Crítica do espetáculo Nem um dia se passa sem notícias suas

Além das máscaras sociais e das armaduras protetoras cotidianas, vivemos enredados em um tecido delicado de sentimentos, uma espuma de sensações. Lembranças, vivências, alegrias, dores, machucados, dilaceramentos, perdas e choques se mesclam aí, participam da nossa definição, estruturam o que somos. Algumas dores são tão profundas que acabam construindo uma maneira de ser interior – e, se descuidamos, elas nos convidam para dançar, tomam o salão e não deixam espaço para mais nada. Reconhecê-las, aceitá-las e libertar-se é um grande desafio; a via de redenção pode ser um presente da arte, da poesia.

Este percurso existencial impactante constitui a espinha dorsal do novo texto da dramaturga Daniela Pereira de Carvalho, uma obra delicada, sutil, comovente por sua capacidade de inventariar uma espiral de dor e, afinal, apontar a possibilidade de saída de impasses emocionais decisivos sem pieguice ou melodrama. A autora recorre a citações poéticas, chaves preciosas para que se pense o seu texto – desde Sylvia Plath, de quem tomou de empréstimo a frase do título e algo do sentido latente da trama, até Drummond, cultuado pelos personagens da peça. Mas há também a música popular brasileira e universal, do nosso tempo.

O enredo joga em cena um médico em sua maturidade, cirurgião de transplantes cardíacos, mais uma metáfora do que uma realidade, diante da necessidade de, após a morte do pai, o último parente de seu núcleo familiar original a falecer, desmontar a casa da família, o lar em que foi criado e onde viveu grandes dilaceramentos. Ele contracena com o passado, com o seu próprio mar interior, enfrenta o turbilhão dos seus sentimentos; através das figuras do irmão e do filho, a sua história pessoal se instala em cena e se revela como um embate decisivo com a morte, o apagamento, a supressão. A frase de Sylvia Plath foi retirada de um texto que sugere um grau absoluto de luta para a auto-afirmação da pessoa diante do adverso, da liquidação (e este poema integrava o livro que ela deixou pronto ao se suicidar). A peça de Daniela, no entanto, flui em outro sentido – através do lirismo de Drummond, do lúdico da canção popular e do simbolismo do cirurgião-salvador-de-vidas, ela se oferece como uma ode lírica de celebração da existência e da alegria de viver. Apesar das indicações feitas aqui e do contorno geral do assunto, afinal a morte, a encenação tem um efeito libertário irresistível: é solar.

E tal se dá em grande parte também graças à profunda compreensão do texto pelo diretor (Gilberto Gawronski). Ele levou os atores a um delicado jogo de cena em que predomina a exposição temática, demonstrativa, em lugar de qualquer extravasamento emocional exacerbado. E concebeu uma cenografia de forte colorido simbólico, capaz de, em colaboração com a luz (Paulo Cesar Medeiros), de extremo requinte, materializar uma espécie curiosa de não-lugar, um espaço sentimental inefável, pura forma de expressão. Nesta tela curiosa, os atores se revelam senhores das palavras, maestros dos sentimentos, donatários sensíveis do espaço – uma bela alquimia de emoção e razão, com figurinos (Nelo Marrese) adequados às coordenadas da ação.

Edson Celulari desenha com segurança absoluta o guerreiro lírico destemido que se põe à prova diante do massacre das emoções e aceita, afinal, a morte como parte do jogo da vida. A trajetória se revela pungente em dois instantes cruciais – o momento em que dança para o irmão e a grande fala em que descreve o que seria a atitude do cirurgião em campo, a cavaleiro da vida, cenas antológicas. Pedro Garcia Netto, em papel duplo, sugere o irmão evanescente, um ser que é a presença opressiva da memória e do mundo afetivo interior, em um malabarismo admirável de intensidade e apagamento; e impõe um outro ritmo à cena como o filho; objetivo, ele surge como uma chamada concreta para o jogo da vida. A relação dos dois atores no palco, a um só tempo intensa e lúdica, determinada por um golpe de teatro muito interessante que estrutura todo o texto, obedece a uma arquitetura do gesto preciosa, segue inspirações de notável sutileza (direção de movimento de Márcia Rubin).

Em resumo, a montagem é imperdível, um programa tão delicioso como a vida. Afinal, o espetáculo consegue oferecer um painel reconfortante do embate de forças radicais que nos estrutura, faz com que apazigüemos um tanto o fluxo dinâmico que teima em nos arrastar em direção às sombras – a sua poesia permite que brindemos, ainda uma vez, com a própria razão de ser da existência.