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A grande arte teatral: Nathalia Timberg

 
Senhoras e senhores, corram para ver: temos teatro. Não, não é um arremedo simplista da vida, ou um passatempo enganador, ou uma promessa de novo mundo, futuras sensações. É, sim, o grande teatro do nosso tempo, na mais plena extensão da arte: a encenação de 33 Variações, de Moisés Kaufman, no belo e surpreendente Teatro Nathalia Timberg. A lista de razões para ir voando até a Barra, para conferir o excelente espetáculo, um dos melhores da temporada, é bem extensa. Vejamos alguns pontos essenciais.

 

De saída, o texto trabalha com um dilema inquietante, sempre pronto para assaltar a alma de cada ser humano, do mais simples passante das ruas ao mais poderoso homem do mundo. A questão abissal é simples: como nasce e sobrevive a arte, a partir do nosso banal vale de lágrimas, tão fugaz? Como a fagulha do gênio visita o barro humano? Somos todos apenas mediocridade, mesquinharia cotidiana, mas podemos e devemos abrigar em nós, em algum instante, a possibilidade sublime da arte?

 

O centro da proposta é a reflexão sobre a criação, por Beethoven (1770-1827), no período de 1819 a 1823, das Variações Diabelli. A obra nasceu de uma encomenda, de Anton Diabelli, compositor, cantor e editor de músicas vienense. A partir de uma singela valsa de sua autoria, ele solicitou a 50 compositores a criação de uma variação, para publicar em sua casa editora. Beethoven escreveu 33 variações, no auge de sua arte, ao longo de quatro anos conturbados, em que a sua vida se manteve abalada por uma instabilidade cruel, das finanças à saúde. E quais foram as razões para atender à encomenda, diante de uma música simplória – falta de dinheiro, desejo de superar Bach, que escrevera 32 variações, a chance de um exercício de gênio mesmo diante de material banal?

 

O dramaturgo Moisés Kaufman, venezuelano radicado nos Estados Unidos, partiu da história da composição para criar, com o seu grupo de teatro, o Tectonic Theater, uma peça em que o desejo é exatamente o de olhar para a grande arte em paralelo com a banalidade (ou a fugacidade) humana. Trata-se de uma proposta de pesquisa teatral bastante densa, com fortes amarras intelectuais, inter-relação entre linguagens (teatro, música, projeções, canto), uma espécie de teatro-provocação-de-arte em que não está em jogo qualquer critério realista, nenhum desejo de teatro-história ou teatro documentário, mas, antes, a fruição de um ato de teatro atual completo.

 

Vale destacar, a propósito, o nome do grupo de teatro criador do espetáculo, ao qual o dramaturgo pertence: tectônico – termo escolhido para focalizar o que é relativo à estrutura, como a estrutura da Terra, em camadas, temas por estudar. De acordo com esta diretriz da equipe, o recurso às 33 variações determinou a concepção de um texto com 33 cenas, denominadas pelo dramaturgo de “variações”, pois cada uma representa um experimento, um estudo deliberado de formas teatrais. A ação, então, desliza entre o passado e o presente, incorpora canto, música, projeções, efeitos teatrais, repetições, sugestões de estruturas musicais, como a variação e a fuga.

 

Para conectar a história da criação das Variações Diabelli com a atualidade, propor o paralelo entre passado e presente, vida comum e vida de arte, Kaufman criou como personagem central a musicóloga norte-americana, estudiosa de Beethoven, Katherine Brandt, devotada a entender a motivação do compositor para criar a sua obra. Assim como Beethoven, nesta sua fase madura, das grandes composições, sofria de surdez e de vários outros males, a estudiosa é portadora de esclerose lateral amiotrófica, uma doença fatal obscura, ainda sem pesquisas e tratamentos. Obstinada, na luta contra a morte próxima inevitável, ela deseja desligar-se dos problemas cotidianos, mergulhar decididamente na pesquisa e na música, descuidar ainda mais da filha e vencer as barreiras para realizar o seu estudo, um tanto como Beethoven buscava ignorar as pressões do mundo ordinário ao redor. A partir do apoio de um pequeno círculo, as duas trajetórias humanas chegam ao sucesso – o final da peça é arrebatador, ao revelar em grande brio a vitória da arte.

