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Pelados de ideias

 
Um debate de temperatura elevada sacudiu o facebook há pouco tempo: dá para considerar como teatro peças em que a representação envolve o simples ato de se apresentar pelado? Ou de praticar em cena atos prosaicos de, digamos, descontração física? Para esclarecer a dúvida, vale exemplificar – no caso de maior repercussão, uma montagem que teria sido patrocinada pelo SESC/SP, a apresentação consistiria, segundo o que se propagou, em atores nus que exploravam o ânus do colega de cena mais próximo. O debate virtual, claro, até foi divertido, mas se reduziu mesmo ao confronto de visões morais singelas.

 

Vamos combinar: foi um pouco triste. Para quem entende o teatro como uma forma material, sensível, expressiva, de sintonia com a racionalidade, posto que implica num conceito de vida e de mundo, a situação seria mais do que risível, beiraria o ridículo. Pois, para este ponto de vista interessado no teatro como arte, a tendência, tão nua, ilustraria aquilo mesmo que estava em cena: nada.

 

Assim como os corpos vestiam nada e se propunham a explorar basicamente o impacto deste nada, assim não existiria em cena arte nenhuma, apenas desperdício de dinheiro público e do tempo alheio. Há, contudo, o argumento contrário, possível eco de um clamor dos novos tempos, ansiosos por novas formas e novas faces da arte.

 

Diante do assunto, o coro radical não economiza energia, luta a favor da obra de arte que se nega, se impregna de cotidiano, de banalidade, preocupada em derrubar a retórica e o edifício ocidental. Derrubar tudo, sob um tom de choque ou de demolição. Para este ponto de vista, as cenas transgressoras seriam essenciais, exemplares, pois nelas estaria sob o foco a crueza do existir, a valorização do humano mais cotidiano, o abandono de qualquer metafísica. O lúdico ou o dilacerante seriam o tom, ultrapassariam o poder da palavra, se revelariam em puro corpo – de acordo com a poética acionada pelos artistas envolvidos. Se estas cenas são para esquecer, descartar, a sua razão de ser logo surge cristalina, elas mimetizam a vida passageira. Tal não se dá porque elas são puro lixo, como proclama a oposição.

 

Vale destacar uma particularidade interessante: o tema não está sob o foco apenas por aqui, também esteve em destaque na França. A diferença é que, aqui, na cena tropical, estamos num lugar considerado, em boa parte do mundo, como um arremedo de paraíso repleto de perversões – a pátria do pecado. Portanto, para muita gente na face da Terra, nós figuramos desde sempre como criaturas dedicadas ao estado de nudez e às ocupações apropriadas a esta condição.

 

Estaríamos numa espécie curiosa de limbo, fora da cultura ocidental. Assim, talvez para dar alguma razão aos poderosos que nos reduzem a pigmeus existenciais, o debate segue aqui cores locais, naturalizamos o tema e seguimos argumentações mais moralistas e exacerbadas, tudo é mais direto. Uma dificuldade nossa é a condição da vida teatral brasileira, em que as tradicionais divisões entre o teatro convencional, mais formal, e a vanguarda, mais jovem, são quase inexistentes. Como o poder teatral reifica e mercantiliza, ao se integrar ao centro do mercado o experimentalismo se exaure, se consagra como deserto de ideias.

 

No teatro francês, portanto, o debate esteve recentemente sob os holofotes, mas, neste caso, o fato foi discutido sob espessa aura acadêmica, pois trata-se do palco da palavra e da pátria da cultura. A roupa que falta sobre os corpos não falta no debate, vestido de muitas ideias. O penúltimo número da revista théâtre(s) – magazine de la vie théâtrale, edição de outono de 2015, traz como dossiê um caderno Corpo e Nudez. A foto da ilustração acima é uma das principais fotos da edição, do espetáculo Bad Little Bubble B., de Laurent Bazin, de 2013.

 

A peça, uma montagem impactante, apresentada no Teatro La Loge, uma pequena sala multiuso dedicada à invenção da cena, abordava a nudez e a pornografia ao redor da figura feminina. Uma encenação pródiga em cenas fortes. Além dos corpos nus da foto, como se fossem primatas, uma cena divulgada na internet mostra as atrizes nuas arremessando os próprios corpos contra uma parede.

 

Segundo o diretor Laurent Bazin, o cálculo era da ordem da política do corpo, não da política imediata. A orientação, apesar da exposição radical das atrizes, era se afastar da pornografia, da dramaturgia do strip-tease, da escalada do desejo. A peça alcançou sucesso – ao menos na sala com lotação de cerca de oitenta lugares – e recebeu o Prêmio do Júri do Festival Impatience 2013. O festival se dedica ao teatro emergente, a cena capaz de trazer inquietude, desenquadrar os olhares.

 

Este é o ponto. A extensa pesquisa realizada para a montagem foi orientada para visar a temporalidade do olhar, a partir de um uso grotesco do corpo, um meio para deixar o espectador em estado de constrangimento. A percepção do obsceno aconteceria distante da fruição da nudez como prazer. Formado em filosofia, Bazin concebe trabalhos contundentes sob uma abordagem muito intelectual. E teatral – alguns críticos ressaltam o seu talento como criador de imagens e artista da luz. Este recurso – a luz sobre a pele feminina – foi o recurso capaz de deslocar os códigos e a estética do peep-show, a favor de uma teatralidade mais radical contemporânea, de apresentação.

