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Arte, desastre, des-arte?

Uma pergunta simples – quem faz a arte? Não pense muito, responda rápido. Vou indicar algumas opções. Você pode escolher a resposta favorita, mas deve tentar encontrar apenas uma solução.

De saída, você pode fazer um exercício de generosidade e afirmar: quem faz a arte é a sociedade. Mas pode pensar mais um pouco, constatar que arte significa dinheiro, formação, tempo livre; então, dirá – quem faz a arte é o produtor.

Contudo, poderá ter um estremecimento e concluir que, afinal, amar Mozart afasta do coração todos os blocos-de-lata, mesmo os melhores. Neste caso, concluirá feliz: quem faz a arte é o público.

A diplomacia custará um preço salgado. Alguns amigos artistas vão ficar contrariados, furiosos até, na convicção de que a sua resposta desmerece os seus talentos. Para não ficar mal com a classe, você correrá para remendar o verbo distraído. Num ímpeto impensado, mas afetivo, baterá o martelo a favor da autoria. Bradará aos ventos que é o artista quem faz a arte. E o resto é silêncio.

Talvez o seu esforço seja inútil. Apenas um bom aquecimento para um debate quente. A arte é uma necessidade social, acontece em sociedade. Por ser tão profundamente vital para o coletivo, todos os aglomerados humanos de todos os tempos inventaram um meio de contar com ela ao alcance das sensibilidades.

Neste pensamento, quem faz a arte é a sociedade humana, uma força vital desmedida cujo sentido último nos escapa; talvez por causa desta falha, justamente, a dor de não sabermos claramente o por quê de existirmos, precisemos de arte.

O raciocínio pode ter uma lógica cortante – além da sociedade fazer arte para conseguir conviver com a sua dor transcendental, ela cria os artistas, as obras, as necessidades coletivas… O artista nasce do seu tempo, da necessidade do seu tempo. É muito ousado pensar isto? Parece absurdo? Não explica nada?

Vamos, sigamos, não desanime – pensar o mais difícil é uma ginástica boa para o cérebro. Pode resultar em nada, simples exercício e nenhuma resposta, mas a racionalidade sairá da maratona abstrata tão feliz quanto o Medina ao vencer a maior das ondas. A diferença é que o nosso jogo aqui acontece no puro marulho das ideias, sem medalha, sem hino, sem aclamações.

Mas, quem sabe? Talvez lá, bem adiante, ainda que anônimos, ajudemos este pobre país a ficar um pouco mais inteligente, com alguma musculatura mental no esqueleto descarnado que comanda a cabeça da pátria, será? Pois, assim como a arte, tudo indica que se deve considerar a inteligência como um dom coletivo.

Pois, então. Sigamos. O grande mistério diante de nós  brasileiros hoje surge como uma realidade dolorosa. Gritante. O que fez – ou faz – com que abramos mão de ter teatro forte em nossa sociedade?

Diante de uma biblioteca de autores dotados de extrema força criativa – e a lista em português surpreende ao incluir até mesmo Gil Vicente (1465-1536) e Antônio José da Silva (1705-1739), para depois se alongar nos séculos – permanecemos indiferentes, anos e décadas sem nos esforçarmos para tê-los nos palcos. Nossas letras dramáticas são invisíveis.

Diante de uma galeria de atores de dotes artísticos gigantescos – e seria uma tarefa impossível de realizar listar aqui a imensidão histórica de talentos nascidos no país – não oferecemos palcos e salas suntuosos para banhar nossas almas em suas preciosas ofertas de poesia. Nossos atores são mendicantes cênicos, esmoleiros.

Renato Aragão, no filme Na Onda do Iê- iê-iê, de 1966, comenta a certa altura com Dedé Santana que deviam sim pegar as suas economias pessoais, divertidamente escondidas, para ajudar a empurrar a carreira do amigo artista, o galã defendido pelo cantor Silvio César.

