O Toque do Aragão, o teatro e a cidadania apagada
Vamos ao teatro? Sim, adoraria. A resposta, uma falsa afirmativa, veio de uma amiga querida. Ela gostaria de ir ao teatro, mas não poderia ir. Por isto, logo após a frase, veio o mas…
Minha amiga querida adorava teatro. No entanto, moradora do subúrbio do Rio, passou a viver uma dupla orfandade. Tanto padecia com a falta de teatros suburbanos com programação estável e atraente, como passou a viver sob toque de recolher.
O seu bairro, outrora próspero e aprazível, vizinho de um morro habitado por nobre gente trabalhadora, foi dominado por gangues. E isto significou a implantação de um toque de recolher tácito: se você quiser circular, pode, contudo, sabe o risco que corre. Melhor não. Fique em casa.
A restrição do direito à vida urbana era mais radical para as mulheres, em especial se estivessem desacompanhadas. Apesar de moradora antiga do bairro, todos os privilégios decorrentes desta condição foram a pouco e pouco suprimidos pelos novos senhores. E a noite virou um pesadelo.
Assim, programávamos saídas e encontros sempre com horário diurno. Bastava a tarde começar a querer se desfazer para a minha amiga ficar inquieta, preocupada, em especial se estivesse sozinha. Não que o marido ou qualquer homem fosse salvo conduto para algo. O caso é que os bandidos achavam melhor assim. E ponto.
O resultado é objetivo. Ela se tornava refém de um medo contagiante de voltar para casa dirigindo o próprio carro… Deixamos de ir ao teatro, claro. Moradora da Zona Sul, profissionalmente engajada no teatro, eu continuei a enfrentar a noite carioca, abraçada com os meus temores, mais difusos. A noite carioca mudou muito, assustadoramente.
E com isto o teatro se tornou um programa inacessível para muita gente no Rio. Talvez através de vans, compras coletivas de ingressos e sistemas coletivos de locomoção, ainda fosse possível, ainda seja natural planejar a ida ao teatro. Já na linha mocidade independente, nem pensar.
Um tremendo absurdo, convenhamos. Para uma geração de veteranas moçoilas que arrasaram nas minissaias e queimaram sutiãs, soa como uma afronta intragável não ter o direito de ir e vir livres, leves e soltas na sua própria cidade. É como se vivêssemos sob o Toque do Aragão. O velho badalar de sinos revisitado, agora sob a forma de tiros.
O Toque do Aragão foi um grande instrumento oficial de controle da população, no século XIX, aqui no Rio. Foi criado em 1825 pelo chefe da polícia – Francisco Alberto Teixeira de Aragão – com o alvo principal de controlar a circulação de escravos, homens livres pobres e estrangeiros sem documentos.
Os escravos podiam ser açoitados e detidos, com multas para os donos. Logicamente, o recurso, em vigor até 1878, foi concebido por medo de rebeliões escravas, a frase que não se diz. A partir das 22 horas, no verão, e 21 horas, no inverno, o sino tocava e o povo se recolhia. As noites no teatro, portanto, envolviam posses suficientes para circular sem risco de bordoadas da polícia.
Como a miséria social do Brasil persistiu, apesar da passagem do tempo, chegamos à reedição do Toque do Aragão, ao Toque do Aragão ao contrário. Agora, quem corre risco é a classe média e a elite, diante do poder de milícias, gangs e quadrilhas. Mas há um pouco mais.
Em algumas regiões da cidade, a ida ao teatro ficou um pouco mais afetada pela nova ordem (ou desordem?) urbana, nossa onda crescente de miséria. Ainda antes da pandemia, após algumas peças no Teatro Glauce Rocha, no Centro do Rio, a caminhada noturna pela nova Avenida Rio Branco, deserta de transeuntes, repleta de moradores de rua em situação de pobreza radical, se revelou um pesadelo.
Outro tanto pode acontecer nas idas ao CCBB, por exemplo. Nas imediações do nobre edifício, por duas vezes o meu carro foi saqueado, o vidro da frente quebrado; os fatos geraram um desafio de arrepiar a alma para voltar para casa. A experiência de dirigir à noite no Aterro sob uma fina chuva de cacos de vidro foi inesquecível.
E a zona sul não aparece mais tranquila: alguns trechos da cidade, até mesmo em Copacabana, foram se tornando grandes vazios humanos. A sensação de insegurança se amplia com a dificuldade para conseguir táxis ou para desfrutar de estacionamentos.
Os fatos, quem diria, transformaram os teatros de shopping em oásis urbanos requintados. Se os políticos não conseguem agir para reduzir os graves problemas sociais, do desemprego, da fome, da marginalidade, da violência brutal e da contravenção, deveriam criar leis impondo a existência de teatros nos shoppings.
