No país da cultura-lixo
“Muita gente acha que lixo é algo imprestável, podre, acabado – não serve para nada, pura tranqueira. Aliás, muitas destas pessoas que pensam assim, não pensam sequer um minuto no problema que arranjam, para a Terra e para a sociedade, quando produzem o seu lixo-tranqueira cotidiano. São pessoas que nunca se perguntaram para onde vai o seu lixo. Este é o lixo visto como infernal, maldito. O tema é vasto.
Para começar a questionar esta visão do mundo, é recomendável ver a peça Kondima – sobre Travessias, novo cartaz do Arena SESC Copacabana, trabalho impecável da Troupp Pas D’Argent. Lá pelas tantas, a inefável atriz Ruth Mariana surpreende a plateia com o seu depoimento contundente de refugiada: sobreviveu no Brasil muito tempo graças ao lixo brasileiro, ao seu ver um lixo ótimo. Este é o lixo celestial, abençoado.
Logo se vê o alcance da coisa: o debate interessa muito por sintonizar em linha direta com graves problemas atuais da cultura e do teatro no país. Diante da violenta crise brasileira, muita gente distraída pensa que cultura, arte, teatro (e, portanto, sensibilidade e pensamento) é apenas lixo, no sentido infernal da palavra. No entanto, para quem ama este lixo e vive nele e dele, impossível aceitar tal avaliação.
É preciso, primeiro, separar as coisas. Não dá para aceitar impassível a ruína nacional; pior – não dá para aceitar de jeito nenhum certos aspectos grotescos da ruína nacional. O descalabro brasileiro adquiriu tal extensão que se torna difícil dimensionar o desastre. Ou mesmo examiná-lo com frieza. Muita gente boa, encastelada nas suas pirâmides faraônicas de lixo, não percebe a extensão do desastre. Em lugar de falar em realidade social, hoje, aqui, devemos falar em calamidade social.
Os exemplos são aterradores, basta sair dos ocos em que vive a classe média endinheirada. Não se pode aceitar, em nenhuma hipótese, o pleno poder da marginalidade por tudo que é bairro popular ou a mortandade de cidadãos nos hospitais públicos sucateados, mortes causadas por males passíveis de curas cirúrgicas ou medicamentosas. Também não dá para engolir as escolas arruinadas, incapazes de oferecer educação de qualidade, e mesmo a falta de escolas, ao lado da fome e da subnutrição infantil, da precariedade do saneamento, da violência descalibrada por toda a parte. A crise tornou as cores da miséria brasileira insuportáveis.
No entanto, pensar que a condenação da cultura à lata de lixo infernal possa ter importância para resolver o quadro social brasileiro gangrenado é um raciocínio torto, absurdo. Pois a fragilidade da cultura nacional, uma situação histórica densa, é justamente um dos principais fatores determinantes de nossa estrondosa miséria. Se não tivéssemos uma realidade cultural tão esgarçada, entregue à própria sorte, se não estivéssemos num país continental de escolas indecentes, um país que sequer erradicou o analfabetismo, não teríamos o quadro de calamidade social que nos cerca.
A cultura move a alma humana para o melhor de si. E cultura, neste contexto, aqui, precisa ser vista como um conjunto de práticas sociais que contem a educação. Foi aí que nós falhamos: de nada adianta ter as outras riquezas, objetivas. Ao cidadão que nasce sem nada, na miséria, a cultura garante os meios para transformar a sua vida, para empreender e se tornar senhor de seu destino, conquistar a dignidade humana que a miséria nega. A cultura fará com que ele se torne um cidadão pleno.
Para o cidadão bem nascido, favorecido pela fortuna, a cultura revela a responsabilidade da liderança e da riqueza, pois toda a riqueza, por existir antes do rico, é um produto social e deve ter clara a sua função social. O homem próspero precisa perceber que a dignidade social é patrimônio coletivo, responsabilidade de todos. Não é aceitável viver numa sociedade em que muitas pessoas vivem sob absoluta precariedade e não se fazer nada. É imoral e acultural.
Um exemplo carioca tem eloquência. A Rua São Clemente, em Botafogo, se tornou no século XX a rua mais aristocrática da cidade. Grandes mansões de luxo fulgurante se instalaram no lugar das primeiras velhas chácaras, embaixadas estrangeiras se afirmaram grandiosas na paisagem bucólica.
Logo, no Morro D. Marta, uma empena rochosa íngreme, começaram a surgir os primeiros barracos, de madeira e zinco, abrigos precários dependurados na encosta. O malabarismo miserável não levou o poder suntuoso a qualquer atitude. A Favela Santa Marta prosperou em sua impressionante miséria e está lá até hoje e, atualmente, superpovoada, sofre com a violência, a marginalidade e o tráfico.