 

Longe de buscar respostas ou de tentar formular uma visão autoritária do mundo ou do tema, o diretor revela, em entrevista concedida a Pierre Notte, nos cadernos para a imprensa publicados pelo teatro, os seus caminhos de criação. A partir dos seus pensamentos, se poderia associar a sua prática a uma máxima do histórico diretor Louis Jouvet, segundo a qual, no teatro, não há nada para compreender, mas tudo para sentir. O ponto de partida teria sido exatamente o desejo de encontrar a liberdade de criar sem limites, para o pleno exercício do ofício, traduzido como bolhas livres que se seguem, mas afinal subversivas como o bad e o B. do título insinuariam.

 

Segundo Bazin, o belo permite conter a complexidade numa forma, ao mesmo tempo impedindo-a de se reduzir a um slogan, afastando-a da caricatura. Assim, frisou uma condição de trabalho curiosa – “Quanto mais longe íamos nas audácias de cena, mais tínhamos necessidade de nos reencontrarmos e de nos reafirmar como seres pensantes, responsáveis.” Portanto, o trabalho de pesquisa e de documentação interrogava o estado de abandono propiciado pelas improvisações. A rigor, uma carnalidade teórica radical…

 

Há, portanto, uma perspectiva de debate bastante densa. Patrice Pavis, no Dicionário de Teatro (1999, 263), sustenta um ponto de vista contundente – o nu “é um escândalo semiológico: ele nos lembra oportunamente que a cena não é só representação e signo do real, mas convocação e ostensão deste real.” Fora a naturalidade imediata do teatro erótico, avessa ao debate desenhado, Pavis situa com objetividade os problemas inerentes ao nu em cena e dimensiona, hoje, distantes dos problemas éticos do passado, os caminhos polarizados, entre o prazer e a morte, decorrentes da nudez cênica.

 

Mas existem sub-tons radicais decisivos a considerar. O dossiê da revista théâtre(s) fornece um vasto repertório ao redor do tema, além de um inventário sumário do nu em cena na história do teatro ocidental, da antiguidade ao nosso século. Um marco na história do teatro francês contemporâneo, o Fausto, de Goethe, direção de Antoine Vitez, de 1981, provocou um verdadeiro cenemoto – um terremoto da cena.

 

Sob o governo Mitterrand, o Ministro da Cultura Jack Lang nomeara Vitez diretor do Théâtre National de Chaillot. Diretor do teatro e encenador do texto, ele assumiu o papel de Fausto idoso e apareceu em cena, saindo de uma grande mala, inteiramente nu. Para o diretor, a opção significou mostrar o Fausto frágil, despossuído, nu como todo ser humano está no ventre da mãe. A beleza da intenção não poupou o escândalo, monumental, ainda que se observasse o sentido profundo da declaração. Era um homem de teatro, ator, reduzido em cena à sua menor potência humana, entregue a um pacto visceral com o teatro que recebia para liderar. Mas a escolha não fez escola, o nu frontal masculino estava bem longe de ser uma possibilidade cotidiana, em particular no centro do poder teatral francês.

 

Ainda que hoje a nudez não provoque mais o mesmo impacto, a mesma concepção diante do frágil apareceu em cena em Le Roi Lear, de Shakespeare, direção Olivier Py. A montagem foi o grande espetáculo do Festival de Avignon, em 2015. Na verdade, a imensa repercussão da peça ultrapassou o problema da nudez, muito embora a nudez tenha sido visto como gratuita por muita gente lúcida. A plateia ficou mortalmente dividida entre vaias e aplausos e muita gente abandonou a representação antes do fim, considerando-a detestável em tudo – na França, o teatro ainda consegue acirrar os ânimos.

 

Afastada toda a polêmica – imensa – gerada por uma montagem em que o texto foi pretexto para a expressão de ideias controvertidas do diretor e o uso de efeitos cênicos mirabolantes, restou ainda o nu. Pois na cena do texto clássico, traduzido e adaptado pelo diretor, o desespero e a miséria do rei foram traduzidos pela nudez, compartilhada também por Edgar. Nus em cena, os atores traduziam, segundo o diretor, a ruptura social em causa para os personagens. O objetivo era oferecer, por este meio, a nudez interior, através de um signo exterior forte – é claro que muita gente boa refutou a ideia, considerada apelativa, e desqualificou a solução.

 

Os exemplos relativos à presença do nu em cena poderiam compor uma longa lista. O roteiro da revista é impressionante. Não vou fazer a sua enumeração, mas ela importaria para sustentar um raciocínio simples. E melancólico. Ainda que tenhamos um povo de extremo poder criativo, dotado de uma riqueza inventiva impressionante, parece que o nosso mundo teatral persiste espelhando a cena estrangeira, em particular a cena francesa, sem que se tenha, a reboque, os debates que lá envolvem as ousadias e as novas proposições. Importamos cena de impacto para calar as sensibilidades e ocupar o centro da criação, não para desencadear trocas de ideias.

 

Talvez o trato da nudez devesse conhecer, aqui, alguma diferença, numa terra com tanto sol, tanta praia, tanto calor e tanta irreverência, tão distante do inverno de clima e de alma do hemisfério norte. Desde as grandes navegações os colonizadores lutam para cobrir os nossos corpos e resistimos, andamos nus através dos tempos, adoramos andar pelados.

 

Seria interessante, para o nosso teatro, em lugar da transposição mecânica das soluções e dos truques europeus, pesquisar a história dos nossos desnudamentos, interditos e pudores. Ao que parece, a cena de lá funciona assim, é movida por uma inquietude interior forte, forte o bastante para transbordar e sacudir o entorno, um jorro de objetos de arte e de ideias, razão para o desconforto do olhar. Quem sabe copiaríamos, mas com uma dimensão maior de conceito, um debate mais instigante, além do confronto de pequenos pareceres morais.