 

Este projeto brilhante, em que o teatro deseja ser a grande arte do teatro para explorar os seus recursos em ampla extensão, já valeria por si a ida à casa de espetáculos. Mas uma outra razão importa para fascinar o espectador: o desempenho límpido, pulsante, arrebatador, multicolorido de Nathalia Timberg, no papel da pesquisadora que não esmorece, determinada a tentar entender como a arte mais absoluta se faz a partir de uma situação comezinha.

 

Nathalia Timberg, tradutora do texto, revela um conhecimento profundo da proposta. Atriz dotada de dons excepcionais, ela se impõe em cena graças a uma dualidade de representação rara de se ver. Ao mesmo tempo, ela é senhora das palavras, das intenções e do conceito da cena, capaz de uma emissão vocal cristalina, sublime, sem artificialismos ou afetação, e é emoção, sensação, percepção do jogo da vida enquanto pura carne, afeto, pulsação animal, corpo teatral radioso, energia cênica de alta voltagem. A habilidade da intérprete faz com que mesmo as partes narrativas ou demonstrativas do texto surjam sob um tom orgânico. Ao longo da apresentação, uma sutil transformação física e afetiva vai se processando em cena, diante da plateia, confirmando o esplendor desta dama absoluta do palco.

 

O resultado é previsível: uma vertiginosa experiência teatral se instala no espaço em plenitude. Sob a direção inteligente de Wolf Maya, atuação, marcação, desenho de cena, paisagem sonora, plasticidade e composição do espaço professam a harmonia de uma grande missa cênica, formulam um pedido aos céus para que a arte nos envolva, esteja conosco em nossa pequenez cotidiana, kyrie eleison. O espaço se transmuda em lugar poético, segundo uma visão libertária da vida derivada de uma outra revolução, a da arte.

 

A ideia de teatralidade se instaura centrada no princípio de contraposição e de enfrentamento de forças, transparece no desempenho do elenco. A estrutura do texto obedece a um padrão singular – a cada protagonista, corresponde uma escala de papéis complementares, figuras derivadas, variações ilustrativas do perfil dominante, mais ou menos estruturados como apoios dramáticos. Assim, no presente e no passado há um desdobramento dos papéis, reveladores de atitudes humanas diante da arte.

 

Ao lado de Nathalia Timberg, Lu Grimaldi materializa com autoridade a arquivista responsável pelos arquivos da Casa de Beethoven, em Bonn. A personagem traduz a vigilância alemã a favor da grande arte, dividida entre o rigor policial e a liberalidade do amor à pesquisa. Flavia Pucci, na filha, situa o mundo imediato dos entraves cotidianos, as demandas miúdas das rotinas e dos afetos mundanos, função polarizada com a figura do enfermeiro, a cargo de Gil Coelho, um meio para revelar a devastadora tragédia da doença e a chance de libertação da filha.

 

Wolf Maya incorpora um Beethoven um tanto exaltado, entre o desmedido e o genial, absorto por sua arte, distante das imposições castradoras do cotidiano. Ao lado de Wolf Maya, Gustavo Engracia apresenta sob riqueza de cores o polêmico Anton Shindler, um misto de aprendiz, criado, secretário, amigo duvidoso e primeiro biógrafo de Beethoven, um pêndulo alucinado dividido entre a solução dos encargos da vida e o êxtase diante do inefável da arte. Tadeu Aguiar, num desempenho pródigo em humor e malícia, revela o obtuso Diabelli, músico medíocre arrogante. Ele seria um vendilhão da arte, artífice da nascente indústria cultural, capaz, contudo, de provocar, com a sua valsinha, uma composição esquemática a principio vista por Beethoven como um “remendão de sapateiro”, com a sua insistência e o seu dinheiro, a criação de uma das maiores obras de arte da música ocidental, as 33 Variações.