E se justifica – ele é artista, precisa de ajuda. Em várias sequências, a dupla aparece embevecida, olhos pregados na arte do poeta. Havia, então, este pensamento, ou era só um desejo do excepcional ator/roteirista?

Soa curiosa uma constatação: exatamente neste momento de expansão da MPB (seja lá como se possa entender aqui a palavra expansão), o teatro brasileiro mergulhava na sua maior crise histórica. E mais – até hoje, este nó permanece mal estudado e pouco esclarecido.

Neste período o teatro brasileiro passou a ser de vanguarda, deixou de ter uma sintonia com o jogo social maior. O teatro se afastou do arco da sociedade. Gradualmente, o teatro instituído, profissional, organizado em função da bilheteria, passou a ser visto com repulsa, como se fosse uma prática menor, desprezível e aviltante, desprovida de arte.

Isto apesar de tantos poetas da cena, de Lorca a Vianinha, se referirem à potência da arte em si, nas suas mais diversas modalidades, como agente natural de transformações das sensibilidades. Não houve negociação: a cena estável e formalizada foi chutada para escanteio.

Um palavrão de arte se projetou: teatrão. Quando um jovem candidato à carreira desejava irritar um veterano e diminui-lo, bastava atirar o nome pejorativo contra o famoso. O gênio, humilhado, se acabrunhava e corria para rastejar em cena sob a batuta por vezes bem dogmática de um diretor de vanguarda.

Ficaram célebres, na época, os exercícios de virar ameba, rastejar, contorcer-se, expor o avesso. Uma parte da classe, da esquerda mais conservadora e do primeiro escalão, bem tentou combater a favor do teatro da palavra,  derrubar a aposta no primado da invenção e da celebração doida do corpo.

Mas, de nada adiantou: perderam todos. Pois, convenhamos, qual o valor da intensa fisicalidade se ela não dialoga com a tradição, se ela não tece sua poética em relação aos caminhos do verbo? Qual o sentido da invenção se ela não tece rupturas com algo que está formalizado? Inventar a êsmo só interessa mesmo aos próximos – e foi abolida a plateia.

O resultado do embate foi bastante estranho, pois o teatrão desapareceu dos palcos. Aos poucos, desapareceram muitos dos velhos palcos, com teatros históricos barbaramente demolidos. Para as pessoas “comuns”, engajadas nas rotinas da sociedade, não sobrou nenhuma cena. O teatro-de-sala-de-visitas e assemelhado evaporou. Ficaram soberanos a TV, o cinema, a música.

Basta olhar a carreira de alguns grandes nomes – D. Eva (Eva Todor) tentou “se atualizar” em vão, Dulcina de Morais se enterrou em Brasília, as grandes estrelas modernas e muitos dos velhos astros seguiram para a televisão. Walter Pinto foi plantar rosas. Os grandes textos, os elencos de tirar o fôlego, as produções de sacudir as finanças, todos acabaram.

E a pergunta incômoda rompe o tempo e se impõe com a força bruta de mil baionetas: a quem interessa o eclipse social do teatro em nosso cotidiano? Se o teatro é a forma por excelência de construção social do verbo, do sujeito, da representação social, ele não seria a ferramenta mais afiada para a afirmação da democracia? O teatro não atua na construção social do pensamento?

Parece que não ter teatro forte é essencial para sociedades violentas, brutais, rigidamente hierarquizadas em castas. Sociedades em que se rejeita o diálogo, em que se demoniza o verbo, nas quais se despreza e se desmerece o outro, não precisam de teatro. Sociedades em que a saúde da própria sociedade não é um bem vivem à vontade longe do palco.

Com certeza o teatro não é uma panaceia, nem é a fórmula secreta de redenção dos humores, inventada por magos e alquimistas. Mas a sua negação, a sua fragilidade ou até mesmo a sua ausência apontam para um lugar de trevas sociais, no qual o democracia tem vida de fachada, quando sobrevive. O teatro existe porque a vida o deseja e ele precisa ser tão múltiplo quanto a vida.

