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Entre letras, palcos e ruínas

Responda rápido, sem parar para pensar: você entende o Brasil?  Você sabe explicar direitinho, tim-tim por tim-tim, a estranha feição desta terra? Bom, desculpe o adjetivo – talvez você, nascido e criado aqui, como eu, não ache o país estranho. Eu acho. Durante toda a minha vida tenho tentado entender este doce rincão. E, com o passar do tempo, cada vez mais concluo que se trata de uma terra muito estranha.

Não, não se preocupe, não pretendo estar certa ou ter razão. Mas a minha sensação é a de que existe um fosso, quem sabe um abismo, entre os seres e o país. Existe uma coisa chamada Brasil, apropriada por grupos coloniais ou neocoloniais ou pós-coloniais, uns depois dos outros e todos juntos e misturados, e esta coisa segue em uma marcha cega, indiferente ao imenso conjunto de seres que habita o chão cansado de desmandos. Que se lasquem todos, o tal país indiferente parece querer dizer…

Vários indícios apontam nesta direção: os que conquistam o poder, detém as rédeas do mando e nos governam, presidem a vida econômica, política e social do país, geração após geração, e não se incomodam com o nível razoável de caos humano que borbulha por todos os lados. Trata-se de um caos herdeiro da escravidão, prática hedionda nunca resolvida. Este caos, de uns tempos para cá, começou a se tornar espantoso, talvez caminhe para deixar de ser razoável, mas nada acontece. Parece aquela cena do Titanic, com os músicos tocando e o baile chique rolando banhado em bom champanhe…

O mais curioso é que não faltaram grandes iniciativas para a mudança, projetos sensacionais de reforma nacional. Todavia, estas vozes sensatas e iluminadas tendem a ecoar no vazio. Às vezes até são abafadas, caladas – veja bem, talvez a Suprema Providência explique, eu não saberia como fazer, mas… porquê no país acontecem tantos acidentes aéreos com pessoas interessantes?  Se olharmos todas as formas nacionais de silenciamento praticadas aqui, talvez tenhamos o título de campeões imbatíveis de liquidação da inteligência.   

Há um exemplo em particular a ser visto. Ele merece atenção especial. Um mecanismo contundente de mudança social, a favor do humanismo e do refinamento das sensibilidades, o teatro, nunca conseguiu se difundir com densidade na sociedade brasileira. Talvez exista uma situação um pouco mais densa em São Paulo, ainda assim sob fraturas e tensões fortes. No resto do país, o teatro se faz como prática circunscrita a um recorte mínimo da sociedade. Apesar da grande expansão do gênero no século XIX, o palco se tornou quase um ofício de iniciados.

E que iniciados! Persistentes, abnegados, eles conseguiram deixar heranças fartas. O que torna tudo muito mais estranho. De um lado, formas de poder cegas, do outro, vidas carentes de humanidade. No entanto, existe uma fortuna teatral de valor incalculável ao redor do povo e do país.

Tente ver com os seus olhos. Há um tesouro fabuloso legado por nosso teatro que se esvai, desperdiçado, relegado ao apagamento. Quando se faz um levantamento do acervo brasileiro de obras, artistas, feitos, propostas, conceitos, o resultado obtido é sempre arrasador – quantos nomes, quantas criações originais e impactantes, quanto pensamento e quanta doação à sociedade…!

Os atores burilaram formas de expressar, ver, sentir, reagir, enfim, todo um universo de maneiras de estar na vida, de interagir em sociedade, que precisam ser cultivadas. Os autores assinaram textos de intenso diálogo com a alma e o espírito da terra. Formas do palco encantaram os olhos devido à sua conexão com o espaço e a visão nacionais. E no entanto o nosso único museu do teatro foi extinto, é mais corrente derrubar teatros do que construir, não se espalha na sociedade a prática do teatro.

Este ano comemoramos o centenário de nascimento do maior autor teatral moderno identificado profundamente com a poética do palco moderno – Jorge Andrade (1922-1984). Nenhum outro dramaturgo brasileiro assumiu o projeto moderno de forma tão deliberada e consistente: nos seus textos, Jorge Andrade mergulhou na percepção do ser no seu tempo e diante dos seus limites sociais, uma forma poética de materializar no palco a aventura humana brasileira. 

Não, não estou desqualificando a obra de Nelson Rodrigues (1912-1980), outro gigante da dramaturgia nacional. Apenas quero apontar a existência de uma profunda diferença de concepção: Nelson escrevia diante de um palco antigo, deliberadamente tentava convencer os leitores de que desconhecia a arte do teatro, encenava o jogo sensacionalista de que se tornara dramaturgo na cegueira,  não vira nem lera nada da estante da arte, era moderno por invenção.

Jorge, ao contrário: formou-se na EAD, consumiu ávido o melhor do TBC, devorou a espetacular dramaturgia moderna contemporânea e dialogou intensamente com os grandes mestres paulistas – Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld. Leu Nelson e ouviu Ziembinski.  Ele se tornou moderno por devoção.

A Moratória, Jorge Andrade, Companhia Maria Della Costa, direção Gianni Ratto, 1955, acervo Tania Brandão.

Portanto, o caminho de Jorge Andrade foi radicalmente diferente – os seus textos abandonaram a sala de visitas, os quartos, saíram das casas. Mesmo quando a trama jogava o foco na família, ela estava sob as rédeas da História, as forças do tempo roíam as paredes e as construções. As suas peças buscaram compreender a grandeza impotente do brasileiro diante do panorama do país. O centro de sua obra teatral, reunido no volume Marta, a árvore e o relógio, tece um arco do século XVII ao século XX de tirar o fôlego.

No entanto, quantas montagens das peças de Andrade você, que lê estas linhas, conseguiu ver na sua vida? Os atores atualmente em atividade nos palcos conhecem esta dramaturgia? Nas escolas, qual o conhecimento que possuímos do autor? O Brasil sabe quem foi Jorge Andrade?

Diante da crise atual da sociedade brasileira, Jorge Andrade seria uma grande referência para a nossa percepção da vida: falência, atos heroicos vazios, prepotência masculina, abnegação e submissão feminina, obscurantismo, misticismo cego, messianismo… Está tudo lá e um pouco mais. Mas está como forma poética, sem panfletarismo ou cálculo sensacional.

Vereda da Salvação, Jorge Andrade, direção Antunes Filho, TBC, 1964, com Ruth de Souza, Lelia Abramo, Stênio Garcia, Raul Cortez… Foto Fredi Kleeman, IDART, SP.

E o mais surpreendente disto tudo? Pois abisme-se, pratique esta qualidade brasileira de sempre cair do despenhadeiro – poucas são as atividades anunciadas até o momento para comemorar o centenário do sensacional escritor. Ao que se sabe, nenhuma montagem de seus grandes textos está prevista. Ele merecia simplesmente o Municipal de São Paulo, com um elenco de estrelas de primeira grandeza…

O SESC São Paulo patrocinará um debate ao vivo na próxima quarta-feira, online, do qual participarei, em companhia da historiadora Elizabeth Azevedo, do pesquisador Mauro Alencar e do escritor Ignácio Loyola Brandão, sob a coordenação do professor pesquisador Antonio Gilberto. E vamos torcer para que outros acontecimentos surjam, quem sabe se possa contribuir para inscrever este teatro tão contundente no cotidiano cultural brasileiro.

Em resumo, o que nos resta é caminhar sobre ruínas, rastejar sob escombros. A sensação de aniquilamento não pode ser contornada – mas não dá para abandonar a arena. Alguma ação positiva se impõe, a favor do bem estar coletivo, pois o futuro será resultado direto daquilo que fizermos ou deixarmos acontecer agora.

A reflexão não é negativa, ao contrário, se ela surge naturalmente diante dos impasses do presente, ela surge como uma estímulo à ação. Ao redor dela foi estruturada uma peça curiosa desde o título bem humorado: Que mundo deixaremos para Keith?.

