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Andanças no coração do povo

 
Por tantos palcos anda o musical, tantos caminhos, que o novo chega de mansinho, quase sem alarido, sem anunciar. Agora, a mudança delicada é o colorido dinâmico que pode ser conferido às biografias musicais, um subgênero de extremo sucesso aqui, odiado por mal humorados de plantão.

 

Para ser bem sincera, bem direta e dizer tudo numa nota vibrante: Andança – Beth Carvalho, o musical, cartaz no Teatro Maison de France, é um dos espetáculos obrigatórios do momento. Traz contribuições importantes para o gênero, para a afirmação do formato da biografia musical. E, mais do que tudo, é um grande sucesso, uma daquelas peças impregnadas da mais pura emoção, imperdível, linda de ver.

 

A beleza começa no conceito: a textura da nossa alma urbana está em cena. Sim, somos nós. Uma síntese esperta do nosso jeito de ser, de umas décadas para cá, emana do palco, envolve a plateia. Duvido que alguém saia do espetáculo sem chorar, sem se emocionar – a não ser que o sujeito pertença à tal brigada dos mal humorados perdidos para a vida, seres irrecuperáveis lançados aqui por erro da cegonha.

 

A maioria, brasileiros nascidos com música no coração, vai vibrar mais do que couro de tamborim em Ramos, pois a cena é um redemoinho de vivências intensas do nosso tempo e do nosso lugar. A equipe percebeu o significado maior da arte de Beth Carvalho: Beth Brasil. E jogou em cena a sua biografia como fluxo de sua história de arte, uma imagem musical pulsante do nosso tempo.

 

Assim, para expor o perfil da artista, um generoso painel se desdobra no palco. O gosto doméstico por arte, o xodó com o violão, a canção de tom sentimental, o multifacetado universo do samba, o batuque de quintal e de terreiro, a música patriótica, o carnaval, o rádio, os cantores do rádio, os programas de auditório, a canção de protesto, a bossa nova, tudo aquilo que envolveu Beth Carvalho e nos permitiu, nos últimos tempos, exercitar nossa estranha pulsação cantante e malemolente, figura no espetáculo.

 

O texto, de Rômulo Rodrigues, além de ser estruturado ao redor de um conceito límpido a respeito do significado da cantora, apresenta duas qualidades notáveis. De saída, o texto é uma partitura dramática, com libreto e partitura fundidos e bem resolvidos, usando a fortuna musical que emoldura a artista. Em segundo lugar, ele não pretende, em qualquer momento, disfarçar a sua condição de biografia, documentário. Assim, em lugar de buscar expedientes arbitrários ou ingênuos para narrar a vida da cantora e associar as canções à sua vida, simplesmente ele conta a vida, impregnada pelo acervo musical pertinente. E pelo panorama da época.

 

Desta forma, ninguém sofre o martírio de ver explicações apelativas ou artificiais para situar cada passo e cada sucesso. Diante do público, a cena é ação e se faz música, simples assim. As cenas musicais são cenas de musical, não são evocações de show, pois as canções encerram um sentido histórico cozido à trama e valem por isto.

 

A solução inteligente acontece também como resultado da inspirada direção de Ernesto Piccolo, em afinação precisa com a direção musical, brilhante, de Rildo Hora, também responsável pelos arranjos instrumentais. Houve uma leitura requintada do texto original.

 

O grande achado da dupla nasceu da habilidade para conciliar o jogo entre individualidade e multidão. Quer dizer, assim como Beth Carvalho se notabilizou como artista popular e se revelou capaz de exercer liderança em momentos musicais de grande repercussão, como os festivais e o carnaval, assim o espetáculo joga com a performance individual e as grandes massas de atores, os solos e os conjuntos de sonoridades.

 

Quer dizer, esta visão domina tanto nas cenas de representação como nas cenas musicais, de canto e música. Trata-se de um acerto que se prolonga na preparação e no arranjo vocal, de Pedro Lima, e na direção de movimento, de Sueli Guerra.

 

É impossível, no entanto, dimensionar o alcance deste conceito nestas parcerias sem considerar a solução cenográfica. O cenário de Clívia Cohen, uma grande estrutura em dois planos, criou uma espécie de espaço musical de grande impacto – de certa forma, a cena acontece como se, no inicio de tudo, fosse a música. Situados no plano superior da cena, revelados ou ocultos por delicada tela ao longo da ação, os músicos insinuam a ideia de reger a vida que passa, abaixo, pequenos pedaços do existir.

 

No plano inferior, módulos portáteis, móveis, realistas, constroem os diferentes lugares da ação de forma dinâmica e objetiva. Assim, dentro de uma espécie de bolha existencial regida pela música, está tudo lá – a casa da infância, a escola, a Radio Nacional, os palcos, os palanques de protesto, os shows, os terreiros de samba, as ruas cantantes, até mesmo o quarto de hospital.