Um dos textos que marcou esta virada histórica brasileira é uma grande obra da dramaturgia universal, pura inquietude do verbo. O espetáculo, aqui, se projetou em busca da celebração da arte experimental como centro da vida teatral carioca e, por isto,  precisa ser estudado profundamente.

A tarefa é importante – e é fácil. Uma coleção preciosa de fontes está à disposição para estudos no Acervo Klauss Vianna. Existe também documentação no CEDOC Funarte e na Biblioteca do CLA UNRIO. Vale se jogar no desafio. Indiquemos alguns pontos-chave.

Trata-se de O Arquiteto e o Imperador da Assíria, de Arrabal, encenação do Teatro Ipanema dirigida por Ivan Albuquerque, com Rubens Corrêa e José Wilker. A tradução da peça foi assinada por Leyla Ribeiro, a produção em São Paulo coube a Nydia Licia.

O corpo esteve sob a mais histórica assinatura da especialidade – o gênio, absolutamente brilhante, Klauss Vianna. No programa, ele respondeu pela expressão corporal.

Ao estudar o programa paulista da peça, constata-se a forte presença de marcas, serviços e produtos voltados para a alta classe média. Seria interessante começar o estudo da montagem por este recorte: qual o perfil do público que lotava a plateia e transformou a montagem num grande sucesso teatral? O lugar de mercado que a peça ocupou guardava sintonia com o TBC?

Importa também assinalar a geografia teatral em pauta – Ipanema começava a se projetar como a aldeia cultural líder da vida carioca e nacional. Tratava-se de um teatro inquieto, indigesto, transgressivo – a extrema rebeldia de Arrabal não permitiria que a esquerda conservadora repudiasse a montagem como “alienação” ou “desbunde”, termos da época. O Brasil vivia sob a ditadura militar.

Arrabal, afinal, se impõe como um símbolo inconteste do antimilitarismo, do antifranquismo e do mais amplo ímpeto libertário. Não se deseja, nesta argumentação, destituir a importância da montagem ou da peça. Nem empalidecer a sua contundência. O espetáculo foi por si histórico.

O ponto visado é mais complexo – apenas pesquisar porque este teatro serviu como agente de liquidação de um teatro de mercado médio, regular. Por que razão não se admitia a convivência com o outro teatro, popular, popularesco, comercial?  Por que só uma arte voltada para a elite deveria merecer aclamação? Não foi esta a prática tebecista e de Os Comediantes…?

Digamos, por que não dialogar com o teatrão, com um comercial mais cuidado? Detalhe: na temporada paulista, no Teatro Bela Vista, uma suroresa – esteve em cartaz, ao mesmo tempo, no horário infantil, Os Contos Alegres da Carochinha, um outro lugar de diálogo, afinal um teatrãozinhomirim.

Pois vale travar um belo debate. Vale perguntar a respeito do papel que desejamos para o teatro na nossa sociedade. Só interessa a revolução total (ironicamente, apenas idealizada…) e nada desejamos a respeito das pequenas revoluções cotidianas?

Por sinal, o texto impactante de Arrabal está de volta à cena com o grupo paulista Garagem 21. Um retorno muito oportuno. Afinal, de que trata a peça? Em larga medida, a peça fala do poder cultural como possibilidade de opressão, projeto de destruição do outro. A sua fórmula estruturante é o combate ao autoritarismo.

A trama simples segue um contorno muito sugestivo. A cena acontece numa ilha deserta, isolada, após um acidente aéreo. O único sobrevivente encontra lá um nativo, que nunca encontrou outro ser humano. E ele tenta impor ao nativo as suas ideias de cultura e civilização.

Para ampliar o alcance da temática, a direção de Cesar Ribeiro diluiu as referências espaciais associáveis à ilha, incorporou certo barroquismo ultramoderno. Há nas fotos um tom de tecnologia avançada e lixo, games, HQ, futurismo e alguma citação de Tadeusz Kantor.

