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Amar, verbo impositivo!

Não adianta nem tentar fugir, nem pensar em escapar ou esquecer. Por mais que você corra, tente se esconder ou evaporar, um dia o amor chega e pega a sua alma. E então, flanando sobre a vida transformada em nuvens, você terá a paz ao redor.

Um poeta nosso já proclamou: qualquer maneira de amor vale a pena. Portanto, o amor é livre – tanto pode contemplar o amplo leque de opções humanas, como pode ser uma espécie de estado de amor, quer dizer, amar o  mundo e tudo o que existe ao redor.

Ou amar o pensamento, assim como fez Giordano Bruno (1548-1600). Pode parecer espantoso, para este mundo acelerado de materialidade de hoje, alguém amar o pensamento e lutar por seu amor. Porém, garanto – trata-se de amor legítimo, verdadeiro e nada vai fazer o amoroso se afastar de sua bem querença.

Sim, o caso de Giordano Bruno diz tudo: inteligente, ele começou a pensar cedo, foi tomado de amores pelas ideias e… por elas morreu na fogueira! Sim, foi queimado vivo como herege, punição comum naqueles tempos para quem ousava se devotar à liberdade de pensamento e mergulhava nas loucuras deste estranho amor. Estranho?

Não, não há nada estranho nesta devoção exaltada a algo objetivo, capaz de doar sentido a uma vida. Basta jogar a lupa sobre um flamenguista ou um corintiano para que se perceba como  o ser humano pode ser cooptado por  dinâmicas amorosas peculiares. Nestes casos, times de futebol, ah, sim, bem esquisitas!

No caso do italiano, ao menos o amor incandescente inaugurou um caminho livre, irreversível, este mesmo em que estamos, no qual adquirimos o direito pleno de pensar. Os especialistas polemizam se Giordano Bruno foi queimado vivo por heresia ou por liberdade de pensamento, afinal práticas bem diferentes. Não importa. Seja como tenha sido, o seu ato foi inaugural, nos deixou de herança este amor prazeroso absoluto de que podemos usufruir, dedicado ao ato de pensar fora da caixa.

Vale, então, honrar a arte de amor do nosso patrono: percebermos o que amamos de verdade, enxergarmos claramente em que fogueira nos meteríamos em paz, para defender o nosso amor eterno amor.

Pois eu confesso sem pejo: amo o Cedoc/FUNARTE. Sim, tenho muitos amores, tive muitos amores, mas este amor aí me tira do sério. Por ele, entro na fogueira. Você conhece o cedoc?

Isto mesmo, bem assim, direto em minúsculas, na intimidade… Se a resposta for negativa, desculpe, trate de resolver rápido esta falha existencial imperdoável e vá até lá. Dá para ir on-line. Não se preocupe, não tenho ciúmes e, se você cair de amores também, entenderei.

Por que amar o cedoc? De saída, lá eu vejo que o Brasil é arte, muita arte. Vejo que a arte é a verdadeira alma do país, nem sempre percebida por seus filhos, aqui e ali acometidos de inexplicável ingratidão. Nas fotos, nos registros materiais das obras, nas partituras, nas palavras, nas gravações… em tudo ali, no imenso acervo, pulsa acelerado um país vocacionado para o belo.

O nosso namoro começou discreto, singelo, nas páginas de peças de teatro fundadoras de uma sensibilidade nacional. Sim, foi romance de biblioteca. Logo se ampliou para um casamento ardente com grupos e companhias de teatro, atores, atrizes, autores… vozes múltiplas de uma capacidade criativa impressionante. Que país, este nosso! Que povo potente! Quanta arte…

Tornei-me devota – muito mais dedicada do que qualquer torcedor fanático de qualquer time. Nada espantoso: pois asseguro que, se cada um fizer uma visita e passar os olhos pelos tesouros deslumbrantes por lá guardados, cairá enredado na mesma ciranda, para nunca mais se libertar.

