High-res version

O doce teatro do mundo

Há muito tempo atrás era bem fácil dizer o que era o mundo. Ele estava ali, logo adiante do portão, bastava ir, ver e contar. Era um mundo só. E se alguém quisesse fugir do mundo, a escapadela podia ser fácil, bastava se trancar em casa. Ou num convento, mosteiro, ou coisa que o valha. Paradoxalmente, o mundo oferecia muitas opções para quem queria fugir do mundo.

Ainda nos anos 1970, vivi intensamente uma experiência inusitada de fuga do mundo: ia para um sítio da família, logo ali na Baixada Fluminense, cerca de uma hora e pouco da Zona Sul. Mas era um perto longe, remoto mesmo, por causa de um detalhe muito importante – toda a região, acessada por infames caminhos de barro, desconhecia o milagre da luz elétrica.

As noites se tornavam experiências inesquecíveis, sem televisão, sem rádio, sem telefone. Noites de lampião, velas, lareira. Dormia-se muito cedo. E lá fora, ou havia uma escuridão de assustar almas frágeis ou um luar prateado de inebriar almas delicadas. A mata cerrada sob a luz da lua cheia encanta, enfeitiça, quase obriga o espectador incauto a desprezar as ilusórias conquistas da civilização.

Mesmo logo depois, quando os civilizados, cansados da vida rústica, inventaram de por em uso um ruidoso gerador a querosene, a vida no sítio ainda oferecia a sensação do mergulho em outro mundo, outra dimensão. A bem da verdade, nem sempre o gerador funcionava. Quando funcionava, a luz era tremelicante como  os fachos do século XIX devem ter sido. E restava, na cozinha, o robusto fogão a lenha, muito mais disposto para o trabalho do que a frágil geringonça alimentada por gás de bujão.

Não sei como a região está hoje. A luz chegou, afinal, ao redor dos anos 1980, ou um pouco mais, se a memória não me trai. A morte dos velhos fechou as porteiras, nunca mais voltei por lá. Às vezes fico pensando se o estropiado bêbado cortador de pedras com carta de fogo, figura típica do lugar, ainda vive. E, se vivo, do alto de sua mula, sempre empacada, me pergunto se ele embaça a vista com um celular, para perder de vez o caminho, outrora confuso apenas nas graças do álcool.

Pois bem, o caso aí seria de dois mundos dentro de um mundo. Ou não. Incontáveis, múltiplos mundos dentro de um mundo. O Rio de Janeiro parece bastante com aquelas matrioskas russas, uma cidade dentro da outra, dentro da outra, dentro da outra… Com a diferença de que, aqui, beiramos o infinito.

No caminho para o sítio, ficava sempre paralisada com a visão da miséria brasileira, no caso, carioca. Era como se a Zona Sul fosse uma peça de ficção inacreditável, tais eram os cenários miseráveis que o olhar surpreendia.

O lugar que mais me atordoava, onde detestava passar, era um lixão absolutamente deplorável, com uma névoa de seres esquálidos vagando por lá, carentes de tudo. Mas o lixão apenas apontava a falha total da política brasileira, do poder público, que admitia a existência daquele terminal humano.

Para quê tantos palácios, tantos automóveis de luxo, tantos tapetes de irresistível toque de seda, se uma parte imensa da população não tem serviços básicos essenciais – direito à moradia e à saúde, saneamento, água de qualidade? Já naquele tempo, os rios da Baixada, essenciais para o abastecimento carioca ou para a saúde da Baia de Guanabara, eram cloacas detestáveis.

Uai, vale a pergunta – de onde surgiu esta torrente de sentimentos conturbados? Que divagações são estas? São resultantes lógicas da obrigação de viver em rede, brotaram fortes diante da vivência estranhíssima que a pandemia pôs em cartaz diante dos nossos olhos. Presos no nosso mundinho caseiro, voamos por toda a parte, graças à tecnologia e às conquistas da civilização.

Além das rotinas prosaicas de passar álcool em chuchu ou sabão no melão, tenho recebido convites irresistíveis para programas requintados de arte. Nova Iorque, Paris, Londres, Lisboa, Vercelli, Madri, Buenos Aires e até São Paulo têm feito o meu olhar brilhar mais do que lua cheia no céu do interior. E tem muito mais: peças locais, debates, encontros, rotinas de estudo…

Um pensamento surge, rebelde e inevitável. Esta vivência se estende por toda a minha cidade, existe uma plateia de compatriotas ao redor? Quais as vidas enclausuradas que estão sendo vividas no mesmo andamento? A arte e a cultura, que carinhosamente transformam os meus dias em aventuras felizes, existem como possibilidade universal de prazer?

O sociólogo francês Pierre Bourdieu demonstrou que o “amor à arte” nasce muito mais do capital cultural herdado do que de tendências naturais ou espontâneas. Isto quer dizer que, afinal, para a maioria absoluta ao menos, cultura e arte se aprende na família e/ou na escola. Levamos para a vida a nossa formação, é o nosso capital.

Portanto, o capital cultural que cada um tem funciona como o seu lugar de cultura. Assim, a tendência é a de cada um querer sempre mais do mesmo e não  sentir falta do que não tem. Consequentemente, parece bem difícil reverter as linhas de “gosto” ou de “preferência” cultural depois da formação do cidadão.

Em outras palavras, um mercado cultural indigente tende a se perpetuar como indigente. Se as referências são rarefeitas, a inclinação normal é a de que persistam em tal condição. Como se quebra estes limites? Eles podem ser quebrados? Até que ponto o Estado incompetente vive de preservar a miséria cultural social, ao lado da miséria tout court?

As ofertas de teatro e de cultura em geral se tornaram abundantes na quarentena. O que é visto? O que foi visto? Quais as vertentes celebradas? Quais as obras escolhidas pelo público e o que estas escolhas apontam? Qual a cara do público brasileiro hoje?

Precisaríamos organizar um observatório da cultura, nas universidades ou em alguma instituição independente, já que não dispomos nem de um Ministério da Cultura nem de um Ministério da Educação plenamente estruturados, para a realização destas pesquisas. Existe uma economia da cultura, um campo de estudos bastante estruturado hoje, cujos contornos importam não só para a economia e para a cultura, mas para a saúde social.

No mercado cultural, o que é cultura e como ela pode ser produzida e se manter? Existe um comércio de bens culturais fáceis, descartáveis, assim como existe o cristal e o plástico? O bem cultural vulgar é condenável? O teatro feito nos palcos sobrevive na mesma condição, se transmitido na televisão ou na internet? O fato de ser gravado ou ser ao vivo altera a sua condição de arte?

Muitos estudiosos se opõem ao reconhecimento do teatro feito na rede como teatro. Um dos nomes mais respeitados do time, o argentino Jorge Dubatti, participou de um debate recente promovido pela UFF (Laboratório de Criação e de Investigação da Cena Contemporânea – PPGCA).

Na conversa riquíssima, conduzida pela professora Martha Mello Ribeiro, ele considerou o teatro como um ato de arte “na presença”, um ato de convívio e de contagio, segundo uma linha de pensamento artaudiana. Logo, o teatro na rede seria uma negação desta condição essencial, seria precisamente teatro virtual, uma forma de não-teatro.

Com certeza outros vieses podem percorrer o debate. Questiona-se hoje, por exemplo, o fato do imposto, dinheiro público, através da renúncia fiscal, financiar montagens avançadas e progressistas, de linguagem elaborada, obras que estarão bem distantes da possibilidade de acesso – e até mesmo do gosto, do capital cultural – do homem comum pagador dos impostos.

Isto para não falar das camadas mais humildes, que pagam o imposto no feijão, que não terão qualquer chance de acesso ao mercado teatral, particularmente ao seleto universo das pesquisas formais. Seria justo o cidadão mais pobre, a quem falta tudo, até a escola para os filhos, financiar algo tão fora do seu universo de necessidade e de possibilidade?

Estas populações, habitantes de um mundo periférico em que não existe teatro, se integrariam a este mundo inefável através da internet e da quarentena? Expostas a estes trabalhos, teriam identidade ou empatia com este tipo de produção? São temas espinhosos, diante do universo dilacerado da sociedade brasileira, eles não podem ser ignorados.

Por quê, apesar da fervilhante sociedade brasileira de mecenato dos anos 1950, em especial em São Paulo, as elites brasileiras não cultivam a prática salutar de financiar a produção de arte? Não seria natural o empresariado investir pesado nas pesquisas de linguagem, trincheiras avançadas necessárias para a renovação do pensamento?

São perguntas urgentes. No fundo, significam formas de pensar o país, o nosso mundo entre mundos. Podem contribuir para clarear as ideias, conseguir um clarão como aquele de uma lua cheia plena numa floresta quase virgem lá no interior.

Para acompanhá-las, vale mergulhar na rede e ver tudo o que há. Vale ver a temporada linda  oferecida pelo Instituto UNIMED-BH no Teatro Claro, ver a temporada de extrema inteligência organizada pelo Teatro PetraGold, ver as incríveis novidades diárias do Youtube teatral…

Sim, vale também visitar a Broadway, Londres, Paris, Madri, Buenos Aires, Roma – como o seu universo de idiomas comandar. Há um mundo de teatro, ou de não-teatro, na rede. Você só vai descobrir o que é, se algo é, vendo. Para ser bem franca, desconfio que você vai descobrir que, hoje, podemos ousar dizer o que é o teatro ou o não-teatro, mas não conseguimos mais dizer o que é o mundo. Ele nos escapa.

Só que, paradoxalmente, somos reféns do mundo – não temos mais como fugir dele. Então, ao teatro, todos, para curtir este antigo feitiço, sempre capaz de nos hipnotizar. Mesmo que o nosso feitiço, não mais uma força natural, seja um produto fake, um não-teatro, algo que acontece por si, à nossa revelia, sem querer saber o que somos, sem se importar com o que diremos dele.

SERVIÇO

Foto – imagem de divulgação de Hamilton, montagem da Broadway.

Para conhecer o pensamento de Jorge Dubatti: