Jovem, irreverente e irresistível: palavras simples, mas diretas, adequadas para definir bem, na velocidade do nosso tempo, o impactante espetáculo Realismo. O texto corrosivo de Anthony Neilson, um original de aguda inteligência, exala ironia e irreverência a partir do título, qualidades exploradas com elegância por Tato Consorti, responsável por uma direção sutil, uma bela arqueologia do texto, artesanato de extrema competência. Há uma brincadeira teatral bem calculada o tempo inteiro na cena, situação sob foco também em função da escolha do galã, João Velho, um ator de extensa paleta expressiva, da imagem ingênua ao jovem rebelde.
A proposta é exatamente esta: definir o que é o ser humano, um ser humano, o protagonista, que atende, aliás, pelo nome do ator responsável pelo papel. E o realismo da peça é apresentar um recorte de um dia no imaginário e na intimidade do ator-personagem, apresentado sob o próprio nome do ator, opção mordaz que aponta para a essência da cena: uma sucessão de deslizamentos de significados. Assim, João Velho é o ator que se apresenta como personagem, que é herói da ação que não é ação nenhuma, posto que acontece em um sábado, dia de inação, e é apenas vida íntima, cotidiana e imaginária, de limites esfumados entre a imaginação e a concretude da vida do personagem. Muito da ação cênica se revela, aos poucos, como devaneio do herói, o que seria, para o senso comum, o avesso do realismo.
Confuso? Sim – em boa parte, este é o objetivo, para sugerir que o realismo é um ato subjetivo, um ato de percepção individual, em lugar de uma condição exterior objetiva e pré-dada. E o sujeito, assim, a pessoa, desponta como um estado de corrosão, uma ilha de solidão.
Dificilmente poderia ter sido encontrado um intérprete melhor para o projeto: um ar entre a inocência e a malícia, uma sugestão de anjo e de demônio, um impulso de contemplação e de pausa de ação são ingredientes naturais no perfil de ator de João Velho, bela figura de galã romântico bandido. O elenco complementar se reveza em vários papéis, à disposição para configurar situações entre o delírio e o real. Os atores respondem com eficiência, em um tom oscilante, marcado por alguma realidade e farto clima suspensivo e duvidoso, linha fundamental para que o tal realismo se torne pergunta obsessiva, insinuação de dúvida.
O cenário de Aurora dos Campos responde com fina percepção ao projeto da montagem: apresenta fiapos do real em espaços múltiplos, lugares-ilha convincentes, mas descosidos entre si como os lances espontâneos automáticos da percepção individual. Muito de seu efeito nasce da luz bem arquitetada, de Tomás Ribas. Os figurinos de Antônio Guedes complementam o jogo, com mudanças de época e de estilo adequadas, pois há uma variação de tempo entre as vivencias-imagem do protagonista. Para completar o jogo, vale destacar uma nota peculiar do projeto – a encenação foi idealizada por um coletivo que atende pelo nome singular de Imprecisa Companhia. Mais não se poderia desejar, para contemplar em cena atos contra a mesmice, gestos saudáveis de pura irreverência teatral.