Eva Todor e a libertação feminina no Brasil
Morreu Eva Todor. A alma carioca está de luto. Uma piscadela sem jeito do céu levou a estrela hoje, aos 98 anos, às 8:50. A atriz Eva Todor Nolding, assistida por seu médico particular há décadas, Dr. Alfredo Martins Sebastião, faleceu em casa. A causa indicada para o óbito foi pneumonia, após um longo período acamada, iniciado no dia 24 de janeiro.
Ela se foi e não nos deixa órfãos. Ela nos deixa com uma imensa saudade, uma saudade de nós, pois Eva Todor conseguiu um feito raro entre os atores brasileiros, ela se tornou um pedaço importante da forma de ser do país. Criadora de um perfil artístico peculiar, Eva foi uma força decisiva para o aparecimento da mulher brasileira moderna.
Sim, exatamente isto, é impossível entender hoje a identidade feminina brasileira sem estudar o perfil de Eva Todor. A estrela que agora se vai, uma das mais notáveis atrizes da cena brasileira no século XX, conseguiu ser muito mais do que uma grande atriz, ou um modelo de atuação ou uma mestra da comédia ou uma celebridade.
Eva Todor é fonte, referência e autoridade para o nosso jeito feminino. Por isto, para reverenciá-la, é preciso fazer mais do que louvar a sua obra, no teatro, no cinema e na televisão: é preciso reconhecer a sua importância para a luta feminina cotidiana. A tarefa, fundamental para a História e para a nossa realidade hoje, impõe o estudo de sua arte sob um prisma diferenciado.
Nascida em Budapeste, na Hungria, em 1919, ela começou a estudar balé aos quatro anos na Ópera Real da Hungria. A disciplina da dança europeia cedo absorvida lhe garantiu um extremo domínio da expressão corporal e do uso do corpo em cena. Filha única cercada de atenções numa família sintonizada com a forte tradição húngara de humor, cedo ela começou a associar o jogo do corpo em cena com efeitos de irreverência e de vivacidade. Criou, em idade precoce, uma forma de expressão física de encanto, sedução e alegria.
As dificuldades econômicas europeias do entre-guerras fizeram com que a família migrasse para o Brasil. Com os pais, em São Paulo, em contato com a colônia húngara e a comunidade judaica, manteve a sua dedicação à arte nas escolas em que estudou. Apesar das oportunidades amadoras, a família decidiu mudar para o Rio de Janeiro, para que ela prosseguisse os estudos de dança com Maria Olenewa e pudesse se arriscar na carreira profissional.
Foi iniciada, logo a seguir, uma trajetória de grandes sucessos. Apesar da primeira reprovação em teste de seleção para o teatro, sancionada por Dulcina de Morais, que vetou-a para o papel de um menino por causa do seu forte sotaque, ela ingressou, por recomendação do crítico Mario Nunes, no teatro de revista da Praça Tiradentes.
No seu primeiro desempenho, Eva Todor imprimiu uma marca interpretativa e performática rapidamente transformada em diferencial, legítima identidade autoral, eficiente passaporte para o estrelato. A revista de estreia, de 1934, foi Há uma forte corrente, de Freire Júnior e Iglézias. O empresário do Teatro Recreio, templo supremo do teatro de revista, era Manoel Pinto, pai de Walter Pinto, seu sucessor.
Neste primeiro desempenho, numa explosão de faceirice muito elogiada, a jovem percorria a cena vestida de Folia. Representava justamente o espírito alegre e brincalhão da cidade do Rio de Janeiro e, para tanto, usava com intensidade a habilidade para dançar e de se expressar com o corpo. Outros sucessos históricos na revista, a seguir, foram, entre outros, Foi seu Cabral, Flores à Cunha, Cidade Maravilhosa, É Batata!, Mamãe Eu Quero, Rumo ao Catete Yes, Nós temos Banana, ao longo dos anos 1930.
Além da construção de uma expressão criativa física, a revista viabilizou também o domínio de um outro recurso teatral aperfeiçoado por toda a vida: a capacidade de falar com os olhos, traduzir uma enxurrada de sentimentos com o rosto e com os olhares, um artifício irresistível para apagar as marcas do sotaque presentes na fala, que poderiam desqualificar a sua expressão como estrangeira. Quer dizer, a menina moleca criou um estratagema para driblar a restrição feita por Dulcina…
Assim, Eva Todor construiu um protagonismo feminino a partir do não dito, do insinuado, das formas de ser femininas, coloridas com forte plasticidade, muito humor, irreverência, inteligência e vontade de afirmação. Tornou-se a imagem da brejeirice, o modelo da garota faceira e espirituosa.
