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A pura emoção brasileira

 
Existe uma forma brasileira de sentir e de abraçar o mundo. Impregnada de afeto, franca, bem humorada, ela vagueia desnorteada, longe das cidades, banida pela ordem acelerada, mecânica, dos tempos industriais. Mas nem tudo está perdido.

 

Uma amostra deliciosa deste outro mundo se instala na vida de cada um, no teatro, graças a um acontecimento teatral assinado pelo Grupo Bagaceira, de Fortaleza – a montagem de Interior. A proposta é preciosa, revolucionária: mostra como o teatro de pesquisa, de vanguarda, amante da performance e da participação do público, pós-dramático, pode sintonizar em profundidade com a alma do país, o intenso amor à arte de viver que marca a história do povo por aqui.

 

O ponto de partida é este: a apropriação radical de uma poética ocidental, contemporânea, com a promoção de sua aclimatação, numa espécie de invenção tropical. A partir da assinatura do diretor, Yuri Yamamoto, há uma encenação no sentido total do termo, uma cena orgânica, coerente, épica e narrativa, performática. Além da direção, ele criou o cenário, os figurinos e a iluminação.

 

O olhar do encenador, centralizador, permitiu que a pesquisa de formas populares espontâneas nordestinas, desenvolvida pelo grupo, fosse incorporada aos ousados procedimentos teatrais com naturalidade. O resultado honra a trajetória artística da equipe, revela a densidade de trabalho conquistada em quinze anos de estrada.

 

A curta temporada da peça, no Teatro III do CCBB, fez parte justamente da comemoração do aniversário do grupo, comemoração que prossegue com outra montagem. Mas, ainda que ela não esteja em cartaz agora, não vai ficar inacessível, pois o Bagaceira também se notabiliza por ser um grupo de repertório e a proposta voltará a ser apresentada a qualquer momento. Quem perdeu, basta anotar no caderninho e em breve poderá sanar a lacuna. Vale discutir, então, o que o trabalho propõe de tão importante.

 

A cena, despojada, mas eloquente, convida para a intimidade e o aconchego. Duas fileiras de arquibancadas, decoradas com pequenos jardins de plástico e um festival de fitas coloridas, uma de frente para a outra, com uma passarela no meio, como se fosse um mini-sambódromo, abrigam o público sob gambiarras de festa. Dalva de Oliveira ecoa na sala um afeto antigo, impossível, do pequeno grão de areia sonhador apaixonado por uma estrela.

 

E de repente uma velha senhora, muito muito velha, muito mais do que centenária, se achega com um saco daqueles amados pelas velhinhas. O desempenho magistral de Tatiana Amorim impede a classificação, habitual neste tipo de trabalho, como procedimento técnico de composição. Prevalece uma forma de construção da interpretação em que as chaves do desempenho são interiores, vitais, sem qualquer apelo aos truques expressivos exteriores, automatizados. A força do trabalho é de tal ordem que em nenhum momento transparece a juventude da atriz.

 

A caracterização é de impacto, construída em minúcias, dos mais reduzidos detalhes do figurino aos tiques, à voz, à curvatura da coluna e dos ossos todos, até os menores gestos. A roupa é uma profusão de panos, cores, rendas, efeitos. A princípio, o rosto está coberto por uma máscara de pano sugestiva, engelhada, indicativa da idade para lá de avançada. Para a contracena, a máscara se transmuda em arranjo de cabeça.

 

A fala insinua o diálogo desde o início – e depois o espetáculo acabará por se tornar coral, inclusive com música, com a participação de mais uma velhinha e da plateia, além de dois atores auxiliares, Rafael Martins e Rogério Mesquita em desempenhos mais do que corretos. Constitui-se assim um conjunto expressivo inusitado, algo bem além do desenho frio do fato do teatro, com os limites convencionais da representação sacudidos.

 

O texto, de Rafael Martins, colorido pelas pesquisas de campo e pela sala de ensaio, flui sem obstáculo qualquer para viabilizar a construção. Ele mimetiza um falar brasileiro espontâneo, de coração, como as falas de cortesia, de encontro e de zoação, costumeiras nas rotinas cotidianas por todo o território, ali onde prospera o espontâneo e não vigora a opressão da vida mecanizada moderna. De certa forma, há uma viagem ao interior, ao provinciano, ao antigo. E ao ponto sentimental mais profundo: ao interior de cada um.