O efeito de ouvir a grande estrela Araci Cortes (1904-1985), nos sucessos absolutos que ela criou nos anos 1920, tais como Carinhoso (Pixinguinha/João de Barro) ou Linda Flor (H. Vogeler, Luis Peixoto e Marques Porto), é único: transmuda a alma. Ela cantou de um jeito tal que o país se rendeu a estas canções e elas são cantadas por toda a parte até hoje.

Mas tem muito mais por lá – emoções sutis em altas voltagens. Dá para conhecer – ou reviver – os segredos da Praça Tiradentes, coração da cidade por muitas décadas, graças à arte de Walter Pinto. Isto sem falar no vasto material de teatro do nosso tempo aqui e agora. E circo, dança, ópera, artes plásticas…

Diante deste santuário da sensibilidade brasileira, o que se pode dizer? Quatro palavras apenas: visite, conheça, valorize, ame. Podemos compartilhar este amor, repito, não ficarei melindrada; sempre é bom saber o compasso do coração dos compatriotas, perceber que corre em todos os contemporâneos o mesmo amor à pátria. Na verdade, uma inclinação vertiginosa para o amor, patente na voz de Araci.

Amar é verbo coletivo, não? Afinal, na vida corrente, podemos ter amores outros, múltiplos, diversos – a civilização caminha para um estado de liberdade afetiva muito saudável. Fora dos arquivos e dos armários, a vida ferve e segue solta.

Um novo cartaz teatral, Gays, modos de amar, texto de Flávio Braga sob a  direção de Gláucia Rodrigues, promete justamente diversão e divagação ao redor da instabilidade dos afetos. O foco, contudo, é o mundo gay. Com interpretação de Rafael Canedo, a cena surgirá como uma espécie de diário íntimo.

Ou como uma conversa confidencial com a plateia. O cálculo é o uso do humor para inventariar o cotidiano de amor, sexualidade, alegrias e tristezas de um intenso lugar afetivo  até pouco tempo proibido, escondido. Todavia, o centro da proposta joga com a função do amor na vida de todos: equilíbrio ou desvario, sanidade ou loucura.

Mas, atenção: a reflexão sobre o amor, o encontro, a arte de olhar a vida acontece aqui de forma distante – a peça será vista no youtube. Parece curioso ter o foco tão fechado na esfera íntima, a partir de um suporte distante, digital.

Pois é. A situação denuncia a presença de uma outra forma de amor – o amor ao teatro – tão intensa que se tornou capaz de vencer o cerco da pandemia e domar a frieza das máquinas para acontecer.

Então, surpreenda-se, há muito mais em cena – este louco amor segue atiçando fogo nas ideias e permitiu a criação de um tipo de teatro novo. Trata-se de uma forma digital de teatro na qual palco e plateia se envolvem com bastante intensidade – é o teatro-jogo.

Criado em 2020 pela Armazém Companhia de Teatro, com a apresentação do delicioso Parece loucura mas há método, o ardiloso procedimento retorna em nova edição. Serão novas apresentações em tempo real na web, com novas personagens shakespearianas.

Agora, a versão Parece loucura mas há método – A dois, também sob a direção de Paulo de Moraes, retornará com a mesma proposição. A diversão determina que o desenvolvimento da trama dependa da escolha, pelo público, dos vencedores de cada batalha.

Os atores do elenco notável – Kelzy Ecard, Liliana de Castro, Charles Fricks, Patrícia Selonk, Simone Mazzer, Vilma Melo, Isabel Pacheco, Jopa Moraes, Ricardo Martins e Bruno Lourenço – travam batalhas cênicas ao vivo e cabe à plateia sair da contemplação passiva para decidir as etapas seguintes da ação.

A primeira versão provou que, sem dúvida, o teatro apaixona, pois mais de 7000 internautas do Brasil e do exterior se engajaram nas apresentações. E a presença do teatro acontece, entre outros motivos, graças à inspiração em Shakespeare: agora, estarão em cena quatro duplas de personagens shakespearianas, Cássio e Brutus, Tróilo e Cressida, Ângelo e Isabela, Hal e Falstaff, sob a condução de um Mestre de Cerimônias.