O volume de trabalho se tornou absurdo – o número de revistas encenadas era espantoso, a rotina teatral absorvia a pequena da manhã à noite. A dedicação era tanta que até mesmo as aulas necessárias para a sua escolaridade passaram a ser ministradas no teatro, por professores particulares. A engrenagem acelerada logo fez com que se tornasse estrela entre estrelas. No interior da revista, além da representação habitual, a jovem trouxe algo novo, quadros de balé combinados com efeitos acrobáticos, alguma dramaturgia e comicidade requintada.
Ao seu lado, pontificavam artistas e atores de absoluto sucesso, os melhores do seu tempo. Uma lista resumida deve apresentar nomes tais como Ary Barroso, Lamartine, João de Barro, Freire Júnior, Mario Lago, Custódio Mesquita, Moreira da Silva, De Chocolat, Francisco Alves, Dercy Gonçalves, Oscarito, Aracy Cortes, Alda Garrido, Itália Fausta, Afonso Stuart, Pedro Dias… O palco deste tempo possuía uma outra natureza, era dominado pela habilidade cômica e por uma vaga insinuação melodramática. A criação espetacular dos atores era a regra.
O encanto da jovem ultrapassou a cena e fez com que se casasse, aos quatorze anos, no desabrochar da carreira, com Luiz Iglézias, autor, diretor, produtor de teatro consagrado da Praça Tiradentes. Ele se tornou o seu mentor. E ela estava presente nos seus textos, com papéis pensados sob medida para o seu potencial.
A partir dos anos 1940, a linha de trabalho se transformou. Iglezias decidiu que era o momento exato para ela deixar a revista, gênero, a seu ver, em decadência, e enveredar pela comédia em suas múltiplas formas. Nasceu então a Companhia Eva e Seus Artistas, notável empresa sediada no Teatro Serrador, ato que marca uma mudança do eixo teatral da cidade, da Praça Tiradentes para a Cinelândia.
A estrela passou a contar com uma estrutura de apoio bastante eficiente e estável. Os seus pais, que se dedicaram ao ramo da moda, ofereciam consultoria para os figurinos e confeccionavam as roupas de cena da atriz. A loja criada por eles, Casa dos Modelos Únicos, em Copacabana, vestia Eva Todor e se tornou um lugar de moda conceituado entre as mulheres. Os principais autores em atividade escreveram ou adaptaram textos especialmente para o seu perfil: Paulo Magalhães, Viriato Correia, Abadie Faria Rosa, Joracy Camargo, Mario Lago, Menotti del Pichia, R. Magalhães Júnior…
Assim se afirmou a imagem de uma moça espevitada e ousada, mas elegante, hábil nas insinuações e antenada com os modernismos, especialista em transgressões bem-vindas, pois identificadas com o espírito dos novos tempos. Surgiu, enfim, com ela, um modelo e uma inspiração para a mulher que começava a desejar enfrentar os desafios da vida fora de casa. Nascia, na época, a carioca – a jovem livre que reinaria na cidade, impressionaria o país e se lançaria para o enfrentamento dos novos desafios do mundo.
Pois Eva Todor foi a mais importante matriz da mulher carioca moderna. Afinada com uma linha de papéis cômicos irreverentes, mas sintonizados com a ordem positiva da família, fazia sucesso como a ingênua moderna, bem pensante, cheia de ideias, a garota avançada – e exatamente por isto os autores do momento assinaram textos para ela: ela tinha o que dizer e era um sucesso dizendo o que tinha a dizer, algo novo e necessário.
Em consequência, uma modalidade teatral se impôs: o estilo Eva, sucesso de bilheteria, prazer supremo para as plateias femininas. O seu teatro oferecia Vesperais das Moças, Vesperais Elegantes e Vesperais Familiares. De certa forma, o que se via em cena era uma doce sugestão de libertação, a insinuação de uma forma pacífica para conquistar espaço e cortar os grilhões.
Esta linha de trabalho persistiu até a morte de Iglezias, em 1963. Após a perda do primeiro marido, Eva Todor encontrou um grande apoio no amigo e fã Paulo Nolding, engenheiro admirador do teatro. Ele se tornou o seu novo empresário e, em 1965, o seu segundo marido. Paulo Nolding foi responsável por uma nova reviravolta na sua carreira – a ruptura com a figura da ingênua, a favor de papéis de dramaturgia moderna, inventiva. Surgiram então desempenhos de outra densidade, de contorno imprevisível, capazes de revelar a imensa riqueza do talento da intérprete.
Marcos da nova fase podem ser situados em Senhora da Boca do Lixo, de Jorge Andrade, de 1966, A Celestina, de 1968, Olho na Amélia, de Feydeau, de 1969, e Em família, de Oduvaldo Vianna Filho, de 1970. A lista de cartazes se estendeu até 1989, com notável abertura de repertório.
