
A arte do ator: teatro não se aprende na escola
Muitas vezes já me vi na situação embaraçosa de tentar explicar uma das minhas profissões mais estranhas – são várias – para pessoas descrentes do potencial humano para arranjar coisas bizarras para fazer. É quando comento que dou aula em escola de teatro e o interlocutor, cidadão do mundo comum, exclama – Mas que diferente! O que você faz lá? E para quê serve uma escola de teatro? Você forma atores?…
Trabalho em escolas de teatro desde 1982 e não, não sei se eu formo atores – ou mesmo se alguma escola de teatro consegue formar atores. Quanto tempo leva um ator para se formar? Reparem bem na estrutura da pergunta, pois acredito que é o ator quem se forma, quem cuida de si, quem batalha dia a dia para ser ator. A rigor, de verdade, ninguém forma um ator, o ator é que se forma. E a grande dúvida reside aí – um curso de 2, 3 ou 4 anos não leva um ator a se formar. O ofício é denso.
A história está povoada por multidões de atores – a imensa maioria – que nunca estiveram numa escola de teatro. Como eles se formaram, se as escolas de teatro são tão recentes? Na vida. Muitos não tiveram escolha: nasceram em famílias de teatro e, como as profissões, até há bem pouco tempo, passavam obrigatoriamente de pai para filho, foram forçados a seguir no tablado. Neste mundo histórico, a escola era o ato mesmo de fazer – e eu penso que isto, na arte, significa muito. O artista nasce na arte. Nenhuma teoria pode ensinar um ator a fazer uma cena, seja de puro corpo, de riso ou de dor.
Na encantadora Escola de Teatro Martins Pena, uma usina de arte fabulosa, conheci um senhor, o Seu Arthur, patriarca da escola, conselheiro da comunidade, um destes sábios cotidianos, um dos meus ídolos secretos. Ele namorava a secretaria da escola, Claudinete, fora comerciante ali na rua e se acostumou a apadrinhar a casa. Um dia, numa conversa distraída na secretaria, ele sentenciou: aqui nesta escola não são formados atores, são formadas pessoas melhores. Depois de formados, os alunos decidem se querem seguir a arte, mas, se não seguirem, terão uma vida mais feliz. Serão bancários melhores, motoristas melhores, comerciantes melhores.
Adotei este pensamento singelo, direto: o teatro torna as pessoas mais felizes, melhores, ninguém passa impune por uma experiência teatral. Mas, formar um ator, um artista de teatro, na plena expressão do termo, eis uma tarefa difícil. Ensinar teatro é ensinar tudo: é ensinar a viver com arte no próprio corpo, ensinar a irradiar e a exalar arte. Gestos, palavras, sentimentos, pensamentos – tudo, enfim, precisa ser sintonizado com uma dimensão poética explícita.
A questão é muito profunda. E é muito séria. A pessoa pode passar a vida fingindo ser ator, pode simular um domínio da expressão que, de fato, não tem. E ainda assim pode ter sucesso, encantar um público, conquistar uma plateia para chamar de sua. São os canastrões, os malandros da arte, que fingem com sinceridade ser o que efetivamente não são – e, vamos combinar, que mal há nesta farsa em que farsante e farseados se sentem felizes, compartilhando um lugar sentimental reconfortante, de uma mentira rasteira?
Existe, contudo, o ator pleno, íntegro, verdadeiro, vertiginoso. A pessoa doa a alma ao que faz e irradia uma energia de vida pura, cristalina. Usa-se com frequência a palavra sacerdócio para falar destes celebrantes, que conseguem dominar um código de comunicação, uma linguagem, em que a vida está ausente e a arte se faz dominante. Como é isto? Como se pode ensinar isto?
Sim, eu não sei se formo atores por que trabalho sempre com teoria, sempre dei aulas de teoria do teatro, estética, história do teatro, crítica teatral e metodologia da pesquisa. Vale insistir que eu nunca quis ser atriz. Sou historiadora de formação, escolhi estudar História muito cedo e sou encantada por seu estudo. Decidi me especializar em História do Teatro quando o campo era um terreno baldio e, ciente da minha ignorância a respeito do teatro, fui estudar a arte. Sim, passei pelo palco nas escolas de teatro, quase conclui o curso de direção, adoro dirigir, mas a minha praia é mesmo a teoria.
