Oração para o teatro nosso de cada dia

 
Talvez nunca tenha sido tão importante falar de teatro, falar com amor, em feitio de oração. Pois o teatro, hoje, não é a uma arte que se faz, mas uma arte que se perde. Como explicar o impasse? São vários os motivos históricos. Na longa lista que seria preciso arrolar, a própria classe teatral deve figurar como culpada. Por inação.

 

Mas o tema aqui não é exatamente este, só de passagem será preciso abordá-lo. O tema é o teatro de 2016, a retrospectiva do ano, por isto a obrigatoriedade de recorrer à forma de oratório: Dioniso proteja o teatro que permanece vivo, pulsante, por aqui, o teatro que incendeia nossa alma, reinventa o nosso sentir, acolhe o nosso coração e muda o nosso olhar diante da vida, dos homens e do mundo.

 

Sim, pois o palco precisa oferecer alguma coisa valiosa, vital, para arrebatar a atenção de uma pessoa tão ocupada como o cidadão contemporâneo, o teatro não pode pretender tomar o seu tempo em vão. E, ainda que além da eterna crise histórica, uma crise contemporânea, cáustica, venha faz algum tempo devastando o teatro carioca, este tesouro sensível, o teatro, persiste, permanece vivo, e se manifesta em explosões criativas multifacetadas, como a queima de fogos no fim do ano.

 

Foram algo ao redor de três centenas de peças em cartaz ao longo do ano – difícil fechar a conta por não contarmos com qualquer órgão, hoje, voltado para o registro da temporada. A lista geral precisa abranger mais do que os profissionais, um rol extenso, do padrão mais consagrado ao experimentalismo mais radical. É preciso contar os estreantes, egressos das escolas de formação, os próprios espetáculos escolares que se apresentam no mercado, e os semiprofissionais, artistas de grupos e coletivos que ainda não conseguem viver de teatro.

 

Uma primeira constatação importante resulta desta escolha para desenhar a lista dos cartazes – a constatação de que a classe teatral carioca é jovem e é marcada por um elevado êxodo profissional, pois muitos dos ingressantes não conseguem persistir na profissão. Outro dado alarmante é o baixo índice de profissionalismo: quer dizer, o baixo percentual de profissionais que sobrevivem efetivamente de fazer teatro. Na classe teatral carioca, predomina o perfil profissional de seres-de-sete-instrumentos, os profissionais, além de fazer teatro, vivem de dar aulas, fazer produção, fazer televisão, cinema e propaganda, entre outras ocupações, exploradas por necessidade de sobrevivência, não por escolha afetiva ou inclinação profissional.

 

No interior deste jogo, parece evidente ressaltar que o teatro carioca precisa de oração porque vive dentro de uma estrutura capitalista fantasma: o capital, o financiador da produção, é absenteísta, é ausente, ele vem do jogo social e volta para ele. Não há uma máquina econômica de produção: a Broadway não é aqui, digamos. Temos uma rotina de produtores executivos, não temos produtores empresários. Assim, as produções, na sua maioria, tendem a ser pequenas, instáveis, dependentes do Estado e das classes dominantes da economia, pois vivem de financiamento exterior à economia do teatro.

 

Certamente viceja um teatro jovem, inquieto, inovador, experimental – mas a sua plateia tende a ser a própria classe teatral, única faixa da sociedade informada o bastante para desfrutar as delícias das ousadias e da inventividade que sacode as cenas. Nem mesmo os universitários, a plateia dourada nos anos 1960/1970, conta mais com formação (e informação) cultural/teatral para acompanhar a voga de inquietude cênica.

 

Neste jogo, um sinal alarmante disparado há alguns anos e mais agudo em 2016, é o definhamento do público de teatro, cada vez mais reduzido, carente de iniciativas expressivas de formação de público e políticas sólidas de difusão cultural. Compõe o quadro a redução do número de casas de espetáculo, em comparação com o crescimento da população. Sinais decisivos, porém isolados, de rompimento deste limite foram esboçados com a construção do Teatro Nathália Timberg, na Barra, por Wolf Maia, e dos teatros da Fundação Cesgranrio, no Rio Comprido. De toda forma, o ritmo de construção de novos teatros é tímido demais, se comparado com a ampliação da população. A população é carente de teatro.

 

Assim, o teatro carioca atravessou o ano de 2016 no embalo da velha crise teatral, estética e econômica, companheira desde o final do século XX, e à reboque das velhas linhas de força, históricas, que moldam livremente a cena, sem reação ativa da classe.

 

Vigoraram, portanto, ao lado da dinâmica de produção regida por capitais anêmicos, absenteístas, e da feição juvenil da linguagem, o protagonismo dos atores (a grande força motriz do teatro brasileiro), as produções de cálculo imediato e fôlego curto (temporadas curtas e assuntos up-to-date, às vezes descartáveis), o gosto pela comédia, os projetos personalistas, as produções de valores tímidos ou de baixo custo, a incursão pelos monólogos e fichas técnicas reduzidas.

 

Houve, com certeza, a força de um dado histórico novo – a volta (e o sucesso) dos musicais, gênero revigorado em razão da expansão recente da democracia. Mas em 2016 o Rio de Janeiro contou com um número reduzido de grandes montagens musicais, à diferença de São Paulo, e recebeu escassas visitas paulistas de montagens de sucesso por lá. O musical carioca tende a ser modesto, biográfico ou temático, com muita inventividade, mas presença remota da tradição do gênero.

 

Algumas instituições desempenharam papéis estratégicos para a garantia de sobrevivência deste teatro tão inquieto, empreendedor e abandonado à própria sorte. Ao lado das leis de isenção fiscal, já transformadas em instituição, amplamente debatidas ao longo do ano, e necessárias como única forma recente de política de Estado para a cultura, se projetaram o Sesc, o CCBB, o Sesi, o CCJF, a Caixa Econômica Federal, a Rede Municipal de Teatros.

 

Muito precisa ser feito no Rio de Janeiro para levar a cidade de volta ao volume de produção que o seu teatro pode oferecer – cabe à classe protagonizar a luta por mudanças decisivas, capazes de libertar o teatro das aflições do momento. Mudanças capazes de levar quem ama o teatro a outras formas de oração, orações de graças por tantas belezas, em lugar das atuais orações, a favor de milagres para a superação de indigências.

 

Os melhores do ano

 

Mas que ninguém se exalte ou se irrite, nem tudo está perdido ainda, habemus theatrum: incríveis momentos iluminados, de graça arrebatadora, aconteceram ao longo do ano. Todas as agruras desapareceram por mágica em grandes lances de teatralidade. É possível fazer uma lista de vinte espetáculos apaixonantes em cartaz no Rio de Janeiro em 2016 sem orientar a escolha por qualquer paternalismo, fato eloquente para o registro da força deste palco. A escolha de tantas montagens já diz da riqueza. E também da decisão de incluir visitas paulistas de forte impacto. Assim, vale registrar na memória do ano, um pouco seguindo a cronologia da temporada:

 

Em primeiro lugar, uma rara grande montagem carioca, uma joia preciosa, direção de Wolf Maia. O texto cult 33 Variações, de Moises Kaufman, comoveu o público com o desempenho luminoso de Nathália Timberg, em raro encontro teatral com a excelente pianista Clara Sverner. A grandeza de Beethoven despontou em cena em tons magistrais, pois o Rio ganhou um teatro novo, de elevado padrão técnico, algo que permitiu ao mestre Aurélio di Simoni criar efeitos de iluminação notáveis.

 

A juventude, contudo, se impôs com densidade de soluções: A Tropa, no CCBB, aclamou o novo autor Gustavo Pinheiro e impressionou com o painel da alma política brasileira recente, uma direção muito inspirada de César Augusto, integrada a uma cenografia desconcertante de Bia Junqueira. No elenco, dois destaques curiosos, a experiência de Otávio Augusto, revelada nos requintes da expressão do autoritarismo, ao lado do frescor do novato Daniel Marano, hábil tradutor do desespero juvenil impotente.

 

A energia jovem mais pulsante foi a estrutura e o nervo exposto de Auê, direção de Duda Maia no Espaço Sesc Arena, um musical inovador, impactante, em que os corpos preenchiam a cena vertiginosamente como pura manifestação de música. E a pesquisa e a experimentação sacudiram a tradição sob um ângulo muito denso – a forma da expressão teatral, revirada e atualizada, trouxe para o presente a saga feminista de Casa de Bonecas, de Ibsen, cartaz do CCJF, direção de fina inteligência de Roberto Bomtempo e Symone Strobel, uma voltagem de análise da vida humana traduzida de forma comovente por Miriam Freeland, na Nora.

 

Já a força de um espetáculo-performance como Mamãe, de Álamo Facó, reside na pura presença do ator – um conceito novo na cena teatral – diante de suas memórias e vivências, amplificadas pelo cenário genial de Bia Junqueira. Aliás, um outro cenário de extrema felicidade poética também surgiu em um espetáculo de pesquisa e experimentação, o sensível Boa Noite, Professor, texto e direção de Lionel Fisher e Julia Stockler, com cenário de José Dias. Na pequena cena em arena construída no palco do Tablado, o cenógrafo criou uma clarabóia capaz de sugerir uma estranha chance de liberdade, liberdade impossível diante do poder corrosivo do professor materializado por Ricardo Kosovski.

 

Um outro momento de tradição reinventada despontou com Dorotéia, de Nelson Rodrigues, direção de Jorge Farjalla. A montagem ousada propôs uma cenografia inventiva, de José Dias, em que o espaço se transmudava numa visão barroca da natureza humana, um lugar explorado com desassombro por Rosa Maria Murtinho, puro fluxo de pulsões primárias. Um mundo subterrâneo se revelava em cena, numa espécie de sinfonia barroca, reforçada pela iluminação de Jorge Farjalla, Patrícia Ferraz e José Dias, e pelos figurinos, de Lulu Arreal.

 

Aliás, a visualidade irresistível, límpida, bem resolvida e arrebatadora foi um dos grandes trunfos da montagem de Love Story, de Stephen Clark e Howard Goodall, um musical tradicional, de grande estilo, cuja direção foi assinada por Tadeu Aguiar. Além da beleza da cena, gerada sobretudo pelo casamento magistral da cenografia praticável de Edward Monteiro com a iluminação sutil de Aurélio di Simoni, verdadeira escultura da luz, a cena alcançou impacto histórico importante por ter sido entregue a atores negros. Voltou à pauta o debate mais caro a Abdias do Nascimento e ao TEN, a necessidade de os atores negros percorrerem a fortuna dramática sem restrição por sua cor. Um grande feito.

 

Uma outra forma de teatro de carpintaria sofisticada também fez O Como e o Porquê, de Sarah Treem, direção e cenografia de Paulo de Moraes, se destacar na temporada. Um espetáculo singelo, mas de grande voo, contundente na demonstração de amor à arte, foi um pretexto excelente para mais um desempenho notável de Suzana Faini, minuciosa radiografia do drama e da comédia da aventura feminina, diante do poder e em conflito com o lar, na nossa época. Foi notável ver como o hábil jogo de palavras do texto se transformou num desenho de cena límpido, valorizado pela iluminação de Maneco Quinderé.

 

E as palavras e os afetos do presente, vividos, macerados, reprimidos e incontidos, demolidores, portanto, varreram a cena em Demônios, de Lars Norén, direção ousada de Bruce Gomlevsky, às vezes levando a revelação das entranhas de cada personagem longe demais, o suficiente para sublinhar a grandeza da atriz Luiza Maldonado, capaz de expor o avesso de sua personagem com absoluta entrega.

 

Ao lado da entrega generosa, contudo, a encenação da autoimolação do ator, outros feitos teatrais teceram linhas ácidas, críticas, de encenação, desvelaram a teatralidade do teatro. O seu cálculo foi outro – revelaram a mentira da arte, brincaram com a cena, num jogo irresistível.

 

A invenção do teatro, digamos, teve o seu ponto mais elevado no formidável desempenho de Marcos Caruso em O escândalo de Philippe Dussaert, de Jacques Mougenot, direção Fernando Philbert, uma peça de fino humor e aguda inteligência devotada à discussão, sem hermetismo, dos temas básicos constitutivos do mundo da arte hoje. Senhor do melhor monólogo do ano, maestro inconteste dos recursos do palco e dos humores da plateia, Marcos Caruso enfrentou com extremo brilhantismo o desafio de expor os impasses maiores do mercado de arte e da própria arte, numa aula magna a respeito da grandeza do teatro.

 

A narratividade, aliás, procedimento teatral caro ao nosso tempo, foi a linha condutora do novo delicado trabalho do Amok Teatro, Os Cadernos de Kindzu, adaptação da obra de Mia Couto. Com direção, cenário e figurino de Ana Teixeira e Stéphane Brodt, a montagem se revela um jorro cênico de poesia, uma tessitura requintada de palavras, corpos, cantos e imagens, uma forma hábil para exaltar o valor da vida em nosso tempo e desnudar os poderes mais sublimes do teatro, quando exercitado sob a regência do trabalho de grupo.

 

O recurso ao distanciamento narrativo também se fez presente no teatro mais comercial, na comédia de mercado – foi o propulsor oculto da cena em A Invenção do Amor, de Alessandro Marson e Thereza Falcão, direção inspirada de Marcelo Valle, com figurinos cômicos de Marcel Olinto e desempenhos entre o ágil e o malicioso de Maria Clara Gueiros e Guilherme Piva.