Além disso, a atriz começou a sua vitoriosa carreira na televisão, longeva e riquíssima. Após o início, com a série Aventuras de Eva, apresentada no Brasil e em Portugal, Eva Todor começou o trabalho efetivo em novelas em 1970, na Tupi, na fracassada produção E Nós, Aonde Vamos?, de Gloria Magadan. Em 1977, a atriz passou a fazer novelas na TV Globo. Na primeira atuação, um grande sucesso, ela foi aclamada como a ex-vedete Kiki Blanche (Locomotivas).
Nesta etapa da carreira, Eva Todor passou, de novo, para uma nova linha de atuação – dedicou-se a papéis de mulheres mais velhas, maduras, mães ou conselheiras, mas sempre dotadas de uma experiência de vida colorida de humor e de irreverência, a maneira Eva de ser. Seguiu o conselho de Paulo Nolding, de optar até mesmo por personagens de idade mais avançada do que a sua própria, pois seria mais lógico parecer nova para o papel do que o contrário, para que pudesse sustentar a verossimilhança e dar livre curso à empatia.
Foram destaques, entre tantos trabalhos de impacto, as novelas Sétimo Sentido (Satinha Rivoredo), de 1982, Top Model (Morgana Kundera), de 1989, O Cravo e a Rosa (Josefa Lacerda de Moura), de 2000, América ( Miss Jane), de 2005. Em todos os trabalhos, uma linha coerente: a emoção como um saber feminino delicado, rendilhado, moeda de troca fundamental para tratar com o público e, afinal, negociar sentimentos e papéis da vida. Um aprendizado sentimental.
No cinema, a obra de Eva Todor não foi vasta. Mas, ainda assim, Os Dois Ladrões, direção de Carlos Manga, de 1960, com Oscarito, é obra de referência para o estudo da arte do ator no Brasil. Participou ainda em mais quatro títulos – Pão, Amor e Totobola, de Henrique Campos, Achados e Perdidos, de Eduardo Albergaria, Xuxa Abracadabra, de Moacyr Góes, e Meu Nome Não é Johnny, de Mauro Lima.
Agora que ela se foi, diante do vazio, ficamos com uma herança preciosa. Em primeiro lugar, uma lição de arte exemplar: a sua compreensão profunda da artista atriz como um conjunto expressivo orgânico, articulado, denso, em que corpo, fala e espírito figuram em sintonia profunda. Nas suas obras, a capacidade do gesto exato e forte acontecia ao lado da palavra intencionada, sempre. Não existia um corpo insensível, nem uma palavra ociosa – o calor da vida crepitava o tempo todo.
D. Eva – e esta forma de tratamento talvez seja obrigatória para o reconhecimento de sua maestria – era uma artista minuciosa, rigorosa. A um ponto tal que aprendeu a se maquilar e gostava de se maquilar sozinha para desenhar o rosto como uma tela básica de intenções, de acordo com o trabalho em pauta.
Ao mesmo tempo, a roupa aparecia como um revestimento hábil para o corpo, devia ser o figurino preciso, tradução fiel do personagem, o que fazia com que considerasse importante contribuir para a definição dos figurinos. Para a vida social, vestia-se sempre com apuro e cálculo, concebia em detalhes a sua imagem pública, para apresentar ao interlocutor uma forma visual bem resolvida, antes de mais nada. Era sempre elegante, sublime e espirituosa.
Além e acima de tudo, ela nos deixou a sensibilidade de saber olhar, o requinte de atuar com os olhos em alerta, em jogo com o outro e consigo, com o seu próprio interior, uma forma surpreendente de fazer falar o próprio interior, falar do ato de estar no mundo, se impor ao mundo. No silêncio que revestiu a maior parte da história das mulheres, D. Eva sugeriu uma eloquência de outra ordem, a ordem do corpo expressivo forte, sentimental, e do corpo-olhar. Ela construiu um poder, propôs uma arma sutil de libertação, inspirou vidas.
Vidas que desejavam sair de terras desfavoráveis para a construção de territórios objetivos de poder. Assim, ela própria, estrangeira, emigrada, usou a arma expressiva que criou e, com ela, acabou por conquistar a palavra. A graça em estado puro se tornou o seu trunfo. E jamais se dava por vencida. Até no leito do hospital, recentemente, enfrentando os seus dias finais, acamada, ela demonstrava esta força irreverente impressionante. Quando lhe perguntaram se aceitava receber a visita de uma pessoa desagradável, que insistia em vê-la, a pequena Eva Todor fez aqueles olhos de fogo, incendiou o rosto e fuzilou com humor ferino: diga para olhar uma fotografia minha. A graça permanecia inalterada. Para nós, que aprendemos tanto com ela a respeito da possibilidade libertadora de enfrentar a dureza da vida com doçura, ficará para sempre a eterna saudade, sempre.
deixou um legado imenso de trabalhos e conhecimento um abraço a família
Que riquíssima e emocionada declaração de respeito, reverência, admiração… Amor, enfim!!! Gratidão de fã…
Texto emocionante!
Obrigada.