O teatro, os livros e a revolução
“A arte do ator tem segredos infindáveis. Há uma magia e, ao mesmo tempo, uma racionalidade densa, ao redor de uma prática tão antiga quanto, provavelmente, a vida em sociedade dos primeiros bandos. Para deixarmos de ser selvagens, o teatro foi decisivo, não tenho dúvida. E diante das selvagerias de agora? Há algum poder do teatro? O que se pode fazer na cena para mudar os indivíduos?
Para quem lê um livro surpreendente como Sapiens, de Yuval Noah Harari, uma história da raça humana que esmiúça as condições de possibilidade para que chegássemos a nos tornar este sucesso atual, a possibilidade de pensar a importância do teatro para a vida parece ser etapa imediata. Ainda não terminei de ler o livro e, portanto, não fechei o raciocínio a respeito. Mas convido todos os que gostam do tema a embarcar na aventura e, quem sabe, daqui a um tempinho (o livro é grosso e denso) trocarmos figurinhas a respeito.
Em paralelo, devo observar que eu gosto de pensar na utilidade profunda do teatro para o ser humano, para a mente humana. Acredito que Aristóteles rodopiou ao redor deste debate – neste caso, um outro historiador, Eli Rozik, também já trabalha o tema, mas eu ainda não li o livro dele. Um primeiro paralelo bem humorado é fácil – segundo Harari, a fofoca, quem diria, foi um instrumento decisivo para a afirmação do Homo Sapiens. Como, de certa forma, o teatro pode ser definido como uma fofoca coletiva, está aí parte do enfoque, capaz de atribuir ao teatro um status mais do que nobre na progressão humana.
A bem da verdade, vale reconhecer, desde sempre, a pegada dos filósofos no debate – a imitação, a reapresentação ou a apresentação são formas de pensar o existente. Portanto, eis o dilema: teatro é fofoca ou é pensamento? É falar da vida do outro ou pensar o outro? A partir destas redes de informação ou destes jogos de alienação/identificação, a força sapiens se faria. Conclusões provisórias, claro.
Enquanto as hipóteses e certezas resultantes desta aventura intelectual não aterrissam no papel, além das dicas acima, fica uma outra proposta, olhar a prática do ator brasileiro aqui e agora. Esta semana, bem no meio da semana, a bela quarta-feira, teremos um evento notável para a agenda do teatro brasileiro – o lançamento de dois livros no Teatro Poeirinha, com direito a demonstrações cênicas.
Seja o teatro fofoca ou pensamento, os livros são ferramentas estratégicas para a ampliação da vida do teatro enquanto prática inteligente. Pois bem, não dá para perder esta chance – o consistente ator Ney Piacentini lança no Rio dois livros obrigatórios para a estante teatral, em especial para os atores e para os amantes de sua arte. De quebra, a noite letrada trará a graça de ter um flerte secreto com a vida teatral paulista, endereço fixo do ator.
Mas vamos às obras. O quê, afinal, elas trazem de tão importante? No primeiro caso, trata-se de uma reedição da obra Eugênio Kusnet – do ator ao professor. O fato não reduz a importância do livro, pois o foco recai sobre um dos maiores artífices da história do nosso palco. Uma espécie de mestre, mentor, iluminador de almas, uma modalidade de guru, um tipo de entidade muito paulista, rara nas cenas e nos camarins cariocas. Neste caso, ele é o cara, dá para dizer. Portanto, mil edições serão sempre bem vindas.
O nome dele? Eugênio Kusnet (1898-1975). Natural da Ucrânia, ele se tornou brasileiro e se dedicou a construir uma obra de extrema grandeza, devotada ao estímulo ao teatro de arte. Sua generosidade e suas ocupações múltiplas, geradas por uma energia considerável, fizeram com que ele se tornasse autor de uma obra grandiosa: ele formou algumas gerações.