Vi coisas inacreditáveis em aulas de interpretação ao longo da minha vida nas escolas. Ausência de método, empirismo, impressionismo, improvisação canhestra, superficialidade, arrogância, ignorância e má fé não faltaram. E sempre bateu forte a percepção de que vivemos num meio teatral muito instável, muito irregular, muito frágil. Os saberes são muito difusos. Qualquer aventureiro que chega, como se fosse um colonizador europeu com seus espelhinhos, faz a praça, vira deus. Já vi professor de interpretação empurrar o aluno do palco para que o aluno caísse lá de cima e… perdesse o medo da cena…!
Penso que é fundamental a organização de uma rotina de congressos de ensino de teatro, para que as diferentes escolas se encontrem e exponham seus métodos e processos. Para debatermos o que é formar um ator. Hoje, no Brasil, vivemos uma realidade muito engraçada: temos mais escolas de teatro do que teatro. Formamos por todo o país uma quantidade enorme de atores e de diretores de teatro – e até de críticos – sem que estes jovens tenham qualquer perspectiva de mercado. As escolas trabalham por si e para si, visam um mercado inexistente. Formam atores?
Muitos professores destas tantas escolas de teatro raramente vão ao teatro e vários ignoram os grandes trabalhos teatrais do momento. Ao mesmo tempo, nas escolas regulares, os currículos de formação dos professores de Português ignoram os autores dramáticos, os dramaturgos. E todo este povo, salvo exceções muito localizadas, segue a vida sem ter tido teatro na formação escolar. Neste quadro, o aluno pode chegar à escola de teatro, universitária, sem nunca ter feito teatro e tampouco ter visto uma peça.
A profundidade do debate a respeito do teatro no Brasil hoje, portanto, é abissal. E a pergunta de fundo é rascante – que tipo de país se pretende construir no qual a própria instituição do teatro tende a ser uma farsa patética? Vale, então, destacar as iniciativas fortes, os pontos de tensão e de inquietude que podem sacudir a pasmaceira. Nesta semana, uma iniciativa acadêmica louvável estará à disposição de todos os que amam teatro e estão verdadeiramente interessados em debater a formação dos atores.
Trata-se de uma montagem escolar realizada na Escola de Teatro da UNIRIO. O projeto mobiliza a capacidade de produção da escola e identifica com muita clareza o contorno institucional e as condições de realização da escola. A estreia será na quinta-feira, dia 28, e as apresentações seguirão até o domingo. O texto escolhido é Em Alto Mar, de Slawomir Mrozek (1930-2013), obra lançada em 1961 e de impactante atualidade.
A sinopse diz tudo – três náufragos perdidos no meio do oceano, numa jangada improvisada, sem comida, decidem que precisam fazer uma eleição vital, para escolher alguém “daquela sociedade” para ser devorado e, assim, garantir a sobrevivência dos outros. A direção é do professor encenador Ewald Hackler. E a pergunta impertinente surge clara: qual a novidade que transforma uma simples montagem escolar em evento importante da temporada, sonante para uma reflexão a respeito da estrutura do teatro brasileiro hoje?
O primeiro ponto a destacar é a densidade artística do trabalho de Ewald Hackler. Professor, ele é, antes de tudo, um diretor, um grande especialista na arte da encenação. Nascido na Alemanha, na década de 1960 ele trabalhou com atores do Berliner Ensemble, o teatro estruturado por Bertolt Brecht (1898-1956).
Estes atores fugiram da Alemanha Oriental e se radicaram na cidade de Colônia, onde Hackler vivia. Leonard Steckel (1901-1971), o ator criador do papel do Sr. Puntilla, foi um destes atores. Hackler desempenhou ainda a função de cenógrafo-assistente de Caspar Neher (1897-1962), o grande cenógrafo de Brecht, e se projetou como figurinista e cenógrafo.
Radicado no Brasil há cinquenta anos, professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Ewald Hackler veio ao Rio convidado pelo Instituto Martim Gonçalves e pelo PPGAC da Escola de Teatro da UNIRIO. O projeto tem uma densidade profissional admirável. É a terceira vez que o diretor dirige o texto e, neste projeto, o diretor se concentrou no método da montagem, na leitura de mesa e na compreensão da estrutura da peça.Quer dizer, extensa aplicação de um método, calcado na formação do ator para a encenação.