 

A velha do saco instaura uma desordem afetiva. Identificando-se como uma avó muito velha que se recusa a morrer, por vezes renegada pela neta e por seus descendentes, incapazes de entender tanto apego à vida, ela distribui fatias de bolo e “abre” a sintonia sentimental da plateia. Depois de conquistada a cumplicidade afetiva do público, o papo de varanda é interrompido – a outra velhinha invade o recinto.

 

E mais um notável trabalho de atriz, de Samya de Lavor, se projeta na cena para ampliar a obra de corrosão dos afetos congelados modernos. Enquanto a velha do saco, a avó, procura se esconder, a neta, uma velha velhíssima encarapitada em inacreditáveis saltos altos agulha, se apresenta e estabelece uma outra relação de afeto com a plateia, um olhar mais ácido e mais crítico, pois ela pretende sugerir um diferencial, um compromisso direto com o presente. A caracterização de Samya de Lavor também é impressionante; este fato, somado à excelência da contracena das atrizes, são indícios de uma direção de ator requintada, uma das qualidades do trabalho de Yuri Yamamoto, um diretor capaz de conciliar direção de cena e direção de interpretação, coisa rara.

 

Há um conflito delicado entre as duas velhinhas, explicitado ao vivo, um choque de gerações, digamos. A avó não deseja morrer, a neta não entende os seus motivos, ainda que sofra do mesmo problema. A neta é moderna, tem um radinho, mas já ultrapassou a era do cd, já está antenada com o digital. A situação, considerando-se a idade avançada das duas, é muito engraçada, quebra os limites da representação, permite a abertura crescente de um diálogo palco-plateia. A busca da cumplicidade faz com que logo a comunhão se instale.

 

Este, em resumo, é o jogo proposto: levar o espectador a sair do seu casulo sentimental cotidiano, limitado, preconceituoso em relação aos valores antigos de bem querença e de entrega afetiva, a favor de um indivíduo liberto, integral, emocionado e emocional. A proposta arrebata por sua delicadeza, funciona como uma singela caixinha de música antiga. A música, aliás, surge como ferramenta hábil para cimentar o pacto sentimental – ao lado do diálogo evocativo, ela ajuda a aflorar as memórias afetivas individuais, numa outra revolução, mais próxima do nosso tempo.

 

Afinal as avós são um pretexto, um ardil teatral malicioso. As velhinhas são representações de nós, de nosso interior, maltratado e esquecido, mas que não morre jamais, pois estrutura a nossa identidade. Por isto, na verdade, o público se despede em estado de graça, em todos os sentidos: revitalizado, ele volta para a vida entregue a um sentimento novo, conquistado a partir do reconhecimento profundo de um lugar nacional de encontro de almas e de sensibilidades. Um lugar perdido que, com o Grupo Bagaceira, se revela – sim, ele pode ser potencializado pelo teatro, recuperado sob cores novas, impregnado de alegria e de crença na grandeza da vida. Mais do que nunca, precisamos disso.


Ficha Técnica
 
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Assistência de Direção: Rafael Martins
Elenco: Samya de Lavor e Tatiana Amorim
Atores Contrarregras: Rafael Martins e Rogério Mesquita
Cenário, Figurinos e Iluminação: Yuri Yamamoto
Diretor de Montagem: Ciel Carvalho
Cenotécnico: Josué Rodrigues
Preparação Vocal: Luis Carlos Prata
Confecção de figurinos: Fátima Matos
Direção de Produção: Rogério Mesquita
Produção Executiva: Mikaelly Damasceno
Serviço
Bagaceira 15 anos – Temporada de repertório
“Interior” – de 17 de setembro a 04 de outubro
Horário: Quartas e quintas, às 19h30. Sextas, sábados e domingos, às 17h30 e às 19h30
Local: Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro)
Informações: (21) 3808-2020
Ingresso: R$10,00
Horário da bilheteria: de quarta a segunda, das 9h às 21h
Gênero: Comédia
Duração: 80 minutos
Capacidade: 60 lugares
Classificação indicativa: Livre.