Além de ator, responsável por uma obra cênica relevante, infelizmente perecível para muita gente, como acontece com o trabalho dos atores, ele foi professor, diretor, estudioso, pesquisador. O seu livro Ator e Método, reelaboração de duas obras anteriores, tornou-se o manual obrigatório dos cursos de formação em teatro, por ser uma exposição eficiente do Método Stanislavski. Portanto, de certa forma, ele está em nós, graças a tantos que incorporaram os seus saberes.
Pois esta trajetória – ou mesmo a avaliação lúcida destra trajetória – é o cerne do livro de Ney Piacentini. Além dos dados biográficos, importa mesmo, no texto, a trajetória poética, a definição da identidade artística de Kusnet, cotejada inclusive com o perfil de um outro celebrado diretor do início da aventura moderna, Ziembinski,
Algumas perguntas interessantes norteiam o texto. Há, por exemplo, a pesquisa a respeito do papel de formador exercido pelo russo. O seu diferencial, diante de Ziembinski e dos italianos, é um ponto importante. Kusnet – muito mais do que Zimba – tinha o sentido profundo da alma interior, sombria, distante da passarela tropical. Além disso, o seu engajamento social era efetivo.
Portanto, as perguntas mais impactantes partem daí. Como e graças a quem o teatro brasileiro se tornou moderno sendo brasileiro e crítico? Como o Método chegou por aqui numa roupagem russa mais autêntica? Como foi possível promover uma virada de alma no ator brasileiro, da pulsação histriônica inquieta, buliçosa, para a calma de vastos continentes interiores? A resposta é só uma – leia o livro.
A outra obra incide mais diretamente na trajetória de Piacentini, historia os seus trabalhos na Companhia do Latão, apresenta a dinâmica da equipe. O título dimensiona uma interessante atitude existencial de pesquisa: O ator dialético – 20 anos de aprendizado na Companhia do Latão. Isto significa a abordagem do processo, mas visto segundo a visão singular, individual, de uma prática que é coletiva. O grupo, liderado por Sergio Carvalho, é um conjunto dedicado ao teatro político, engajado, impregnado pelos estudos do teatro brechtiano. Por isto é, diretamente, teatro dialético.
As duas obras apontam para o mesmo de debate, o lugar do teatro na tradição ocidental, o alcance histórico e intelectual da arte do palco. Quer dizer – existem apenas algumas formas teatrais capazes de desempenhar um papel estratégico, decisivo, no processo de definição da humanidade? Formas triviais, de encontros epidérmicos, emanações mais físicas do que ideais, estariam condenadas à rua da amargura, levariam a humanidade para a perdição da razão? Qual a dimensão transcendental da comédia?
O tom parece adequado aqui e agora para um tempo em que somos assombrados por nossa incapacidade cívica. Estudar, pensar, criar artefatos densos da razão parecem ser iniciativas urgentes, ao menos no caso daqueles que ainda têm, neste país, a paixão pelo exercício livre do pensamento. Afinal, se temos uma terra de extrema riqueza, se desejamos usufruir de tudo isto, é de se desejar que contemos com os quadros mentais, intelectuais e sensíveis adequados – aliás, necessários e essenciais – para tal projeto civilizado, de exploração das potências e riquezas locais. Ou seremos destinados a coaxar num estranho pântano, o pântano pestilento da nossa incompetência, fruto de nossa deliberada miséria intelectual. Falamos de teatro com o filme do crime hediondo de Brumadinho passando ao nosso redor. Sim, o teatro, ferramenta de civilização, máquina inefável de transformação humana, pode mudar isto, criar seres dotados de ética e de espinha dorsal para que isto não aconteça de novo e de novo e de novo. Importa começar logo, ontem.
Lançamento dos livros de Ney Piacentini
“Eugênio Kusnet – do ator ao professor”
196 páginas – R$ 45
Hucitec Editora
“O ator dialético: 20 anos de aprendizado na Companhia do Latão”
346 páginas – R$ 60
Hucitec Editora
Local: Teatro Poeirinha – Rua São João Batista, 104 – Botafogo – RJ
Horário: das 19h às 22h
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