Em cena, os atores Eric Lenate e Helio Cicero saúdam o retorno da vida teatral: em São Paulo.  Pois é, sorry, Rio. A montagem será vista sob os protocolos sanitários em vigor, no Centro Cultural São Paulo.

A bem da verdade, mesmo restrita a São Paulo, a peça estimula o debate de ideias teatrais de extrema importância para a cena cultural brasileira. Não se sabe se, como aconteceu com a montagem do Teatro Ipanema, a produção atual alcançará os dois centros teatrais.

Mas é divertido constatar uma estranha coincidência. Afinal, neste momento, o debate a respeito da ordem democrática cotidiana, nesta sociedade brasileira tão profundamente autoritária, pode lucrar muito com o foco sobre este texto.

De certa maneira, apesar da impressionante densidade estética, cultural e política da montagem do Teatro Ipanema, o espetáculo despontou no cenário da época como um argumento cênico hábil para a opressão do outro teatro, diferente.

Para os radicais de vanguarda, o outro era inaceitável por ser “acomodado”, “alienado”,  “descartável”,  “culinário”. Seria oportuno, então, lembrar o pensamento de um outro espanhol, poeta absoluto da cena, líder do notável grupo La Barraca, morto covardemente pelo franquismo.

Para ele, ninguém jamais saía ileso de um espetáculo de teatro. Mesmo que fosse apenas uma reles comédia barata, encenada pobremente num humilde barracão por pobres atores esforçados. Assim pensava Lorca (1898-1936), este outro.

E talvez esteja por aí a resposta: parece que quem faz a arte é o pensamento da sociedade. Perigosamente, nas sociedades de opresão, a rigidez estrutural, necessária para massacrar a vida, pode chegar a contaminar a arte, reduzir o seu alcance libertário, restringir o seu alcance. De que adianta uma arte libertadora, de invenção, se ela só consegue circular entre iniciados?

Assim, formas livres podem ser contaminadas pelo autoritarismo, celebrar os eleitos e banir “os que não sabem”. E podem reproduzir a mecânica de negação do outro. Talvez não baste para a arte o projeto de ser libertária.  Talvez seja necessário que a arte contemple sempre, com acidez, as formas de pensamento do seu tempo, geradoras, elas mesmas, da própria arte. Talvez, enfim, a pulsação do pensamento livre na sociedade deva ser o lema de todo o teatro.

 

O Arquiteto e o Imperador da Assíria

FICHA TÉCNICA

Projeto contemplado na 10ª edição do Prêmio Zé Renato

Texto: Fernando Arrabal

Direção, tradução e adaptação: Cesar Ribeiro

Elenco: Eric Lenate e Helio Cicero

Direção de produção: Kiko Rieser

Cenário: J. C. Serroni

Desenho de luz: Aline Santini

Figurinos: Telumi Hellen

Preparação de atores: Inês Aranha

Sonoplastia: Raul Teixeira e Mateus Capelo (efeitos sonoros) e Cesar Ribeiro (músicas)

Visagismo: Louise Helène

Assistência de direção: Andre Kirmayr

Assistência de produção: Jaddy Minarelli

Arte gráfica: Patrícia Cividanes

Fotos: Bob Sousa

Registro em vídeo: Nelson Kao

Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Marcia Marques

SERVIÇO

Temporada presencial

De 24 de setembro a 24 de outubro de 2021

Sexta a sábado, 20h. Domingo, 19h

Sessão extra: Dia 21 de outubro, às 20h30h

Local: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso – São Paulo)

Ingressos: R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia) e entrada gratuita para estudantes e professores da rede pública de ensino.

Lotação: 128 lugares | Duração: 120 minutos | Classificação: 16 anos | Gênero: tragicomédia

SOBRE A MONTAGEM DO TEATRO IPANEMA (1970):

Rubens Corrêa e José Wilker.

http://www.klaussvianna.art.br/vida_detalhes.asp?id_evento=112