Um mundo coroado por uma ciranda de néon flutua sobre um chão de vidro: a imagem forte é o primeiro impacto proporcionado pela excelente montagem de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, novo cartaz do Teatro Nelson Rodrigues – Caixa Cultural. É imperdível, nem pense em deixar de ver.
Com imenso sucesso, a encenação buscou trazer o texto para os tempos atuais e a força da cena é avassaladora para quem gosta de pensar o presente. Afinal, nós vivemos embriagados de néon sobre um implacável chão de vidro. A cena nos leva para um romance intenso com Shakespeare (1564-1616): é o teatro mais essencial em forma de paixão.
A tradução e a adaptação do texto, assinadas por Bruno Cavalcanti, se destacam pela fluidez dos diálogos e por uma sintonia fina muito elegante com a atualidade. A força original do bardo não se perdeu, a poesia se tornou mais arrebatadora. As palavras soam com a força própria da velha arte da cena, poção mágica ideal para ressuscitar as plateias contemporâneas, envenenadas por doses colossais de modernidade árida.

A concepção da diretora Daniela Stirbulov, rigorosamente apoiada no texto, além de sublinhar a conexão profunda da trama com os dias de hoje, deslocou corajosamente o protagonismo para a figura de Shylock, o vilão. E pôs em destaque a pergunta incômoda que serpenteia nas entrelinhas do original – quem é mesmo o vilão da peça? As escolhas da direção não foram opções vazias ou fúteis. O alcance dos caminhos eleitos tem uma potência altamente explosiva, consegue jogar o foco para os meandros mais escuros da alma ocidental, abalar certezas forjadas por séculos de opressão cega.
No palco, desfilam diante dos olhos da plateia múltiplas formas de tirania, de preconceito e de malabarismos do poder. O eixo central é o antissemitismo, atmosfera social que envolve o agiota Shylock, mas a brutal opressão feminina também se projeta. Uma alquimia sutil de comédia e de visão lúdica da vida reveste o denso alicerce trágico que estrutura a ação, destacando-se, sobretudo, na intervenção de alguns dos criados e personagens menores.
A cena é simples e contundente. O palco sugere uma mistura de bolsa de valores, discoteca rave e recanto burocrático de tribunal, entulhado de processos. Nele, a trama é apresentada de forma direta por um elenco muito afinado, dirigido com rigor. A paixão pelo teatro transborda especialmente na dedicação cênica dos atores.

Na poderosa cidade de Veneza, rainha dos mares, Shylock, um desempenho sublime de Dan Stulbach, um judeu rico desprezado, xingado e humilhado, é procurado pelo jovem Bassânio. Falido, ele deseja contrair um empréstimo vultuoso para pedir em casamento uma jovem rica, Porcia, do imaginário reino de Belmonte, solução para a sua pobreza. O seu rico amigo Antônio, o mercador de Veneza, poderoso navegador, seria o avalista da operação.
Num impulso de vingança por todas as humilhações sofridas, Shylock pede como garantia uma libra de carne do avalista. A condição surpreendente é aceita, pois, para os jovens, parece descabida diante da potência do mercador. No entanto, logo chegam notícias do naufrágio dos navios e o prazo combinado vence. Diante do reverso da situação, o contrato deve ser honrado e o desfecho da trama será a radical humilhação pública do agiota.
A peça, escrita entre 1596 e 1598, transpira um humanismo profundo, uma das marcas autorais de Shakespeare. Ben Jonson (1572-1637), amigo e rival do dramaturgo, declarou que ele não pertenceu a uma época, mas a todas as épocas – e teria sido, a seu ver, a alma da época em que viveram. Longe de serem contraditórias, as afirmações dimensionam a profundidade da criação shakespeareana, um mergulho no próprio tempo capaz ultrapassá-lo para conduzir à percepção do universal.
O mérito maior da encenação assinada por Daniela Stirbulov reside neste ponto: a habilidade para fazer justiça à grandeza do autor e do texto original. O feito aparece na inspirada cenografia de Carmem Guerra, materialização simbólica de índices sociais de poder na contemporaneidade. Também se insinua nos figurinos de Allan Ferc, signos claros da projeção social e da identidade de cada personagem. No mesmo registro criativo, o uso de vídeo e de imagens, de André Voulgaris, sublinha a transcendência resoluta do tempo pela cena.

Contudo, diante de um caso em que a sinuosidade profunda – e eterna – da justiça constitui a ordem maior dos fatos, importa jogar a luz, num paralelo com a delicadeza e a inteligência reveladas por Wagner Pinto e Gabriel Greghi na iluminação do palco, sobre o supremo valor que sustenta a montagem: Dan Stulbach. Sim, trata-se de fazer justiça a um ato de amor ao teatro de proporções gigantescas. Aqui, ir ao teatro é ter o privilégio de viver emoções profundas de verdade, diante de um ator sensacional.
Sutil, refinado, perspicaz e ousado, Dan Stulbach materializa o judeu como uma escultura humana, viva, palpitante. Não há, porém, qualquer mecanicidade, mas, antes, a turbulência perene da vida, presente em cada meneio do corpo, em cada volteio das mãos. A modulação da voz, com um sotaque elegante entre o hebraico e o ídiche, expressa sempre a inteligência existencial de um povo condenado a um permanente êxodo, desde que foram eleitos como bode expiatório pela comunidade cristã.
O Shylock de Dan Stulbach irradia a extrema atenção à vida exigida por uma sociedade persecutória, implacável, que tanto impedia os judeus de possuírem terras como aproveitava todas as oportunidades para amaldiçoá-los, por acumularem moedas, afinal os únicos bens que podiam ter, ou mesmo expulsá-los ou queimá-los nas fogueiras. E, sempre, expropriá-los. Toda esta opressão mais do que secular irradia da representação do ator, responsável por um trabalho de dimensão histórica único, inquestionável.