Assim, a discussão central do trabalho é a formação do ator segundo as regras mais nobres da arte no nosso tempo. Em Alto Mar pretende ser uma montagem didática, uma encenação que nasce de um seminário especializado, realizado na disciplina Prática de Montagem Teatral, ministrada pela Professora Jussilene Santana, produtora executiva do espetáculo e diretora do Instituto Martim Gonçalves. O processo foi acompanhado por uma equipe de filmagem, para o registro do trabalho e para a realização de um documentário. Ou seja – o método de direção de Hackler ficará documentado.
Para o tema da formação do ator, há um mérito absoluto na montagem: o texto escolhido, uma peça do gênero didático, apresenta uma estrutura formal composta por cenas autônomas, independentes entre si, mas articuladas em profundidade. A intencionalidade e a intensidade do trabalho do ator precisam ser focalizadas com rigor para que esta estrutura apareça com impacto, entre a sensação e a razão. Da fala ao menor gesto, é preciso contar com uma abordagem técnica muito precisa, sem espontaneísmo, sem apoio em truques de colete ou em vícios expressivos.
Portanto, a encenação recorre ao efeito épico para a apresentação das cenas. Vale acrescentar algo a esta concepção do épico, na qual o intérprete tem protagonismo decisivo em todo o processo. A concepção geral da proposta nasce do diretor, mas é profundamente elaborada junto à equipe, segundo aquilo que se poderia chamar de contracena inteligente. A solução poderá ser vista com muita clareza no ensaio aberto do dia 27 próximo, quarta-feira, no qual o diretor trabalhará os procedimentos com o pano aberto, expondo para a plateia o mecanismo de montagem – o ensaio aberto será, portanto, uma aula-ensaio.
A partir da dinâmica ácida do texto, uma combinação requintada de representação, farsa e mordacidade, crítica aguda ao Estado e aos poderes de aniquilamento do sujeito, é possível encontrar um desafio forte para o trabalho do ator, em especial do jovem ator, inquieto, louco para sacudir as estruturas do mundo. Para que a opressão se torne palpável, alvo nítido para a plateia, vale mostrar e desmontar, digamos – e a potência para fazê-lo dirá da extensão do intérprete.
Como se pode constatar, é uma tarefa árdua explicar o trabalho que deve acontecer dentro de uma escola de teatro. Pois as escolas se tornaram necessárias em razão desta arte atual, de alta voltagem crítica. Trabalhar com o ator para que ele se torne capaz de materializar esta força a um só tempo criadora e questionadora, lúdica e racional, é a tarefa que se atribui, hoje, às escolas de atores. Sim, em lugar de formar, elas indicam caminhos. Não se trata mais de mera repetição de um arsenal de truques e padrões, mas de invenção da sensibilidade e da percepção. Como dar conta do encargo? Não há resposta teórica. Mas, sim, há uma chance para tentar explicar tudo ao vivo: é ver a montagem e dimensionar o quê, afinal, se pode conseguir fazer numa escola tão tradicional como a UNIRIO.
EM ALTO MAR
Apresentações:
27 de junho – quarta-feira – 19h (ensaio aberto e didático)
28 de junho – quinta-feira – 18h (estreia para público e convidados)
29 de junho – sexta-feira – 19h
30 de junho – sábado – 19h
01 de junho – domingo – 19h
Local: UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Palcão da UNIRIO
Endereço: Av. Pasteur, 436 – Urca, Rio de Janeiro – RJ
Duração: 60 minutos
Gênero: comédia
Lotação: 80 lugares
Classificação: 14 anos
Entrada gratuita – distribuição de senhas 30 minutos antes da sessão.
Dramaturgia: Slawomir Mrozek
Tradução: Roberto Lage
Direção: Ewald Hackler
Assistente de Direção: Jussilene Santana
Preparadora de voz: Jussilene Santana
Elenco: Guedes, Osvaldo Baraúna, Vanessa Rocha, Venâncio Cruz e Virgínia Bravo
Assistentes de produção: Maria Clara Migliora, Raphael D´Arc, Stace Mayka e Úlli de Oliveira
Figurino: Ewald Hackler e elenco.
Caracterização: Mona Magalhães (monitorada pelo aluno Everton Cherpinski)
Assistência de cenografia: Adler Franco
Iluminação: Raphael Cassou
Design e Ilustrações: Yuri Barreto
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Produção Executiva: Jussilene Santana
Produção: Escola de Teatro da UNIRIO e PPGAC
Apoio: Instituto Martim Gonçalves
Site https://institutomartimgoncalves.com.br