A velocidade acelerada do tempo
Tempos pulsantes, ritmo acelerado. São impressionantes os momentos assim, de pura velocidade. Verdadeiros ou não, os fatos atropelam a todos. Estamos num momento destes. E de tédio, diante do teatro, ninguém morre… Verdade: a semana registra a retomada do ritmo habitual de estreias,intenso, muitas cenas numa cena, ainda que a vida curta seja a lei geral. Lei? Pois é.
Não é só estreia, a velocidade que nos visita – lei virou sinônimo de problema. A semana passada foi marcada pela união da classe teatral, com as mais diferentes tendências unidas em assembleia para enfrentar uma crise que se anunciava há bastante tempo: o sério problema da regulamentação profissional.
O fato é curto e direto: a possibilidade de extinção da lei da regulamentação profissional. O estopim, uma incômoda denúncia de concessão fraudulenta de DRT, o ansiado registro na profissão de artista. Não foi a primeira denúncia, não foi o início do problema, muita confusão já aconteceu nesta arena. Algumas pessoas até já foram presas por causa de DRT falsas. O tema é muito espinhoso, delicado mesmo, demanda reflexão coletiva, maturidade de pensamento.
Afinal, aqui, um dilema rascante corta o pano de boca, ao lado e além do crime de falsidade ideológica. É preciso assegurar a qualquer preço as parcas garantias profissionais conquistadas, meios para a sobrevivência, ainda que incerta, num mercado claudicante? O que é o mercado, o que é a profissão de artista? O mercado existe? Os artistas vivem do exercício de sua arte? Na realidade, o mercado é construído na marra por cada um que decide ser ator, o esforço individual, mais do que a lei, garante o direito de cada um.
Ao que tudo indica, o amparo legal, enfim, teria mais efeito para as questões previdenciárias, de doença, aposentadoria, não? A lei por si não parece vigorar no cotidiano dos profissionais, ela não parece garantir a entrada no mercado, nem regular a permanência nele, pois não ela assegura as condições básicas do exercício da profissão, o salário mínimo, os direitos profissionais. Isto por uma razão simples: o mercado é uma abstração, uma hipótese que cada um precisa às suas custas tornar real. Em vários casos, o mercado se confunde com o próprio artista, já que é todo construído por ele.
E, assim, a lei acena com um outro problema, o fechamento do mercado. Esta decorrência é um tabu, uma casa de maribondos que muitos não gostam de discutir. Ao pé da letra, a lei permite que a classe, legalmente definida, impeça o acesso livre à expressão artística, situação desejada e defendida por muitos em nome da formação especializada e da competência adquirida.
Mas o problema, ao redor, é o Brasil – o fechamento acontece num país tão rico em talentos espontâneos, tão pobre em escolas e, o mais grave, onde não há acesso universal, amplo e irrestrito, às escolas. O Brasil nunca ofereceu aos cidadãos a escolaridade plena, em particular a escolaridade profissional.
É impossível dizer que nossos talentos naturais, intuitivos, podem e conseguem frequentar as escolas. Não podem, não há escolas para todos. Uma cruel crítica sempre feita por doutos e poderosos a Dercy Gonçalves, muito revoltante, era exatamente que era lamentável que ela não tivesse estudado. E – pior – que, quando ficou famosa, não tratou de sanar a sua “carência”.
Para a classe teatral, na sua esmagadora maioria sempre progressista em seus anseios e sempre engajada a favor dos direitos sociais amplos e irrestritos, parece duro e contraditório o fechamento total do mercado a partir de um ato legal, a letra da lei. No fechamento, o acesso à profissão acontece quase exclusivamente através das escolas especializadas.
Ou não apenas. Ele pode ser obtido também por indicação do poder econômico, em especial através das grandes redes de televisão. Ou através de comprovação de efetivo exercício da arte, exercício que teria que ser iniciado fora do mercado, no braço… São brechas elitistas, em boa parte, pois supõem sempre algum poder econômico.