O tom impresso à cena por Dan Stulbach reverbera no trabalho da equipe. Cesar Baccan (Antônio) e Marcelo Ullmann (Bassânio) desenham o casal de amigos com eficiência, mas um grau mais apagado do que a proposta do texto, contribuindo para sublinhar o protagonismo do judeu.

Pórcia, a jovem herdeira inteligente que deve se casar às cegas a partir de uma imposição do pai morto, encontra em Gabriela Westphal uma intérprete intensa, hábil para denunciar a opressão feminina. A estouvada Jéssica, decidida a fugir do pai judeu e a apagar toda a própria vida, encontra um desenho nítido em Marisol Marcondes.
O elenco numeroso, situação de exceção no teatro brasileiro atual, fora dos musicais, apresenta desempenhos sempre no mínimo corretos. Do conjunto harmônico, duas notas merecem destaque. A primeira é a mirabolante intervenção cômica assinada por Thiago Sak, no sacolejante Príncipe de Aragão. A segunda é a impressionante figura majestática de Augusto Pompeo, representando o Duque, autoridade maior de Veneza, um símbolo vivo do poder que, na verdade, se impõe como radical ato de injustiça.

Alguns detalhes históricos importantes, para quem vê a peça, podem contribuir para o reconhecimento do valor do texto e da montagem. Ao que tudo indica, Shakespeare nunca conheceu ou conviveu com judeus de verdade. Eles foram expulsos da Inglaterra em 1290 e a sua entrada no país só voltou a ser permitida no governo de Oliver Cromwell (1649 a 1659).
Durante a época elizabetana, existiram judeus convertidos, os marranos, passíveis de condenação à morte se professassem a sua religião. Assim, a provável inspiração de Shakespeare pode ter sido um texto de Marlowe (1564-1593), O Judeu de Malta, profundamente antissemita; ele deve ser visto, portanto, como mais um belo indício da força poética do bardo, capaz de descortinar valores humanos mesmo ali onde predomina uma paisagem rasa.
Se o próprio Shakespeare definiu o mundo como um palco e todos os humanos, homens e mulheres, como atores, como avaliar, no teatro, a espessura do jogo? Qual o seu sentido para a vida? Nesta peça, sem dúvida a paixão pelo fazer é o motor maior, altamente contagioso. Alia-se ao respeito profundo pela vida, contra a corrosão imposta pelos preconceitos e pela injustiça, provavelmente valores essenciais para quem mora sobre chão de vidro…
De qualquer forma, mesmo diante do impacto imenso do espetáculo, importa evitar julgamentos apressados à moda veneziana: cabe à plateia responder. Então, não perca tempo, corra para o Teatro Nelson Rodrigues, vá ver a peça: com paixão ou não, você vai ter uma enorme surpresa, vai perceber como a sua própria alma baila diante da cena ao sabor de um tom maior chamado poesia.

FICHA TÉCNICA:
Texto: William Shakespeare
Direção: Daniela Stirbulov
Tradução/Adaptação/Assistência de Direção: Bruno Cavalcanti
Elenco / Personagem:
Dan Stulbach / Shylock
Augusto Pompeo / Duque
Amaurih Oliveira / Lorenzo e Príncipe de Marrocos
Cesar Baccan / Antônio
Gabriela Westphal / Pórcia
Júnior Cabral / Graciano
Marcelo Diaz / Lancelotte Gobbo
Marcelo Ullmann / Bassânio
Marisol Marcondes / Jéssica
Rebeca Oliveira / Nerissa
Renato Caldas / Solânio e Tubal
Thiago Sak / Salarino e Príncipe de Aragão
Baterista em cena: Caroline Calê
Cenografia: Carmem Guerra
Cenotécnico: Douglas Caldas
Desenho de Luz: Wagner Pinto e Gabriel Greghi
Figurino e Visagismo: Allan Ferc
Assistente de Figurino: Denise Evangelista
Peruqueiros: Dhiego Durso e Raquel Reis
Direção de Movimento: Marisol Marcondes
Aderecista: Rebeca Oliveira
Consultoria Sobre Shakespeare: Ricardo Cardoso
Vídeo e Imagem: André Voulgaris
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Design Gráfico: Rafael Oliveira Branco
Operação de Luz: Jorge Leal
Operação de Som: Rodrigo Rios
Motorista: Cosme Araujo
Assistente de Produção: Amanda Nolleto
Produção Executiva: Raquel Murano
Direção de Produção: Cesar Baccan e Marcelo Ullmann
Produção: Kavaná Produções e Baccan Produções
Realização: Caixa Cultural
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Sephany
Foto da abertura: Dan Stulbach (Shylock), Marcelo Ullmann (Bassânio) e Cesar Baccan (Antônio). |
SERVIÇO:
Teatro: Nelson Rodrigues – Caixa Cultural
Av. República do Paraguai, 230 – Centro/RJ
Telefone – (21) 3509-9621
Temporada – De 22/05/2025 até 15/06/2025
HORÁRIO: quinta e sexta -19h; sábado e domingo – 18h
Duração: 110 minutos
Ingressos:
Plateia R$40 (inteira) e R$20 (meia) / Balcão R$30 (inteira) e R$15 (meia)
Classificação indicativa: Não apropriado para menores de 12 anos