 

A trama do musical, como se pode deduzir, envolve um rol impressionante de eventos e de celebridades. Trata-se efetivamente de biografia cênica, teatro documental, a ação se desenvolve da infância de Beth Carvalho até a atualidade. Focaliza-se a casa da família, com o clima musical da época, ditado pela Radio Nacional, e com os debates políticos de um pai engajado. Envereda-se pela expansão musical dos anos 1960, com a televisão, os festivais e a ditadura. Retrata-se a música de resistência, do Grupo Opinião, os blocos históricos Bafo da Onça e Cacique de Ramos, a Mangueira, todo o fascínio do morro e do carnaval, a consagração da cantora.

 

Há, contudo, um contraponto cômico irresistível. Para acentuar o contorno deste mundo musical, as cenas são costuradas por intervenções narrativas hilárias, dotadas de um clima peculiar de mundinho cotidiano, graças à presença da fã fervorosa, Isaura, fofoqueira, leitora de revistas sensacionalistas, dependurada no telefone em louvores apoteóticos à estrela, desempenho caricato irresistível de Ana Berttines. Também através da fã – suas maneiras, jeito de falar, modos de vestir, gostos e modas domésticas – a peça traduz a passagem do tempo.

 

Na verdade, esta preocupação percorre toda a montagem: de acordo com a situação dramática, a época, a posição social, a personalidade, os integrantes do grande elenco desfilam roupas e estilos de ser diferentes. O figurino realista, de excelente concepção, assinado por Ney Madeira e Dani Vidal, traduz os climas com exatidão, por vezes recorrendo a detalhes preciosos impressionantes, ao mesmo tempo em que propõe roupas básicas bem resolvidas para os momentos de coro.

 

Aliás, todo o espetáculo gira ao redor do jogo permanente entre indivíduo-e-massa, particular-e-geral. E este jogo adquire espessura considerável por causa do contraste entre o fundo da cena e cada pessoa e grupo; ele nasce, em grande parte, da escolha de cores dos figurinos face ao tom inefável do cenário. Claro, o eficiente desenho de luz, de Djalma Amaral, desempenha papel de primeiro plano nesta construção.

 

Para dar conta da força da montagem, no entanto, é preciso insistir na qualidade da direção. Ernesto Piccolo possui grande experiência e habilidade para o desenho de “cenas de multidão”, antigo termo do teatro para designar as grandes cenas, com muitos atores, vitais para os musicais. Os generosos painéis humanos marcados por ele conciliam as exigências dramáticas com as necessidades do musical, articulam contracena, teatralidade, musicalidade e coreografia.

 

Ao mesmo tempo, há uma direção segura dos atores, movidos por coordenadas funcionais eficientes para identificar cada expressão particular no todo. A liderança é de tal ordem que mesmo a pouca experiência, visível em alguns intérpretes, se transmuda em garra, dedicação.

 

As três atrizes responsáveis pelo desafio de encarnar Beth Carvalho, uma das personalidades mais marcantes da música popular de nosso tempo, assumem a tarefa com muita valentia. Se há alguma hesitação na menina Beth, de Jamily Mariano, ela é compensada por sua candura, qualidade necessária para apontar o amor precoce pela arte.

 

Em compensação, Stephanie Serrat, dotada de bela voz, arrasa como a jovem Beth Carvalho: esbanja carisma, garra, força cênica e sedução. A liderança, a nobreza de horizontes, a empolgação e o espírito de luta varrem a cena como um furacão, transbordam dos braços abertos e dos olhos brilhantes. Na maturidade, Eduarda Fadini aposta na composição física mais formal, na atitude emblemática, mais contida, talvez uma linha menos esfuziante do que a ideia corrente que se tem da estrela, senhora de tantos momentos decisivos da MPB.

 

Uma tarefa difícil, vale destacar, detalhar a grandeza dos trabalhos de interpretação apresentados na peça, desenhados sempre com rigor, numa galeria muito extensa. Mas é impossível esquecer a riqueza de detalhes do desempenho de Lenita Lopes, como Nair, mãe da cantora, uma construção sutil sensível à passagem do tempo. Ao lado do pai (Mauricio Baduh) e da irmã (Barbara Mendes), a atriz persegue com muita lucidez a ideia de revelar o essencial, o ambiente doméstico acolhedor, seguro, o colo de mãe favorável para a jovem talentosa.

 

O vasto panorama de tipos humanos determina que alguns atores se desdobrem em vários papéis – Maurício Baduh domina a cena como o Chacrinha, Rebeca Jamir embriaga a plateia com uma Maria Bethania antológica. André Muato emociona a sala ao materializar a força tímida de Milton Nascimento estreante. Leo França (Cartola) e Douglas Vergueiro (Zeca Pagodinho) honram o perfil dos homenageados. Em todos os personagens históricos domina um estudo criterioso, atento, distante da caricatura.

