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Vulcões, furacões e dilúvios

Chamem o Vesúvio, por favor. Tem hora que a única solução é esta: chamar uma lava redentora, capaz de varrer tudo com fogo absoluto, cristalizar o que está como está, para mudar tudo e pronto. Voltarmos ao zero.

Ao longo da história, alguns momentos-Vesúvio aconteceram. Como explicar, como entender? Resposta difícil, mas dá para considerar que um longo ciclo se fecha com estes vesúvios, uma rotina é soterrada, um caminho novo surge, para quem conseguir sobreviver, claro. Nem todo o mundo consegue sobreviver a um vulcão.

Nunca visitei Herculano e Pompeia, quem sabe um dia irei por lá. Mas, desde que ouvi pela primeira vez a história da erupção, volta e meia ela visita os meus pensamentos. Fico matutando a respeito de dois pontos: os que perceberam, correram e se salvaram, e os que, percebendo ou não, ficaram e foram tragados pela lava fumegante.

Acabo sempre pensando, sem conseguir resposta, que a imagem poderia indicar a provável existência de um ciclo necessário de renovação geral: vulcão, dilúvio, terremoto… Fraca solução para incandescente enigma. Este pensamento pacificador provoca descrença – talvez seja necessário ter alguma religião profunda para concordar com ele. Afinal, renovar em nome de quê?

De toda a forma, existem momentos, acontecimentos, vesuvianos, digamos, um pouco mais fáceis de explicar do que um vulcão cuspindo fogo. São eventos provocados pela ação humana. Alguns nascem de nossa incompetência, outros de nossa sabedoria.

Na lista das devastações por incompetência, podemos listar o derramamento de petróleo pela Petrobrás na Baia da Guanabara, os tristes casos provocados pela Vale do Rio Doce (que nome, por Zeus) em Mariana e Brumadinho, o incêndio do Museu Nacional.

Na lista da devastação por sabedoria,  podemos incluir a Revolução Francesa. Será? E a guilhotina, teria sido sábia? Guerras e revoluções liquidando jovens, podem ter algum valor positivo? E o teatro – pode ser uma espécie de Vesúvio interior, mostra de elevada sabedoria,  supremo refinador das almas?

Talvez se possa, aqui, usar a expressão fatos vorazes: em lugar das pessoas gerarem os fatos, são engolidas por eles. Para o bem e para o mal. E no Brasil temos fatos vorazes para definir como bons? Importa considerar a reação humana, individual e coletiva, aos fatos vorazes.

Por exemplo: além dos casos pontuais citados acima, criações surpreendentes da Vale, da Petrobras e da UFRJ, temos desmatamento criminoso da Amazônia e do Pantanal, temos plantações pestilentas de soja, temos despejo de esgoto in natura e de lixo na rede fluvial e no mar…. fatos vorazes permanentes! E o que se faz diante disto? Existe no Brasil teatro ecológico?

Descobri em Nova Iorque um grupo, 9Thirty Theatre Company, fundado em 2007 por Jeff Burroughs, devotado ao cultivo da criatividade e ao trabalho em busca de soluções para um futuro sustentável. No site do grupo é possível saber bastante a respeito de sua história e do seu trabalho.

Eles denominam o seu teatro como “eco teatro”- um teatro voltado para a conexão entre a humanidade e a natureza. As questões ambientais são incorporadas como histórias, temas ou personagens. O objetivo é aumentar a conscientização ou promover mudanças nas pessoas. Segundo a página, são dois espetáculos em cartaz agora, gratuitos e ao ar livre, e um previsto para o outono.

Portanto, o dado curioso: trata-se de arte subvencionada, pelos cidadãos diretamente ou pelo poder público. Isto significa que a cena norte-americana não precisa mais (faz tempo!) se concentrar na construção do cidadão e da cidadania, nem na batalha para a institucionalização social da arte. A arte se faz por ser parte essencial da vida humana e, assim, pode contribuir para pensar as urgências da ecologia. E ninguém precisa ficar explicando isto, pois, por lá, isto é óbvio!

A diferença de realidades teatrais vale uma explosão do Cotopaxi, do Equador. Temos uma situação de calamidade ecológica no Brasil, mas nosso teatro ainda não trata do tema diretamente. O que existe, e ainda assim é fato raro, são programas educacionais ou esparsas referências temáticas, sobretudo no teatro infantil.

Talvez porque – ora, chamem o Vesúvio, por favor – vivamos submersos numa calamidade humana monstruosa. Assim, o nosso palco se vê absorvido pela discussão concentrada do humano, sem espaço ou energia para tratar da ação humana diante da natureza. Ou qualquer outro tema.

Um dos limites mais cerceadores para o exercício do teatro aqui permanece em vigor no país desde o século XIX, quando foi implantado o mercado profissional. Este entrave foi abolido por escassos intervalos de tempo ao longo da história. É a censura. E, o dado mais espantoso, no Império os próprios artistas constituíam a censura (Conservatório Dramático).

Neste quadro, o diálogo teatro e sociedade permanece fraturado. E pobre, evidentemente. No caso do teatro ecológico, além da conscientização do cidadão, a cena trabalha com o debate das ações ditadas pela ordem econômica. Sob o foco aparecem os limites necessários aos poderes das empresas, para a garantia da vida.

 Passeando pela internet, acompanhei interessantes visitas do videoecoativista Chico Abelha, dedicadas a uma pauta bem curiosa: o recente movimento de retorno ao campo de urbanos exauridos, os permaculturistas e algumas personalidades ímpares do meio agrícola. Dá para ver no nascedouro uma concepção nova do meio ambiente e das práticas econômicas rurais. Há muita música nestes seres que lutam por um novo futuro. Mas, até agora, nenhum teatro.

Talvez tenhamos ainda um longo caminho no campo teatral, para que se possa cogitar alcançar visões do campo propriamente dito. A lista de abacaxis históricos que precisamos resolver, afinal, de certa maneira um Vesúvio retroativo,  é enorme.

Há, por exemplo, o debate acerca de nossas visões e concepções sociais do humano. Somos um país de sólidas estruturas autoritárias, temos um índice de extermínios humanos absurdo, inaceitável. A liquidação da pessoa, por toda a parte e pelas mais diversas razões, compõe um cotidiano sangrento.

O caso Herzog representa um lado abominável destas práticas de alcance devastador. Ele está em cena em formato digital no próximo sábado e a concepção que cerca a proposta torna-a um programa obrigatório para quem gosta de teatro. Em particular, para quem gosta de pensar teatro. A apresentação integra o Festival São Paulo Sem Censura.

No palco – ou melhor, no picadeiro – estará a vida de Vladimir Herzog (1937-1975), jornalista brilhante, dramaturgo, barbaramente assassinado sob a ditadura militar. O texto, encenação da Cia Estável de Teatro, é uma revisita à peça Patética, de João Ribeiro Chaves Neto, cunhado do jornalista, escrita em 1976.

A história da peça – censurada, proibida,  pouco conhecida – já é por si só um extenso capítulo da história do teatro brasileiro recente. A trama  conta a vida do jornalista desde a imigração dos pais para o Brasil até a sua morte. Focaliza-se, portanto, a militância, a prisão, os depoimentos no DOI-CODI e a batalha da família para provar o seu assassinato – e derrubar a versão de suicídio imposta pelo poder.

Para driblar a censura da época e ampliar o efeito corrosivo do texto, a peça foi concebida como metateatro – uma trupe de circo sob ameaça de expulsão do seu terreno decide montar pela primeira e última vez a história de Glauco Horowitz (Herzog). A primeira montagem, só realizada em 1980,  constitui um dos episódios teatrais da abertura. A direção coube a Celso Nunes e a elogiada cenografia assinada por Flavio Império se tornou uma obra histórica.

 Vale destacar que a Cia Estável de Teatro, formada a partir da escola de teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, está com 20 anos de atividade e se dedica a um tipo de teatro capaz de provocar autênticos terremotos humanos. O grupo trabalha com uma visão ousada do fazer teatral – a busca da criação  em parceria com a comunidade em que está inserido.

 Significa, portanto, a um só tempo, invenção estética, vinculação histórica, formação de plateia, inserção social do teatro, reinvenção humana. Tanto estão sob a mira urgências humanas e causas sociais, como limites e tensões da linguagem teatral, no palco, na arena, sob a lona e na rua.

Vale dizer: o olhar da Cia contempla, sem lente, a paisagem humana ao redor. Paisagem tensa, entrecortada por problemas dilacerantes de origem histórica. Exatamente um meio ambiente humano que precisa ser varrido sistematicamente por intensos vesúvios teatrais. Sim, estamos bem na hora de chamar o Vesúvio, para reinventar as formas brasileiras de ser.

Ficha técnica:

PATÉTICA

FOTO: JONATAS MARQUES

Texto: João Ribeiro Chaves Neto.

Direção: Nei Gomes. 


Adaptação da dramaturgia: Daniela Giampietro.

Elenco: Juliana Liegel,Katia Lazarin, Maria Carolina Dressler, Miriele Alvarenga Osvaldo Pinheiro, Paula Cortezia e Sergio Zanck.

Cenografia: Luis Rossi.

Figurino e adereços: Marcela Donato.


Preparação Musical: Reinaldo Sanches.

Músicos: Reinaldo Sanches, Rayra Maciel, Agata Gabriela, Simone Ferreira.


Preparação Corporal:  Ana Paula Perche eCarlos Sugawara.


Maquiagem: Ana Luisa Icó.


Iluminação: Erike Busoni.


Operação técnica: Evas Carreteiro, Ramon, Junior Batucada, Priscila Chagas.

Produção: Maria Carolina Dressler, Flávia Morena, Nei Gomes.

Registro e produção multimídia: Jonatas Marques. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli. Orientação Audiovisual: Luiz Cruz.

Serviço:

Espetáculo PATÉTICA

Dia 5 de junho, sábado, às 20h – Espetáculo estará disponível na plataforma por 24h.

Transmissão: Redes da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Duração: 85 minutos. 

Classificação etária: 10 anos. 

Ingressos: Grátis.

Após a sessão haverá bate-papo com a Cia Estável de Teatro sobre o processo de pesquisa e toda experiência com esta montagem. A conversa contará com a participação de Celso Nunes, diretor da primeira montagem do espetáculo.