 

Sim, a proposta exige um palco de verdade, um teatro-casa-de-arte, o texto é mais do que uma peça, trata-se de um manifesto teatral. O Teatro Nathalia Timberg, emocionante presente para nossa sofrida e inculta cidade, dispõe do porte adequado para o projeto. Nele, o ardiloso cenário de J.C. Serrone funciona como um engenho de arte capaz de traduzir uma extensa galeria de ambientes, surge como hábil materialização cenográfica da ideia de variação. O desafio para a iluminação é radical, mas Aurelio De Simoni responde com maestria, notável percepção das necessidades dramáticas e dos agudos problemas técnicos. Os figurinos de Tatiana Rodrigues situam perfis, situações e épocas, num diálogo corrente com o visagismo preciso de Marcelo Dias.

 

Vale reconhecer a grandeza deste acontecimento teatral. Se este rol de excelência não for considerado suficiente para ir ao teatro, atenção. As cenas da peça, a ação dramática, o clima teatral arrebatador não acontecem sós. As 33 variações estão lá, ao vivo. E a sua presença se faz graças a uma virtuose brasileira admirável, a exemplar pianista Clara Sverner. Eventualmente, a artista será substituída por Silas Barbosa, considerado um dos nomes mais brilhantes da nova geração de pianistas. E aqui a montagem revela uma outra busca, a da projeção de novos talentos, materializada também no elenco de apoio, composto por dez atores estudantes de teatro, especialmente importantes para o desenho da massa coral, dramática e cantada.

 

Não é um programa para quem não gosta de arte ou tem a sensibilidade teatral embotada por um gosto féerico de mercado: o centro da cena é algo novo, uma ousada visão do teatro como deliberada aventura cultural. Ao estrear na Broadway, a peça despertou ácidas críticas, norteadas pelo conceito de teatro bem feito – o exemplo mais interessante a respeito deste tipo de reação pode ser conferido na crítica do poderoso Ben Brantley, do New York Times, disponível na internet (http://www.nytimes.com/2009/03/10/theater/reviews/10thir.html?_r=1). A voz influente ecoou pelo mundo em vários textos de críticos menores, menos dotados e mais preguiçosos.

 

A principal queixa, no caso, seria a falta de um certo tipo convencional de acabamento da dramaturgia, localizável em outros (!) autores, ao lado do uso de uma trama melodramática (o caso da musicóloga) em paralelo com uma situação histórica nobre (Beethoven). O ponto de vista merece ser citado por sua recusa em debater o centro da proposta, a ideia de variação. Vale, portanto, correr para o teatro para encontrar um raro momento entre nós, em que o teatro se apresenta sob uma cerrada discussão conceitual, uma generosa entrega à arte e uma deliberada busca do fato cênico como ato de cultura. Que ninguém tenha dúvida: temos teatro.


Ficha Técnica
 
Autor: Moisés Kaufman
Tradução: : Nathalia Timberg
Concepção e direção: Wolf Maya
Elenco: Nathalia Timberg, Wolf Maya, Tadeu Aguiar, Lu Grimaldi, Flávia Pucci, Gil Coelho e Gustavo Engracia
Elenco de apoio: Jovens atores estudantes de teatro.
Pianista Convidada: Clara Sverner
Pianista: Silas Barbosa
Cenografia: J. C. Serrone
Iluminação: Aurelio De Simoni
Figurinos: Tatiana Rodrigues
Visagismo: Marcelo Dias
Direção de produção: José Luiz Coutinho
Fotos: Guga Melgar
Foto publicada: Airton Silva
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção executiva: Larissa Benini

Serviço
33 Variações
Local: Teatro Nathalia Timberg
Endereço: Avenida das Américas, 2000 – Freeway – Barra da Tijuca – Telefone: 3388 5864
Gênero: Musical Erudito
Temporada: De 22 de janeiro até 17 de abril
Horários: Sextas e Sábados, 21h – Domingos, 19h
Duração: 120 min.
Classificação: 14 anos
Preço: R$ 100,00 (Plateia) – R$ 60,00 (Balcão)
Capacidade: 400 lugares
Funcionamento da Bilheteria: De terça a domingo das 13h até às 21h
Vendas: www.ingressorapido.com.br