o exige. Basta uma sociedade se formar, logo aparece o ator: necessidade social por sermos racionais

 

Portanto, aprendemos com os atores. Eles exercem um magistério precioso, se aperfeiçoam na arte de ensinar a sensibilidade da vida, os caminhos sensíveis do viver. Diante de nossos olhos, promovem redemoinhos vertiginosos de percepções. Eles nos ensinam a quintessência da humanidade. Sempre: na comédia mais ordinária, no trágico mais requintado. Na ordem da razão ocidental, todo o mundo precisa de um teatro para chamar de seu, adequado ao seu magma existencial.

 

Todo o mundo precisa de um ator para chamar de seu: e o encanto da contemplação corre sem regras, mesmo que o acadêmico mais embolorado tente bradar que aquilo ali é reles, é sórdido, é primário, deve ser banido da República dos Doutos. A sociedade tem a sensibilidade do seu ser e do seu tempo, da sua realidade – se relegamos o povo ao tiroteio, a sua música será feita de estampidos e o seu ator vai ser feito do medo de voar.

 

Portanto, já se vê para que serve o ator, este traste que incomoda o poder, desestabiliza construções cimentadas ou apenas – e que bom que o faça – treina os ombros das almas comuns para seguir sobrevivendo, sob um imenso peso, o peso das sociedades arbitrárias. Não despreze o bobo da corte, não humilhe o ator de esquina, não ironize o palhaço de salão, não desqualifique o ator medíocre incapaz de se tornar o astro absoluto do seu tempo. A sociedade necessita deles e os quer. Todos, no fim, com os seus baús de palmas, apupos, coroas de louros, assobios, vaias, diamantes, pedras falsas, irão para o mesmo lugar. Cronos vai mergulhar tudo nas águas do Lete. Serão esquecidos, eles existem para isso, para a gente esquecer.

 

Importante: veja a expressão bobo da corte. Se a definição do ator pode ser construída a partir daquele que o vê, daquele a quem a sua arte se destina, a partir do povinho que consegue enfeitiçar, então, alerta, o ator não está só. Não existe nenhum registro eficiente da arte do ator, nem foto, nem filme, nem TV, fora do olhar dos contemporâneos. Sim, nós que olhamos os nossos atores somos os documentos hábeis para falar deles – e é em nós que eles devem ser lidos. Somos os únicos documentos da arte dos nossos atores, os atores do nosso tempo estão em nós.

 

Os atores dialogam com as nossas almas, com a nossa sensibilidade. São professores das almas, não da razão, nem dos corpos. No burburinho da vida palpitante que nos cerca, cheia de solicitações, um pequeno recorte é traçado, uma fresta delicada de luz se faz, ali onde age o ator. O seu trabalho inefável é um pequeno bordado em cada alma, com a linha tênue da emoção, no jogo flutuante do sensível. Escultor etéreo de sensibilidades logo catalisadas pelo mundo concreto, o ator permanece na sombra enigmática de seus gestos, modesto, enfim, pois a sua obra verdadeira não se vê por aí, batendo pernas pelas ruas. Ela só pode ser vista com os olhos do espírito – infelizmente, a maior parte do tempo ninguém está preocupada com ele.

 

E assim o ator vai. Segue um caminho que se perde nas sombras. Não deixou qualquer matéria bruta objetiva com a sua assinatura, não deixou letras, não deixou tonalidades agradáveis nas vozes ou nas memórias, bens transmissíveis de geração em geração. A sua herança não vai a leilão.

 

Quem sabe se possa cometer uma bela heresia, a favor destes ousados pecadores que simulam, na sua arte, criar o mundo, mas criam um mundo inexistente? Quem sabe possamos dizer sim, os atores servem para alguma coisa, eles inventam, criam, fazem algo muito objetivo que podemos medir e ver – eles criam seres, pessoas, gente. Eles criam humanidade. E esta criação fluida, delicada, difícil de ser mensurada, tomara, ninguém poderá nos tirar nunca, estará sempre entre nós, dentro de nós. Vale dizer: obrigada, Beatriz Segall, por tudo de você que você deixou bem vivo por aqui, este sublime indizível, em mim, em nós.

 

Serviço


Pense em você, no melhor de você: vá ao teatro.