Tal dispositivo não mudaria o desalento de percorrer ruas noturnas desertas, numa cidade que, outrora, deposto o poder do Toque do Aragão, se tornou uma grande boêmia. Isto até o final do século XX. Logo, tudo mudou. Não sei para onde caminharemos – mas, observem bem, as escolas de samba começaram a trocar a noite pelo dia, numa notável inversão histórica de suas rotinas.
Neste retorno ao teatro presencial, impregnado pela esperança de que a pandemia se encerre, o tema é de extrema importância. Como iremos nós, o público, aos teatros? Como estão as ruas, a segurança pública, os transportes, o Aragão da vez? Então, prefeito, como vamos?
Pode-se notar nas programações do momento espetáculos em horários novos, inéditos, quase o retorno do teatro vespertino – daqui a pouco haverá concorrência com as peças infantis. Mas é preciso pressionar a administração pública, a favor de uma inteligência da vida urbana. Ou os administradores não sonham mais com um Rio de Janeiro maravilhoso?
Teremos nesta semana uma grande festa teatral na cidade, uma festividade de significação histórica notável. Trata-se do aniversário de 5 anos do Teatro Riachuelo. A restauração e o funcionamento do luxuoso edifício são motivos de orgulho para todos os cariocas, em especial porque a programação da casa tem obedecido a uma visão justa do mais belo espírito da cidade.
A iniciativa de restaurar esta joia urbana devia mobilizar os poderes públicos e despontar como parte de um projeto efetivo para revitalizar o Centro do Rio. Verifiquem a preciosa localização do Teatro Riachuelo. Olhem o seu entorno. Está ali o Corredor Cultural, com imóveis belíssimos exigindo cuidados. Está ali o Passeio Público, à espera de uma faxina-detox-plástica. Está ali o espetacular edifício do Automóvel Club do Brasil, pronto para ser transformado num grande shopping center cultural – seria o primeiro do mundo.
Assim como o sr. José Isaac Peres decidiu construir um shopping da alma, o momento é este, devia aproveitar e fazer no belo prédio abandonado do Automóvel Club um shopping do espírito. Seria revolucionário, um ato propício para espantar qualquer Aragão. A medida recompensaria os nativos da perda trágica da Livraria Cultura.
Para tanto, basta seguir o exemplo do Teatro Riachuelo, examinar com atenção o desenho da programação oferecida nestes festejos. Pois dos dias 25 a 28 de novembro, a belíssima casa receberá os gêneros fortes de sua existência, os mais presentes ao longo de sua trajetória.
Quer dizer, haverá teatro, teatro musical, dança, comédia, show e música de concerto, em perfeita sintonia com o gosto do público. Ao vivo, claro – mas, para quem ainda estiver com medo pandêmico de rua, haverá acesso online. Aquele outro medo, do Aragão, não rola nas imediações, ainda íntegras e propícias para grandes prazeres teatrais.
Assim, será possível ver – ou rever – a deliciosa peça A Lista, de Gustavo Pinheiro, um encontro sublime de arte entre Lilia Cabral e sua filha, Giulia Bertolli. Mas também se poderá vibrar com uma noite feérica de teatro musical – com a Noite dos Musicais.
Esta montagem abrirá a comemoração. O formato é bem festivo, pois o palco reunirá grandes talentos do gênero, em cenas de espetáculos considerados absolutos. Certamente nenhum coração amante do gênero terá motivo para reclamar.
Vale conferir a programação, com propostas para todas as idades e horários até mesmo para todos os medos cariocas, para o caso daqueles que habitam zonas de risco. A rigor, o Teatro Riachuelo possui excelente localização, bem acessível para todos os recantos da cidade – na proximidade, há metrô, VLT, linhas de ônibus, barcas e até aeroporto.
Pode parecer prosaico insistir em tais detalhes. No entanto, convenhamos – não temos estudos constantes a respeito do público de teatro, mas, a partir da vivência do ato de ir ao teatro, dá para arriscar um palpite. O público carioca é polarizado, reúne idosos (as famosas velinhas das vans) e jovens. E muitas mulheres.
São, portanto, parcelas frágeis da população, quase sempre com problemas de circulação urbana. Para as mulheres, a situação parece mais cruel. Vivemos numa sociedade muito violenta, herdeira legítima de um século XIX bárbaro. Os dados circulam por toda a parte, é muito fácil conferir.
Um exemplo? O livro Ana e a tal felicidade, de Cris Pimentel, é uma fonte séria para o tema. A autora batalha, junto com o coletivo Notícias de Tudo, a favor da emancipação das mulheres, sobretudo das mulheres vítimas de violência, que possuem o direito à felicidade, apesar de traumas e situações violentas de opressão.
