Artimanhas dos céus, descaminhos dos homens
Existe pecado? Existe inferno? Ou, para o bem da humanidade, inventaram algum dia estes ameaçadores lugares de perdição, para tentar fazer a multidão andar na linha? Criaram trilhos, para a massa inconsciente de si não se perder da rota? Explico.
Alguns historiadores já trataram do tema da invenção do inferno – em algum lugar da idade média, os teólogos, desesperados, teriam tirado este coelho da cartola. Quer dizer, incapazes de convencer a plateia de que ser bom e fazer o bem é lei geral da vida para todos, obrigação natural geral, vociferaram: ou faz o bem ou vai para o inferno.
No fundo, estaria em pauta uma forma de pensar bem simples, imediata, rudimentar. Uma explicação dualista do mundo, na qual o polo dominante se reveste de uma superioridade inatingível. De um lado, o Bem, perfeito e, com frequência, de tão perfeito, impossível. Do outro, o Mal, a ruína, a destruição.
Basta, então, obrigar o mortal a encarar a catástrofe: de imediato, ele vai correr alucinado para chegar ao paraíso. No entanto, a perfeição só pode ser atributo dos santos. E o pecador precisará eternamente do guia iluminado, para sofrer em busca do caminho impossível, uma trilha para o inalcançável.
É fácil entender o problema, como se estrutura o jogo de poder. Qualquer professor secundarista, lá na frente de uma turma indisciplinada, já sentiu a necessidade de inventar o inferno, um inferno bem incandescente, para segurar os alunos endiabrados. Neste caso, de pequeno poder, o golpe retórico precisa ser certeiro, pois, se falhar, dificilmente o mestre conseguirá dar aulas para as pestes decepcionadas.
Sim, há um tom mais complexo. Na verdade, a humanidade tem certo fascínio pelo desconhecido, mesmo que o horizonte de desconhecimento apareça como simulacro das trevas, mergulho na perdição. Ninguém voltou do além para explicar as desventuras de lá – portanto, qualquer versão criada a respeito, se bem costurada, se sustenta por si.
Por extensão, parece natural atribuir ao desconhecido, ao outro, coloridos maldosos ou infernais. Reparem: ninguém inventa fofoca para falar bem. É sempre maledicência. Diante do mistério que é o outro, nos sentimos fascinados e, para dominar o próximo, desconhecido, e vencer o fascínio, inventamos barbaridades a respeito. Assim, liquidamos a ameaça do desconhecido, um pretenso malvado.
Ao longo da História, são inúmeros os exemplos de liquidação do outro, a partir de diversos graus de maledicência ou demonização. Provavelmente, a maior de todas as vítimas é a mulher, do paraíso aos nossos dias. Basta lembrar que a ideia de “bruxa” e “feiticeira” é quase sempre feminina. Já os bruxos e feiticeiros costumam contar com uma aura de genialidade, como o grande Merlin.
Mas, no caso das mulheres, ao que tudo indica há luz no fim do túnel e não é da antesala do inferno… Depois de séculos de opressão, parece que teremos no século XXI o início de uma nova era, na qual será cada vez mais difícil desqualificar as mulheres, até que se chegue afinal à pura e simples libertação. Vale apostar neste caminho.
Uma peça on-line de volta ao cartaz – Te Falo com Amor e Ira, assinada por Fernanda Bond e Branca Messina – lida abertamente com este tema. O texto aborda o encontro de uma mulher e um homem através de eras. A proposta acontece ao vivo e, portanto, o desejo central é o de incitar o pensamento a respeito da vida de hoje, em benefício da transformação social.
Neste tom, o recurso aos exemplos históricos se faz não como ilustração ou vitrine de curiosidades exóticas, mas demonstração didática da necessidade de mudança. Assim como a tecnologia e a máquina impulsionaram, desde o século XVIII, a renovação radical da vida feminina, pois reduziram a carga brutal dos serviços domésticos, é um celular e a internet que alavancam este projeto, iluminam o passado e o presente em função de um futuro em que se faz obrigatória uma diferença de ser.
Mas o mais notável, porém, na trajetória humana, é perceber que por vezes a demonização ultrapassa este quadro de desqualificação, comum no caso das mulheres, para se tornar deturpação ou redução do diferente. É o caso da aniquilação deliberada de culturas diferentes.
Na sociedade brasileira, o crime – pois a atitude é evidentemente criminosa – atingiu as culturas indígenas, ou dos povos originários, e a cultura negra. Andei, por exemplo, procurando por toda a parte um dicionário ou um vocabulário Puri. E descobri que ninguém mais fala o idioma, apesar de alguns estudos dispersos, em especial um esforço memorável da Aldeia Maracanã. Constatei, assim, a importância absoluta de se manter a Aldeia Maracanã.
No caso da cultura negra, o ponto nevrálgico pode ser localizado nos rituais religiosos, da Umbanda ao Candomblé. Há uma longa história de busca de associação da religiosidade afro-brasileira aos preconceitos mais rudimentares do pensamento ocidental.
O polo central é a demonização dos cultos africanos, o esforço para associá-los à ideia de “mal” e de “inferno” cristãos, como se uma concepção positiva de “bem” e de “céu” fosse atributo exclusivo das religiões cristãs ocidentais. Tal ótica de destruição, contudo, tem um grande lastro, a prática povoa toda a história da humanidade.
E dá para desenvolver o debate em cena – o notável estudioso Rodrigo França pegou a pena e o chicote para cuidar da tarefa. Quer dizer, escreveu o texto e dirigiu o original Capiroto, estreia da próxima sexta-feira, dia 6 de agosto, no Teatro Prudential.
Vale esclarecer: quando surgiram os diretores, decididos a transformar os endiabrados primeiros atores em dóceis anjos poetas do palco, costumava-se dizer que era preciso usar chicote para submeter os velhos profissionais, devotos ferrenhos de sua completa e livre expressão.
A brincadeira não deseja insinuar que o ator Leandro Melo necessite de chicote – ou de outros instrumentos inquisitoriais usados para impor nas carnes a escolha do bem. Afinal, a ideia do dramaturgo diretor consiste em que exatamente o diabo esteja em cena. Capiroto, usado em especial no Norte do país, é um dos nomes coloquiais atribuídos ao bicho.
O espetáculo pretende demonstrar como as apropriações religiosas, no fluxo histórico, buscaram identificar os vencidos ou mesmo meros inimigos como materializações do mal. Tal estrutura, um jogo brutal de poder, significou em geral a liquidação do outro, ou a carta branca para atacar o outro, matar, saquear, desumanizar.
Não há dúvida, portanto: o assunto não é religião, mas poder. Quer dizer, pretende-se deixar evidente como o ser humano lança mão de formas de pensamento – em geral muito simplistas – para retirar a humanidade do outro e, assim, matar, escravizar, excluir, reduzir à miséria. Pensamento, fé e crenças são instrumentalizados, se transformam em dinheiro, bens e poder.
Consequentemente, sob o foco há um convite para o crescimento humano. O percurso do tema é sedutor: demonstra o uso, ao longo da história, das ideias de mal, de pecado e de diabo para intimidar, justificar barbáries, ignorar a obrigação de civilidade. A redução do ideário áureo das religiões, de uma maneira geral estruturado ao redor da ideia de amor e de fraternidade, transparece de forma evidente. Incomoda em particular a contradição no interior do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo.
Mas, vale insistir: a montagem não pretende focalizar o caso das religiões. No fundo, lá adiante da cena despojada e do monólogo, defende-se a ideia de que a vida só pode ser entendida se for vista como intensidade de sentimentos, riqueza sensorial, formigueiro de ideias, não importa sob qual ideia de divindade.
Nesta compreensão da vida humana, longe do gasto dualismo simplista capaz de ver apenas heróis e bandidos, vigora um caldeirão de forças existenciais e ideais, uma inesgotável riqueza humana que nenhum bruxo, nenhuma feiticeira, nenhum capiroto seria capaz de conter. Afinal, o diabo é apenas um disfarce esfarrapado para o desconhecimento, artifício cruel de um poder ignorante. Veste-se a ignorância com vestes chocantes, para que ninguém perceba, dentro de cada um, o oco que anda lá por dentro…
FOTO: JULIO RICARDO – Divulgação
Te Falo com Amor e Ira
Ficha Técnica:
Direção e Dramaturgia – Fernanda Bond
Atuação e Dramaturgia – Branca Messina
Direção de Produção – Lia Sarno
Consultoria Dramatúrgica – Julia Myara
Identidade Visual e Design Gráfico – Veronica d’Orey
Fotografia – Ana Alexandrino
Direção Musical – Rodrigo Marçal
Assessoria De Imprensa – Isidoro B. Guggiana
Teaser e colaboração artística – Valentina Homem
Assistente de Direção – Duda Capotorto
Isidoro B. Guggiana Assessoria de Imprensa
Serviço:
Peça teatral online ‘Te Falo com Amor e Ira’, no Youtube
Nova temporada: segundas-feiras – 9, 16, 23 e 30 de agosto, às 21h | ao vivo
Ingressos: gratuito, com opção de contribuição voluntária;
Classificação: 12 anos;
Instagram: @te.falo.com.amor.e.ira
Youtube: https://bit.ly/3f8DMJs
Capiroto
Ficha Técnica:
Autor e Diretor: Rodrigo França
Elenco: Leandro Melo
Direção de Movimento: Kennedy Lima
Diretor Assistente: Júlio Angelo
Iluminação: Pedro Carneiro
Cenário e Figurino: Wanderley Gomes
Arte Digital: Akueran
Designer: João Eliel
Pesquisa Historiográfica: Rodrigo França e Jonathan Raymundo
Consultoria de Representações Raciais e de Gênero: Deborah Medeiros
Fonoaudióloga: Débora Santos e Luisa Catoira
Visagismo: Vitor Martinez
Costureira: Terezinha Silva
Direção de Produção: Fábio França
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Produtores Associados: Fábio França e Rodrigo França
Realização: Diverso Cultura e Desenvolvimento e Orí Produções de Conhecimentos
SERVIÇO:
Temporada no Teatro Prudencial
De 06 a 15 de agosto – sexta e sábado às 20h e domingo às 19h
Gênero: suspense
Valores:
Plateia: R$ 80,00 (inteiro) e R$ 40,00 (meia entrada).
Plateia Lateral: R$ 50,00 (inteiro) e R$ 25,00 (meia entrada).
Lotação*: Originalmente de 359 (trezentos e cinquenta e nove) lugares. No
entanto, em respeito às regras sanitárias de prevenção contra o COVID-19, a CONTRATANTE
permitirá acesso, apenas, a 116 (cento e dezesseis) lugares na área externa.
Alessandra Costa
Assessoria de Imprensa e Comunicação