A partir de uma dramaturgia híbrida, pós-moderna, assinada por Eduardo Nunes em colaboração com os atores Leonardo Corajo e Sérgio Medeiros, brinca-se com a pergunta a respeito de nosso legado para o futuro. A suposição é de que o longevo Keith Jarret, dos Rolling Stones, sobreviverá a todos nós, apesar de sua vida de excessos, e enfrentará dificuldades por conta do caos nosso que deixamos prosperar.

É uma peça do puro presente. Note-se o desenho da concepção dramatúrgica, reunião do autor com os atores, no qual o gabinete incorpora a sala de ensaios, uma forma que ultrapassa o antigo conceito do escritor isolado. O projeto esteve em cartaz online, mas foi revisto para a nova estreia, dia 19 de maio agora, sob forma presencial, no Mezzanino do SESC Copacabana.

Sob a direção de Denise Stutz, os atores vagam entre as ruínas de uma escola e desenvolvem a pergunta do título. A ação envolve diretamente a precariedade da educação e da cultura na nossa sociedade: como pode existir a pretensão de ter vida de qualidade num país em que educação e cultura não são valores coletivos fundamentais?

O foco recai exatamente sobre aquele calcanhar de Aquiles do país, um ponto central que mobilizava a escrita de Jorge Andrade.  Neste descaso institucional com a formação da vida, talvez se possa compreender a vasta miséria brasileira, da boçalidade do poder até a precariedade geral da vida cidadã, passando por todo o vasto cortejo de miserabilidade que povoa o país. Talvez, quem sabe, a chance de entender esta pátria tortuosa passe por aí: localizar a indiferença diante do futuro, quer dizer, perceber a dimensão louca da avidez que imobiliza o presente, instaura a aversão total ao cultivo dos valores maiores da vida.

Foto: A Moratória, Jorge Andrade, direção Gianni Ratto, CMDC, Monah Delacy e Milton Moraes, 1955, acervo Monah Delacy.

Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, direção Antunes Filho, 1993, com Luis Mello.

Homenagem ao centenário do dramaturgo Jorge Andrade

Com Tania Brandão, Elizabeth R. Azevedo, Ignácio Loyola Brandão, Mauro Alencar e Antonio Gilberto

Direção de produção: Celso Lemos.

CPT  Consolação

Duração: 90 minutos 

AO VIVO  teatrobate-papoencontro GRÁTIS

     Canal do CPT_SESC no YouTube

Data e horário: 18/05/2022     Quarta,   das 19h às 20h30.

Sergio Medeiros e Leonardo Corajo, Foto divulgação.

Que Mundo Deixaremos para Keith?

ESTREIA: dia 19 de maio (5ªf), às 20h

Teatro: Mezanino do Sesc Copacabana    

Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana   Tel: (21) 2547-0156

HORÁRIOS: de 5ªf a domingo às 20h

INGRESSOS: R$30 e R$15 (meia)

BILHETERIA: 2ªf das 9h às 16h; 3ª a 6ª f, das 9h às 21h; sab das 13h às 21h; dom das 13h às 20h

DURAÇÃO: 60 min

CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 12 anos

GÊNERO: drama

CAPACIDADE: 60 espectadores

TEMPORADA: até 12 de junho

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Leonardo Corajo, Eduardo Nunes e Sergio Medeiros

Direção: Denise Stutz 

Assistência de direção: Rafa Sieg

Elenco: Sergio Medeiros e Leonardo Corajo 

Vídeos e imagens: Eduardo Nunes

Direção de Arte e Cenário: Taina Xavier

Trilha Sonora: Gui Stutz

Figurinos: Joana Bueno 

Iluminação: Felipe Antello e Vilmar Olos 

Fotos: Guto Muniz 

Mídias Sociais: Rafael Teixeira

Design gráfico: Fernando Alax 

Direção de Produção:  Paulo Mattos

Produção Executiva: Assambé Monteiro e Simone Braz 

Realização: Íntima Cia de Teatro e Sesc Rio

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany