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É o final do Projeto Emoções em Alto Mar?

Sexta-feira, 3 de março. A beleza devastadora do mar de Búzios na tarde quente de verão compensou a espera. Na agenda, a coletiva de imprensa anual de Roberto Carlos. Mas uma série de pequenos contratempos empurrou o horário previsto para além da grade programada – para quem chegou na hora, olhar o mar sob o céu azul cintilante se tornou um convite irresistível, um pacificador encontro com a natureza.

Logo adiante, um gigante branco solene em sua imensa majestade, o navio MSC Fantasia, surgia como contraponto impassível à força do mar, um tanto agitado. Depois do cancelamento em 2021 e 2022, por causa da epidemia de covid, o Projeto Emoções em Alto Mar estava ali de volta, edição 2023, promessa de calmaria para os corações, calmaria tão forte como a visão da paisagem marinha na tarde.

Paz um tanto provisória: o atraso se prolongou ao ponto de gerar uma vaia impiedosa da plateia de fãs, integrantes do cruzeiro convidados para acompanhar o encontro. Inconsoláveis diante da imensa demora, os integrantes da massa presa no teatro expressaram o seu descontentamento quando a reportagem finalmente entrou na sala. E resistiram para aceitar o fato de que o povo da imprensa também esteve à deriva diante dos imprevistos…

Eri Johnson, animador da plateia da coletiva, às voltas com o atraso técnico do encontro…

Descontraído, bem-humorado, disposto a revelações inéditas sobre si próprio, apesar de deixar entrever aqui e ali uma aura triste, Roberto Carlos iniciou a conversa buscando acalmar a plateia. Assegurou de saída, convicto, que os jornalistas não tinham sido responsáveis pelo atraso do encontro.

E logo brincou com a própria lenda, ao afirmar que tampouco ele era o culpado – apesar de sua fama de chegar atrasado nos compromissos. A primeira declaração bombástica foi exatamente esta:  após brincar a respeito de sua inocência no episódio, o rei declarou que está melhorando a relação com o relógio e tem iniciado os shows com atrasos mínimos, de cerca de dez minutos…

Na sequência, surgiu uma primeira resposta surpreendente – a edição do Projeto Emoções em Alto Mar 2024 ainda não está programada, o cantor não sabe dizer se ela acontecerá. A situação é inusitada, pois tradicionalmente a edição subsequente era lançada durante o evento.

A pergunta seguinte também apontou para um espaço de dúvida: a situação empresarial do artista.  Após o rompimento profissional com o empresário Dody Sirena, fato que o cantor declarou não desejar comentar, mesmo destacando a condição amigável dominante no episódio, um encerramento elegante até o presente momento, Roberto Carlos frisou ainda não ter um novo empresário em vista. Aliás, Dody Sirena, associado à produção do Projeto Emoções em Alto Mar, estava a bordo, com a esposa Fernanda, mas, logicamente, não apareceu na coletiva.

As perguntas caminharam para territórios mais tranquilos – a avaliação da longa trajetória do projeto, na décima sétima edição, o desafio intransponível de comentar os álbuns gravados mais estimados e a ligação com o rádio permitiram a exposição do profissional detalhista, dedicado e rigoroso, desde o início da carreira. Uma frase lapidar deixou claro o perfil do artesão atento: “…tudo o que posso fazer para melhorar o meu trabalho eu faço.”

A seu ver, observou, tal condição explica a sua avaliação como “um cara muito chato”, disposto a gravar, regravar, rever e rever, em benefício da qualidade do trabalho. Ela deixa em evidência, também, ressalte-se, o amor incondicional ao público, para quem busca doar o melhor de si sempre, para quem insiste em declarar a sua gratidão infinita.

A fidelidade aos sentimentos, típica de um amante à moda antiga, despontou forte, para delírio do auditório feminino, nas respostas às perguntas diretas sobre o universo afetivo atual do artista. A primeira pergunta a respeito do tema levou o cantor a destacar uma visão de mundo adorada pelo fã-clube feminino – Roberto Carlos fez questão de frisar que se casaria de novo sim, que tudo depende do amor, da pessoa encontrada.

“Não tenho nada contra o casamento”, sublinhou, “acho o casamento saudável”. No seu entender, sim, cada um poderia viver em sua própria casa – o tipo de convivência depende da opção do casal. A outra pergunta sensação para as fãs foi a respeito de namoro – o rei confessou que está namorando, mas, incisivo, frisou que não iria dizer o nome da amada. “Ainda não”, insistiu, “tudo tem seu tempo”, e fugiu da confissão.

Já o casamento poético surgiu sob outra tonalidade: a vivência da pandemia e de perdas dolorosas em curto espaço de tempo, com a morte do filho Dudu Braga e do parceiro da vida inteira Erasmo Carlos, trouxeram uma dor forte, um encontro inesperado com a solidão. Algo para enfrentar e amadurecer, aprender com a vida.

No entanto, o processo de aprendizado com a dor, além de gerar na aura matizes sutis de tristeza, não conduziu ainda a superações radicais – “… não me vejo compondo com outro parceiro…” destacou. A parceria com Erasmo Carlos existe desde os 18 anos. Roberto Carlos insiste em usar o presente para falar do amigo, insiste em dizer  que o encontro dos dois não é uma coisa só de parceria, mas sim uma coisa de irmão, Erasmo se tornou o irmão escolhido.

O processo de trabalho dos dois artistas, descrito na entrevista, surgiu para expressar claramente a irmandade, a sintonia fina. Em cada música, o encontro poético acontecia; um começava e chamava o outro, ou vice-versa. “O irmão que a gente escolhe, a gente sempre escolhe o melhor.”

Um outro ponto relevante contemplou a luta pela Amazônia e a incerteza diante dos resultados objetivos obtidos pelas músicas de denúncia, incapazes de vencer a obtusidade do poder. Nos shows do navio, programados para três noites, o cantor revelou que a belíssima música Amazônia não foi incluída por exigir uma estrutura musical, de orquestra e coro, incompatível com as dimensões do teatro a bordo. O destaque do tema apareceu por causa não só da crise atual da região. Roberto Carlos recebera com Erasmo Carlos, representado pelo filho, no dia 27 de fevereiro, o United Earth Amazônia, definido como o Prêmio Nobel da Amazônia.  

Com relação aos projetos em vista – além de brincar com a ideia de fazer “um show hoje aqui”, o cantor enfatizou que está compondo muito, trabalhando no estúdio, programando um novo disco em espanhol. Ainda não sabe dizer como serão lançadas as novas composições, mas o desejo é lançar logo na praça.

Também o filme sobre a sua vida deve ter andamento em breve – o trabalho parou, afetado pela morte do diretor Breno Silveira (1964-2022), e será necessário escolher um novo diretor. Já o livro biográfico tão anunciado, segue em suspenso, sem previsão: deverá surgir depois do filme, inspirado por ele, ao contrário dos procedimentos rotineiros do mercado, nos quais os livros geram os filmes.

Para surpresa de todos os presentes, Roberto Carlos abandonou a feição reservada habitual e detalhou os procedimentos de beleza eleitos – a preocupação de se manter em forma dá trabalho, garantiu, com musculação, exercício, bicicleta ergométrica, dieta saudável, bom sono. Deixou de ser vegetariano, porém insiste na busca do equilíbrio alimentar. E confessou detalhes mais íntimos: já fez seis transplantes de cabelo para driblar as ameaças de calvície e há uns dez anos fez duas puxadinhas no pescoço.

Em paralelo, para assegurar a qualidade da voz, os cuidados são uma constante: faz exercícios de voz, tem assistência permanente de uma foniatra, procura cantar dentro dos próprios limites. A elegância de vida também importa, práticas como não falar alto, não discutir ou esbravejar protegem a qualidade vocal.

O assunto levou o cantor a comentar o episódio recente, de muita repercussão, num show, no qual perdeu a paciência com um espectador e mandou que ele calasse a boca. Roberto Carlos relatou que o espectador não parava de gritar, quando cantava uma das músicas preferidas – Como é grande o meu amor por você. Ariano clássico, o cantor logo superou o desagrado: “Até dei uma rosa para ele…”

Apesar do horário avançado, a entrevista se estendeu, contemplou diversos assuntos. Tanto surgiram os planos para o aniversário que se aproxima, a ser comemorado com um show em Cachoeiro do Itapemirim, como o desejo de gravar com Andrea Bocelli, Michael Buble ou Paul McCartney. E o rei comentou os limites existenciais impostos pela fama – a frustração de não poder circular livremente, ir ao supermercado, passear no calçadão de Copacabana ou bater pernas nas feiras livres. Contudo, fez questão de destacar, a constatação não significa queixa, pois as dificuldades para a sua circulação nascem do extremo amor despertado nos fãs.

A entrevista foi encerrada sob um clima de surpresa diante do novo Roberto Carlos presente no palco.  Nos corredores do navio, na saída da coletiva, era patente a força deste sentimento. Fiapos de conversa, muito embora perdidos no ar, traziam a constatação unânime das fãs de que tinham acabado de conhecer um outro Roberto Carlos, mais solto, mais livre, mais entregue à vida. Para uma fã, a mudança teria surgido da ruptura com o velho empresário. Para outra, a mudança só podia ser a força da namorada, um legítimo amor de transformação.

No entanto, a simples menção da palavra “namorada” provocou um burburinho frenético no grupo. E despertou controvérsias típicas da radio-corredor: para uma fã mais exaltada, a tal namorada era algo para discutir, ou ela não existia ou era muito fraca. Pois, garantiu, o namoro foi anunciado na coletiva de 2020 – então, se fosse a mesma ou não, não era relevante o suficiente para ser aclamada publicamente. Um amor cujo nome não pode ser dito, não marca a vida de ninguém.

Uma outra fã discordou e falou em favor de alguém de qualidade que estaria no navio e a seu ver seria a eleita. Mas a constatação da presença de pessoas estranhas por perto fez com que um acordo súbito de silêncio envolvesse o grupo. As fãs apertaram o passo e sumiram de vista. Era a hora de correr para se enfeitar, para o jantar solene e, a seguir, o show.

A noite abraçou o mar e foi coroada com uma lua capaz de evocar aqueles céus de milagre, com efeitos de luz entre nuvens de tirar o fôlego. O cenário do palco, varrido por memoráveis efeitos de luz, abrigou o show do rei, estruturado sob rigoroso sentido profissional. Ao lado do cantor, os grandes músicos da banda deram o melhor de si, sob a regência mais do que inspirada do maestro Eduardo Lages.

E se não há certeza a respeito da continuidade do Projeto Emoções em Alto Mar, uma verdade sentimental se projetou mais uma vez do palco para a plateia. Roberto Carlos é o rei do encontro, mago inconteste do amor. Um artista cuja grandeza sinaliza, na paisagem das vidas, uma profunda vitória humana. Assim como o grande navio pousado no mar é capaz de eliminar a força das ondas, o canto do rei revela a possibilidade de vencer a natureza humana bravia, a partir do convite ao pleno exercício do amor. Longa vida para o rei e para o seu canto de paz, é tudo o que se pode desejar, diante do mar de poesia que jorra límpido da cena.