Para complicar, é preciso reconhecer que as escolas de arte são realidades bastante novas no país, são inexistentes ou frágeis em muitos lugares. E artistas de perfil espontâneo mais original ou rebelde podem não conseguir nunca ingressar numa escola de formação, de segundo grau ou de ensino superior. Conheço bastante as escolas do Rio e não consigo imaginar como talentos semelhantes a Dercy Gonçalves, Aracy Côrtes, Grande Otelo poderiam chegar aos exames de seleção. Procópio Ferreira foi reprovado na Martins Pena, fez sucesso e foi convidado a voltar e a se diplomar.
Cristaliza-se, neste contexto, uma estrutura de poder densa. Graças à lei, ao lado da escola, para regular a liberação de registro, se consolida o poder do sindicato. Cria-se uma firme barreira institucional ao redor do mercado, portanto. Ou seja – aqueles talentos brasileiros naturais, inatos, espontâneos, fulgurantes, em vários casos quase analfabetos, pobres de maré de si, ficam por princípio impedidos de ingressar na profissão… No máximo, podem ter acesso à praça e ao próprio chapéu.
Mas não é tão fácil ser senhor do próprio chapéu. Ou da praça. Alguns exemplos precisam ser pensados. Para ser artista de rua e ter trânsito institucional pleno – quem sabe, ter financiamento público ou mesmo licença para atuar na rua – pode se chegar sim ainda ao impasse de exigir escolaridade do candidato. Portanto, toda a classe, da rua ao Teatro Bradesco, deveria saber cedo a sua inclinação para a arte e ir para a escola se formar.
Chegamos, então, a uma situação bastante curiosa – o engessamento profissional precoce absoluto. Se a pessoa escolheu uma profissão, deve seguir nela. Um escândalo para o caso do teatro. Afinal, se olharmos a classe teatral brasileira do século XX, chegando aos nossos dias, uma multidão está fora da lei, não poderia se tornar artista.
Figuras como Paulo Autran, advogado, ou Sergio Britto, médico, nas condições atuais teriam dificuldade para seguir o caminho escolhido, em especial aqueles que não foram amadores. Denise Weinberg é bióloga. Zezé Polessa, médica. Ana Veloso, advogada. E vai por aí.Há, porém, mais complicadores. Numa época em que o país precisa discutir seriamente a questão da aposentadoria, tema urgente há décadas sempre evitado por sua imensa antipatia política, o debate de uma lei do artista em que a única vitória concreta inegável é a aposentadoria parece ser uma conversa complexa.
O pior de tudo é que, honestamente, falar de uma classe artística parece ser um extremo esforço de retórica: como no tempo de Leopoldo Froes, existem as poeiras da arte e as estrelas absolutas da profissão. Isto não significa qualidade de arte ou pessoal, é hierarquia social brasileira mesmo. Diante da miséria dos artistas-poeira do seu tempo, Froes começou a campanha para a criação do Retiro dos Artistas. Lá, como hoje, o mercado continua a ser uma ficção, quase uma miragem, um delírio. Não é uma condição coletiva efetiva.
Se o olhar for ácido, talvez seja preciso constatar que pouca coisa mudou – fora os citados efeitos de retórica. Precisa-se da lei do artista, mas exatamente para quê, quais as suas condições ideais e reais? O que se pretende garantir com ela, como celebrar a sua excelência e reconhecer as condições básicas da vida na sociedade brasileira? É possível definir a estrutura profissional evitando o fechamento do acesso à profissão? Vale a pena conferir às escolas o poder absoluto de controlar o acesso à profissão? Os sindicatos servem apenas para fiscalizar – ou conceder – autorização de trabalho?
Importa pensar na lei com os olhos fixos nas condições do mercado hoje. Um dado curioso e alarmante é a eterna juventude da nossa classe teatral. Não, não se trata de ingestão desbragada de botox, ninguém descobriu a fonte da juventude – o teatro libera a alma, mas não rejuvenesce o corpo… O que acontece é que as escolas formam uma pequena multidão de artistas, rotineiramente.
O resultado gritante é que a cada ano uma leva espantosa de jovens ingressa na arte, mas fica pouco tempo. Como se tivéssemos um ritual de sacrifício juvenil semelhante àquele do Minotauro. O êxodo parece ser quase tão elevado quanto o ingresso – poucos ficam, poucos envelhecem, por isto a classe teatral brasileira atual é sempre juvenil. Por isto, o gosto dominante pela vanguarda, o pouco apreço aos clássicos e às grandes montagens – o padrão dominante é juvenil. Para muitos dos que estão mobilizados hoje ao redor da discussão da lei, ela não será o poder regente de suas vidas, pois um largo número vai abandonar o teatro…
E a semana segue. É esta febricidade juvenil que faz a tônica da semana teatral. A semana respira bastante juventude e ferve numa linha de produção intimista, delicada. No seu conjunto, as propostas traduzem projetos pessoais, como manda o figurino do não-mercado brasileiro. Não há nenhum projeto institucional em cena.
Dentre os novos cartazes da semana, vale destacar alguns. De saída, chama a atenção a presença de três musicais. Ou quase musical, no primeiro caso, o delicado Maria, com textos de Antônio Maria adaptados pelo ator Claudio Mendes, direção singela, mas de extrema criatividade, de Inez Viana. O recurso ao talento arrebatador de Antônio Maria permitiu a construção de uma ode de homenagem ao Rio, ao melhor do Rio, proposta bem situada no SESC Copacabana. É emocionante e lindo.
O caráter intimista também aparece em Nara – A menina disse coisas, texto de Hugo Suckman e Marcos França, direção de Priscila Vidka. Trata-se de um musical de bolso, biográfico, dedicado a Nara Leão, com os atores Aline Carrocino e Marcos França, no Teatro Ipanema.
Já a verve carioca para a demolição crítica de tudo e de todos assina presença no divertido A vida não é um musical – o musical, de Leandro Muniz, direção do autor e de João Fonseca. Um elenco de dez atores, acompanhado por cinco músicos, faz a festa no Teatro de Arena do SESC, busca sacudir as formas de pensar correntes, patentes nos desenhos da Disney, em paralelo com fatos políticos atuais.
Afinal, a presença juvenil aflora também numa peça mais dramática e experimental, o docudrama Solitárias, de Clarisse Zavros, cartaz do SESC Tijuca. O eixo do texto é constituído pelos relatos de mulheres presas e torturadas na ditadura militar.
Sem dúvida a panorâmica rápida revela um pouco da velocidade vivida estes dias – ela permite dimensionar uma cena que se agita intensamente ao redor de pesquisas, inquietações e buscas, com um vigor jovem extremo. Uma cena que precisa buscar por si os meios para existir e para sobreviver. Um estilo Brasil inquietante, posto que imediato, instável, imprevisível, como se vivêssemos na guerra. No mundo lá fora, a realidade não faz por menos, a guerra se instalou de verdade. A sensação é a de que estamos passeando sobre areia movediça, um chão que treme, sempre ameaçador. Que o nosso equilíbrio seja o nosso maior conselheiro, para não afundarmos na terra fofa traiçoeira.
Maria
Local: Mezanino do Sesc Copacabana – Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro
Informações/tel.: 2547-0156
Temporada: 12 de abril a 6 de maio
Dias: Quinta a sábado às 21h e domingo às 20h
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 70 minutos
Lotação: 80 pessoas
Ingressos: R$ 7,50 (Associados do SESC) e R$ 30,00 (casos previstos em lei pagam meia)
Nara – A menina disse coisas
Teatro Ipanema
Estreia: 14 de abril – Classificação: Livre
Rua Prudente de Moraes, 824. Ipanema – 2267-3750
Horários: 20h30 Duração: 1h 10
Lotação: 192 lugares – Preço: R$ 50,00
A vida não é um musical – O musical
Duração: 1h 45m
Classificação indicativa: 16 anos
Local: Teatro de Arena/ Sesc Copacabana
Temporada: de 12/04/2018 a 06/05/2018
Horários: quintas, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h
Lotação: 242 lugares
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia-entrada) | R$ 7,50 (associado Sesc)
Solitárias
Sesc Tijuca – Teatro II
Temporada: De 13 de abril a 06 de maio – 12 sessões – Classificação: 16 anos
Local: Teatro Sesc Tijuca- Teatro II (Rua Barão de Mesquita, 539 – Tijuca)
Horários: De sexta a domingo – 19h – Duração: 50 minutos
Capacidade: 50 Lugares – Gênero: Drama
Preço: R$ 7,50 (COMERCÁRIO) R$ 15,00 (Meia) R$ 30,00 (INTEIRA)