 

A estratégia, contudo, apareceu implícita, sob arranjo dialógico sofisticado, numa das grandes revelações teatrais do ano, a comédia sentimental delicada A Vida Passou Por Aqui, de Claudia Mauro. Sob direção inspirada de Alice Borges, capaz de conceber uma cena de andamento sempre envolvente, os atores Claudia Mauro e Édio Nunes contavam as suas histórias de vida com teatralidade impecável.

 

Uma outra dupla, Otto Jr e Julia Lund, também falou de amor com intensidade, mas também com uma narratividade subsumida, em Amor em Dois Atos, de Pascal Rambert, uma concepção engenhosa de Luiz Felipe Reis. De certa forma, foi curioso contar, na mesma temporada, com uma encenação de Antes do Café, de O’Neill, assinada por Jorge Farjalla, com cenário in situ e direção de arte de Camila Rodrigues, atuação de Nadia Bambirra. Há uma enorme distância histórica e estética entre os autores, a trama do texto norte-americano, tributária do realismo expressionista, segue um fio condutor progressivo da ação, mas ela é sustentada pela ausência do interlocutor, forma sugestiva para pensar o cálculo de direção concebido por Reis.

 

Resta observar a qualidade teatral avassaladora de alguns espetáculos paulistas que visitaram o Rio. Talvez, se houvesse justiça na cena teatral, fosse o caso de proclamar, entre os paulistas, os melhores espetáculos do ano. Afinal, o que se pode dizer de montagens tão sublimes e irretocáveis como O Camareiro, de Ulysses Cruz? Ou de Gata em Telhado de Zinco Quente, de Eduardo Tolentino de Araújo?

 

No primeiro caso, a grandiosidade da cena importa para mostrar como o teatrão é irresistível, fundamental. Desempenhos antológicos como os de Tarcísio Meira e Kiko Mascarenhas são capazes de mover o eixo da Terra em alguns graus. A cenografia, de André Cortez, além da adequação cênica, da plasticidade e da beleza, impressiona com efeitos teatrais impactantes.

 

E muito mais se poderia escrever sobre a encenação do Grupo Tapa, assinada por Tolentino. O conjunto aponta um processo raro no palco nacional, a maturidade de linguagem de um coletivo longevo, bem estruturado, orgânico. Ao lado da força expressiva da direção, a cenografia de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro trouxe para a cena o algodão que constrói o poder do patriarca. Zécarlos Machado, por sinal, o patriarca, catalisa um fluxo sensível patético ao seu redor, enquanto Barbara Paz consegue materializar a força bruta da terra e o desamparo dos pobres. Teatro em estado puro em alta voltagem.

 

E São Paulo trouxe mais: foram só dois musicais, mas dois musicais de alto coturno. Ao lado da biografia Gilberto Gil, Aquele Abraço – o Musical, retrato sentimental do músico irreverente, direção febril de Gustavo Gasparani capaz de manter o elenco em estado elétrico, em especial os atores músicos Daniel Carneiro e Jonas Hammar, o Rio teve a chance de ver a ótima Cinderella, direção de Möeller e Botelho. O musical veio na versão americana de 2013, uma versão moderna do velho conto, mas com as músicas antológicas de Rodgers e Hammerstein. Ao lado de grandes efeitos de palco, notável cenografia, figurinos impactantes, a graça de Totia Meirelles como a madrasta, o encanto de Bianca Tadini na Cinderella e a espirituosa Ivanna Domenyco como fada madrinha.

 

Ao lado dos espetáculos de destaque, contudo, é preciso honrar desempenhos de projeção capazes de iluminar as cenas, ainda que o conjunto da obra em que aconteceram não tenha impressionado. E assim é preciso destacar a malícia e o charme de Claudio Lins num papel coadjuvante em Garota de Ipanema, o amor é bossa, o furacão expressivo de Laila Garin em Gota d’água a Seco, a versatilidade, a força e o encanto de Denise Fraga em Galileu Galilei, a inteligência de Rita Elmôr em Clarice Lispector e eu – o mundo não é chato e a intensidade emocional rascante de Débora Bloch em Os realistas.

 

Sem dúvida: é muita coisa. É um teatro entregue à própria sorte, num país em que não há nem nunca houve qualquer projeto cultural denso devotado à valorização da sensibilidade e da expressividade nacional. Portanto, apesar das críticas, apesar do sinal vermelho e da sirene aguda indicando que é preciso agir a favor da arte com urgência, nossa classe teatral deve ser aplaudida. Aplaudida de pé. Para, instantes depois dos aplausos, ser chamada à ação, à luta para conceber e implantar formas novas de viabilização da arte do teatro. Antes que a arte acabe e solicite outras orações, cantos elegíacos em benefício de sua alma, desencarnada.