Duas constatações são fundamentais – na Marquês de Sapucaí, cada pessoa vê um carnaval, o seu carnaval. O fato é natural diante da estrutura da festa, de longa duração e de múltiplos apelos em cada desfile, das dimensões da celebração, enorme, agora em grande parte pensada para a TV, com vários efeitos que mesmo o pedestre mais atento não vê, e até do caráter dispersivo inerente ao carnaval, com badalação, fotografias, comes e bebes. Em consequência, a constatação seguinte é resultado natural: esta condição da festa torna, em princípio, todas as premiações bastante discutíveis.

 

O fato é sério e é de tal ordem que muitas vezes eu percebi amigos carnavalescos de peso confusos diante do meu interesse – e até do meu pedido de convite, quando era o caso – para ver a festa do Estandarte de Ouro. O prêmio é cobiçado, mas ele não tem prestígio na comunidade do samba. Considera-se a láurea como um ato político, mas sem expressão para a essência da festa ou da arte. Os seus critérios de julgamento são completamente flutuantes, impressionistas.

 

Dito isto, quero escrever este texto rápido, antes da divulgação do resultado oficial, sobre as minhas emoções diante do desfile deste ano de 2013, um ano não exatamente muito feliz. A névoa sobre a alegria, para a minha visão do carnaval carioca, surgiu em função da inexistência ainda de um modo de gestão do evento que faça justiça à sua importância e às suas dimensões. Quer dizer, o carnaval precisa se tornar bussiness, ainda que o seu motor continue a ser a paixão popular espontânea.

 

Penso que o caminho é bastante simples, ainda que envolva um rol notável de articulações políticas e sociais. É fundamental reconhecer e trabalhar com transparência com os velhos patronos, que inventaram o carnaval do Rio. Não há razão nem sentido em ignorá-los ou supor que a máquina carnavalesca vai se erguer como ato da gerência pública.

 

Ao mesmo tempo, há um custo elevado em pauta, para a atividade – não há outra fórmula para viabilizá-la a não ser através da captação de capitais do jogo social, uma solução que vai contribuir no sentido de instituir o carnaval como atividade econômica autônoma. Este carnaval que passou registrou o inicio deste caminho, em andamento depois de um certo tempo: e foi um carnaval bem triste, em virtude da lista extensa de desfiles com enredo patrocinado, com os financiadores embarcando nos projetos a partir de uma redução dos enredos a uma camisa de força temática absurda.

 

Quer dizer, se uma cidade financia, a escola de samba tem que falar da cidade; ou se o dinheiro vem do petróleo ou do iogurte, deve entrar na avenida o produto. E não o samba. Sob o foco, fica um samba menor, tutelado no pior sentido – logo o samba, manifestação de irreverência da alma. Em lugar de escola de samba, surgem lojas de samba. Este é um dos maiores absurdos da história cultural do país. É um pouco como se, no caso de um músico, mesmo que ele fosse um exímio pianista, para receber a benção de um mecenato ele tivesse que executar ao piano jingles de louvação ao patrocinador. Imagine-se a cena: Nelson Freire ao piano do Municipal tocando modinhas de elogio à linha de produção de uma fábrica de leite ou de agrotóxicos!

 

Ainda assim, fiquei emocionada na avenida diante de alguns desfiles que, espero, sejam os vencedores da premiação oficial. Vou citar de memória, extravasando o fio dos sentimentos, sem propor uma ordem classificatória, ainda que este fluxo espontâneo possa conter uma verdade, uma escolha.

 

O primeiro impacto absurdo, o desfile que me fez ficar arrepiada em vários momentos, foi justamente aquele a propósito do qual eu não tinha qualquer expectativa maior. Foi o desfile da Beija Flor com o seu improvável cavalo manga larga… Um êxtase, uma perfeição, uma fieira inacreditável de belezas e achados, uma demonstração memorável de criatividade, técnica, dedicação, amor, profissionalismo. No meu juízo, a Beija saiu da avenida como campeã absoluta e eu agradecerei sempre à escola as emoções estéticas, sublimes, que este desfile me ofereceu. E eu nem gosto de cavalos!

 

A segunda grande emoção foi o encanto da Vila – um sentimento delicado, sofisticado, de encontro, comunidade, garra. Não é que não exista algo semelhante na escola de Nilópolis, também impactante por seu sentido profundo de comunidade, escola de samba. Mas a Vila surgiu com um tom diferente porque não tem como se apoiar na riqueza e na liberdade de invenção, ainda que a sua carnavalesca, Rosa Magalhães, seja figura consagrada por sua inventividade. Interessa destacar, aqui, a origem comum, salgueirense, dela e de Laíla da Beija. Este colorido da Vila também parece ter sido acentuado graças ao enredo – a vida rural, um dia na vida de um homem do campo – quando a Vila tem também, como bairro, uma nostalgia e uma vontade de ser aldeia. A marca autoral de Rosa Magalhães, detalhista, culta, colorida, sinuosa, mas direta e popular, também tem potencia de impacto, amplificada pelas qualidades do samba. A nota lamentável não pode ser calada: a empresa financiadora, paradoxalmente, é o contrário da vida feliz e saudável dos campos, é a agência da morte para a natureza e a alimentação…

 

Depois, a Unidos da Tijuca. Paulo Barros neste desfile me encantou por ter sufocado menos a escola, o samba, a verve popular, ter reduzido os efeitos e as tiradas de espírito ao motor de tudo: o desfile de carnaval. Mas não dá para esquecer o quão longe a Alemanha, infelizmente, está do universo cultural brasileiro. A Alemanha deu desfile, mas não dá samba… E várias passagens foram bastante discutíveis – ainda que tenha muita graça transformar o pobre do Brecht em autor de um teatro de ladrões, prostitutas e vagabundos! Desconfio que, preservada esta linha, a Tijuca fará um carnaval histórico em breve, quando a invenção delirante do carnavalesco sucumbir aos pés do carnaval.

 

A seguir, o Salgueiro – show de humor, enfrentamento da sandice do mundo atual, gozação, brincadeira e beleza. A qualidade das fantasias, das cores, da arquitetura de tudo foi uma fonte impressionante de prazer exatamente porque o tema era debochado. Ficou alguma sensação de incompletude, no entanto, a falta de algo como a radiografia do nó que escraviza a todos, submete os seres ao ritual de celebrização – pois a escola acaba insinuando que ela própria é o grande famoso e esta observação cria um limite para a irreverência… Talvez o limite tenha surgido do fato de o enredo ter sido, também, na verdade, enredo de encomenda, em lugar de manifestação livre do pensamento.

 

Afinal, em um patamar próximo, três escolas finais – a Imperatriz Leopoldinense, com o seu canto de amor ao Pará estruturado com grandiosidade, beleza e extremo requinte de realização técnica. E semelhantes em pura garra e celebração aos seus bairros, Portela, em um momento de extrema beleza raro nos últimos tempos, homenagem emocionada e emocionante a Madureira, e União da Ilha, em louvação didática e grandiosa ao centenário de nascimento de Vinicius de Moraes. Alguns carros e alas da Portela foram criações para não esquecer nunca mais – a comissão de frente, teatral, carnavalesca e sambista, foi um deslumbramento, o passista Zé Pelintra irresistível, a bateria e a arrebatadora variação de ritmos…

 

De todas as escolas – todas merecedoras de um novo desfile na Sapucaí – a única que não teria tido enredo patrocinado teria sido a Ilha. Vale frisar, porém, que o patrocínio não deve ter sido obtido, mas teve ter sido cogitado e mesmo deve ter sido a mola determinante da escolha do tema. O que não se poderia supor é que ninguém (nossa, que país cruel e indiferente!!) iria se interessar pelo poetinha.

 

E esta chave é a que mas me interessa neste texto – além da estranheza das indicações do Estandarte de Ouro, do Jornal O Globo, que parecem fruto de cálculo político e não de olhar carnavalesco, pois não dá para acreditar que especialistas em carnaval tenham visto mesmo a barulheira confusa das baterias da Mangueira como uma revolução – é urgente abrir uma discussão sobre o que vem a ser financiar o carnaval. O que é o carnaval? O que é uma escola de samba? Escola de samba é uma comunidade que trabalha um ano inteiro e produz uma arte – é uma criação cultural coletiva única.

 

Os empresários, as empresas, os poderes públicos, os gestores de carnaval, os patronos das escolas, os sambistas e os artistas da avenida têm que assumir o valor-arte dos desfiles das escolas de samba como troféu inquestionável da sociedade brasileira, patrimônio cultural raro e único da espécie humana.

 

O patrocínio tem que viabilizar a expressão maior da arte e não submetê-la a uma servidão redutora de seus potenciais. O retorno para o patrocinador virá na quadra, em impressos, nas cartilhas dos desfiles, nas matérias de jornal. E no prazer do reconhecimento social maior, de estar viabilizando uma das formas de arte de mais intenso potencial humano em nossos tempos. Precisamos de carnavais de ouro – e não de carnavalhas, quando a festa popular sofre o corte infringido por instrumentos agressivos de barbeiros insensíveis.