Por causa da adesão à luta, nasceu um espetáculo inspirado no livro, cartaz apenas até este domingo no Espaço Sergio Porto. A dramaturgia assinada por Renata Mizrahi alinha a proposta do livro, experiências da autora, com relatos de outras mulheres, até o presente próximo.
Diante do panorama aterrador de estupros, em particular cometidos contra meninas, o foco do projeto incide justamente na necessidade de ativar a força feminina, para a transformação da dor. E são muitos os itens a tratar quando o eixo roda ao redor da opressão feminina no Brasil.
Em cena, Stephanie Serrat e Charles Asevedo, sob a direção de Carol Araujo e Nina da Costa Reis, apresentam um texto dominado pelo desejo de romper silêncios, confinamentos existenciais, redução de espaços e direitos sociais.
O foco é a senhoria de si pela mulher – parece uma frase complicada? Mas o sentido é claro. O destino de toda mulher é ser feliz. Já é tempo da sociedade entender a frase simples. E para alcançar tanta felicidade, é urgente combater o machismo, a opressão feminina. Reconhecer a mulher como ser pleno, de plenos direitos.
Se a era da escravidão, pródiga em coisificar pessoas, passou, a humanidade plena precisa surgir de conquistas básicas, simples, índices naturais de civilização. A opressão feminina é parte da miséria social brasileira, gera potentes circuitos de medo social. Erradicá-la não é difícil, exige a disposição permanente para a luta.
Então, sob as novas luzes do prefeito, que deseja estimular a vida na noite urbana sem medos, devem prosperar causas sociais elevadas, capazes de iluminar a face humana da cidade. O grande caminho? Mais teatros, claro – depois da divina criação original, ao lado das escolas, só o teatro consegue moldar o humano. Para promovê-lo, elevá-lo ao seu grau mais elevado de depuração existencial. Então, ok, vai aí a pergunta, por favor responda sim – vamos ao teatro?
TEATRO RIACHUELO
PROGRAMAÇÃO:
Aniversário de 5 anos do Teatro Riachuelo
De 25 a 28 de novembro de 2021
25.11 | Qui: 19h – Noite dos Musicais
26.11 | Sex: 20h – Zabelê no show “Auê”
27.11 | Sab: 11h – Cia de Ballet Dalal Achcar; 16h- “Zaquim, O Musical”; 20h – “A Lista”
28.11 | Dom: 11h – Conjunto de Metais da Orquestra Petobras Sinfônica; 16h – Focus Cia de Dança; e 20h – Paulo Vieira.
SERVIÇO:
Valores: R$ 10 a R$60 (venda com preço popular a R$ 5,00 – no caso considerar a meia)
Vendas online: https://site.bileto.sympla.com.br/teatroriachuelorio/
Para duração, classificação indicativa e outras informações, favor acessar:
www.teatroriachuelorio.com.br
Teatro Riachuelo Rio
Rua do Passeio 38/40, Centro | Contato: (21) 3554-2934 e sac@institutoevoe.com.br
Informações para a imprensa:
MNiemeyer Assessoria de Comunicação
ANA E A TAL FELICIDADE
FICHA TÉCNICA:
Texto de Renata Mizrahi
Inspirado no livro homônimo de Cris Pimentel
Direção: Carol Araujo e Nina da Costa Reis
Direção de arte-cenografia e figurino: Bia Junqueira
Elenco: Stephanie Serrat e Charles Asevedo
Direção de Produção e Idealização Projeto: Cris Pimentel
Direção de Movimento e Corpo: Maria Carol Leguedê
Direção de Luz Cênica: Ana Luzia Molinari de Simoni
Direção Musical, trilha original e operador de som: Aldo Medeiros
Visagismo: Cleia Tomaz
Produção: Márcia Saban
Designer e criação: Geremias Marins
Fotografia: Rosely Firmino (divulgação); J. Erigberto (fotos de cena)
Operador de Luz: Paulo Ignácio
Assistente de Direção Musical: Guto Menezes
Assistente de Cenografia e Figurino: Alice Cruz
Assistente de Produção: Tatiana Pereira
Prestação de Contas: Priscila Morrot
Filmagem: Walber Cardoso Guimarães
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Redes Sociais: Lia Castanho
Site e manutenção: Carlos Pimentel
Realização: Notícias de Tudo
SERVIÇO:
De 04 a 28 de novembro de 2021
Quinta a sábado, às 20:00 e domingos, às 19:00
Debates, aos domingos, após o espetáculo
Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto -Rua Humaitá, 163 – Humaitá, Rio de Janeiro – RJ (OBS: entrada pela Visconde e Silva)
Telefone: 21 2535-3846
Duração: 60min
Ingressos: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia)
Classificação etária: 16 anos
Lotação: 180 lugares