O amor dos atores à sua arte também estará sob prova, eles precisam estar completamente disponíveis, pois não têm papéis fixos. Um sorteio no início de cada apresentação distribuirá os papéis. Assim, a peça começa com 8 personagens  e termina com dois; a cada dia acontecerá uma versão única.

Isolados em suas casas, os atores contracenam nas duplas sem a presença do outro e exploram sentimentos “a dois”, algo um tanto diferente da montagem anterior, centrada no perfil individual. Portanto, vale insistir,  a chave de tudo é, basicamente, a existência de muito amor envolvido: toda a memória afetiva ao redor de Shakespeare estará na baila, toda a potência para criar e improvisar será ferramenta básica.

Sim, este é um momento de amor no mundo, não?  Talvez nasça agora uma necessidade de repensar Giordano Bruno, o seu irresistível amor ao pensamento, o seu pandeísmo e as fogueiras da intolerância. Talvez as pestes aconteçam para isto, para refinar e apurar nossa capacidade de amar.

Chegou a hora de liberar os corações, demonstrar os sentimentos, bailar a favor do vento do encontro. Esta parece ser a ordem do dia. Então, amemos. E demonstremos nosso amor às nossas artes, à memória de nossa imensa capacidade nacional de criar. Criar é um profundo ato de amor. Amemos o cedoc. E que fique bem claro: o teatro é a grande arte dedicada ao exercício do amor. Do melhor amor. O amor à humanidade. Então, teatremos.

FOTO: Othelo, Shakespeare. Companhia Tonia-Celi-Autran, 1956, Teatro Dulcina; em destaque, Paulo Autran (black face), Tônia Carrero e Claudio Corrêa e Castro. Acervo CEDOC/FUNARTE. Fotógrafo não identificado.

 
AME O TEATRO:
DICAS PARA ACESSO – CEDOC-Funarte 1. Depoimento de Araci Cortes
Sugestão: Carinhoso (samba‑choro de Pixinguinha e João de Barro)
http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/discos-projeto-almirante/araci-cortes-1984/#  

2. ACERVO WALTER PINTO:
https://youtu.be/wgpL_S-ycfI  

Gays, modos de amar
SERVICO:  
ESTREIA: dia 04 de setembro (sábado), às 19h
TEMPORADA GRATUITA
ONDE ASSISTIR: YouTube, canal GaysModosDeAmar ()  
FICHA TECNICA:
Texto: Flávio Braga
Direção: Gláucia Rodrigues
Ator: Rafael Canedo
Cenário e Figurinos: Colmar Diniz
Música: Cayê Milfont
Ilustração: Aliedo Kammar
Iluminação: Rogério Wiltgen
Trilha Sonora: Wagner Campos
Programação visual: Sydney Michelette
Fotos: Guga Melgar
Edição: Marcelo Serpa e Ever Santos
Mídias Sociais: Luciano Rezende e Will Vaz
Direção de Produção: Edmundo Lippi
Realização: Rafael Canedo e Edmundo Lippi
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany   

Parece loucura mas há método – A dois
SERVIÇO
Estreia no dia 4 de setembro de 2021.
Temporada: sábados e domingos, às 20h. Até 26 de setembro.
Ingressos pela sympla.com.br/armazemciadeteatro
O espetáculo é assistido online, pelo Zoom.
Valor do ingresso: O público escolhe o valor que desejar pagar, de R$ 10 a R$ 200.
Duração: 70 minutos
Classificação: 12 anos
Ney Motta, assessor de imprensa
contemporânea comunicação  
FICHA TÉCNICA:
A partir de personagens da obra de William Shakespeare
Roteiro: Paulo de Moraes e Jopa Moraes
Direção: Paulo de Moraes
Elenco: Bruno Lourenço, Charles Fricks, Isabel Pacheco, Jopa Moraes, Kelzy Ecard, Liliana de Castro, Ricardo Martins, Patrícia Selonk, Simone Mazzer e Vilma Melo
Música: Ricco Viana
Design gráfico: Jopa Moraes
Colaboração artística: Carol Lobato
Assistente de produção: Malu Selonk
Produção: Armazém Companhia de Teatro
Assessoria de Imprensa: Ney Motta