 

Vale ressaltar a excelência dos músicos escalados para a cena, feras na tradução de uma linha musical bastante variada. São nove executantes, sob a regência de Rildo Hora, responsáveis por excelente música (Dirceu Leite; Marcio Eduardo Melo; Jamil Joanes; Helb Machado; Charlles Da Costa; Alessandro Cardoso; Mestre Trambique; Quininho Da Serrinha; Jorge China).

 

Enfim, dizer que se trata de uma aula teatral de música brasileira poderia ser uma boa definição para explicar o espetáculo, uma montagem séria, profissional, competente, mais do que correta, irresistível. Só que não, diremos logo, com a voz antenada nos embates do presente.

 

Falar em aula, aqui, soa absurdo: está no palco um senhor teatro, inquieto, palpitante, inovador, perito em propor soluções para um dilema crucial, o problema de fazer o musical brasileiro do nosso tempo. Em lugar de ensinar tradições, soluções escolares, Andança – Beth Carvalho, o musical entrou na roda para mostrar um caminho novo para o amor à música no palco.

 

O objetivo é demonstrar como certas personalidades, fortalezas humanas, dão música, dão samba e, melhor, dão teatro. Grande teatro. E revelam muito da fibra de luta que tece a alma do brasileiro. Quer dizer, a montagem vem mostrar como as biografias musicais podem ser resolvidas com excelência, podem propor delicadamente um teatro que vaga em verso e sabe onde vai chegar, enfim – no coração do povo.


Ficha Técnica
 
Texto: Rômulo Rodrigues
Direção: Ernesto Piccolo
Direção Musical e Arranjo Instrumental: Rildo Hora
Preparação Vocal e Arranjo Vocal: Pedro Lima
Elenco/Personagens:
Stephanie Serrat – Beth Carvalho jovem
Eduarda Fadini – Beth Carvalho madura
Jamilly Mariano – Beth Carvalho criança
Ana Berttines – Isaura
Lenita Lopes – Nair, mãe de Beth
Mauricio Baduh – João, pai de Beth / Chacrinha
Andre Muato – Nelson Cavaquinho / Milton Nascimento / Arlindo Cruz
Paulo Ney – Martinho da Vila e outros
Rodrigo Drade – Flavio Cavalcanti e outros
Andre Luiz Rangel – Edson Cegonha e outros
Barbara Mendes – Vânia, irmã de Beth / Marlene e outros
Rebeca Jamir – Maria Bethania / Nora Ney e outros
Renata Tavares – Carmelia Alvez / Porta Bandeira e outros
Flavio Mariano – Jamelão e outros
Wal Azzolini – Clementina de Jesus e outros
Tathiana Loyola – Aracy de Almeida e outros
Cesar Soares – Tibério Gaspar e outros
Douglas Vergueiro – Zeca Pagodinho e outros
Késia Estacio – Prof. Julieta / enfermeira e outros
Leo França – Cartola / Silvio Caldas / Danilo Caymmi e outros
Leonan Moraes – Rildo Hora / Mestre Sala e outros
Tomaz Miranda – Paulo Rocco / Edmundo Souto e outros
Lucianna Vieira – Emilinha Borba e outros
Músicos:
Dirceu Leite – sopros
Marcio Eduardo Melo – teclados
Jamil Joanes – baixo
Helb Machado – bateria
Charlles Da Costa – violão
Alessandro Cardoso – cavaquinho
Mestre Trambique – percussão
Quininho Da Serrinha – percussão
Jorge China – percussão
Direção de Movimento e Coreografias: Sueli Guerra
Som Design: Marcelo MDM
Cenografia: Clivia Cohen
Figurinos: Ney Madeira e Dani Vidal – Espetacular Produções & Artes
Iluminação: Djalma Amaral
Diretor Assistente: Marcio Vieira
Direção de Produção: Ana Berttines e Rômulo Rodrigues
Realização:PRAMA COMUNICAÇÃO

Serviço
Estreia para convidados: 09 de setembro (4ªf), às 20h
Estreia para público: 10 de setembro (5ªf), às 20h
Local: Teatro Maison de France
– Avenida Presidente Antonio Carlos, 58 – Centro / RJ Tel: 21 2544-2533
Horários: 5ª a sábado às 20h e domingo às 18h / Ingressos: 5ª e 6ª R$90,00 e R$45,00 (meia entrada); sab e dom R$100,00 e R$50,00 (meia entrada) / Horário bilheteria: 3ª a domingo, a partir das 14h / Formas de Pagamento: na bilheteria dinheiro e cartões débito (vendas também por ingresso.com e 4003-2330) / Duração: 110 min (com intervalo) / Capacidade: 352 espectadores / Gênero: musical / Classificação: livre / Temporada: 10 de setembro a 31 de janeiro