Para as mansões, a favela figurava como um tesouro de mão de obra barata. O tempo das mansões passou, os barracos sofreram reformas, empreendidas ao Deus dará por seus donos. Admiradora da garra dos moradores, perguntei a alguns arquitetos o que se poderia fazer para melhorar a vida ali, criar um bairro popular. Todos os que consultei nem hesitaram: o melhor a fazer seria a remoção, o local, para eles, era inabitável. E a favela segue lá, entregue a si, no inabitável, agora de alvenaria, com soluções arquitetônicas arrojadas, surpreendentes, cores dignas de uma paleta tropicalista, contágios culturais espontâneos inesperados para quem os ignora.
Portanto, há um ponto de vista sério a defender: a urgência da cultura brasileira é de forma e de fato a urgência da calamidade social brasileira. Impossível pensar a mudança do país sem mexer diretamente com o imaginário tacanho que reveste a nossa sociedade. Seguimos a ética e a moral das sesmarias, nosso universo simbólico-social permanece no século XVI.
E vale dizer mais: não existirá qualquer chance de caminhar na mudança econômica e social se não se der um banho de cultura efervescente, intenso, na nossa sociedade. Em lugar de achar que a cultura é um lixo infernal, a hora é de perceber a sua grandeza de lixo celestial, salvador de vidas.
Nesta semana foi lançado um documentário dedicado ao grande empreendedor, homem de teatro em escala maior, Orlando Miranda. Está no Youtube, passeia no facebook, dá para acessar num simples toque de dedo. Uma lição completa de gerência teatral está ali. Orlando Miranda, ator, produtor, gestor de teatro, animador cultural, administrador teatral, presidente do SNT e de algumas outras siglas impostas para a desorganização do setor artístico-teatral oferece o maior exemplo nacional de empreendedorismo a favor do teatro e da cultura de nosso tempo.
Dono do teatro Princesa Izabel, o qual fundou com Pedro Veiga e Pernambuco de Oliveira, ele assumiu o SNT com apoio irrestrito da classe, em especial dos comunistas e dos setores de esquerda, apesar de ter sido sempre um homem de direita. E negociou com a ditadura militar as condições essenciais efetivas para a prática do teatro sob o regime de excessão. Foi político no mais belo sentido da palavra, em lugar do confronto buscou sempre a negociação.
Contou com assessores dotados de extrema eficiência – Carlos Miranda, uma capacidade administrativa exemplar, Humberto Braga e Maria Helena de Araújo Nicolaeff, profundos conhecedores do teatro profissional, Sebastião Uchoa Leite, intelectual, tradutor e poeta decidido a lutar a favor da densidade cultural do país, entre outros amantes exemplares do teatro.
A análise da obra de Orlando Miranda, continuada a seguir por Carlos Miranda, que, vale frisar, não era seu parente, não poderia ser feita nestas linhas rápidas. De saída, importa perceber o tom maior, de paixão total pela cena e pelo país. Até a mera enumeração das iniciativas é impossível, por ser um rol muito longo. Mas um ponto nevrálgico precisa ser sublinhado.
Além da extrema habilidade diante da censura e frente a concepções políticas hostis à arte, Orlando Miranda lutou para fortalecer as estruturas de produção – criar ou reformar teatros, estimular a edição de textos, apoiar as viagens das produções, estimular a dramaturgia e os valores de destaque com prêmios, formar profissionais de circo, formar público. Por isto a sua obra alcançou uma grandeza histórica inabalável: ele fez para o futuro, não apenas para o imediato.
Hoje, se a produção teatral brasileira for traduzida em números, os algarismos obtidos serão surpreendentes. O ritmo de trabalho do nosso palco impressiona quando descarnado em tabelas e cifras. E isto para falar uma linguagem objetiva, das contas materiais – pois os resultados alcançados em relação ao cultivo da sensibilidade cidadã, brasileira, em relação ao trato da percepção do humano e ao estímulo à potência criativa não são mensuráveis por escalas objetivas. Num cenário de calamidade social, trata-se de um grande tesouro nacional, patrimônio inefável da nacionalidade, que precisa ser ampliado, para que, enfim, nos transformemos.
Portanto, cultura e teatro só podem ser considerados como lixo se forem enquadrados como lixo celestial. De certa forma, assim como a comida boa que o brasileiro abonado joga fora no lixo garante a sobrevivência de muita gente, assim a cena brasileira – e a cultura brasileira – sustentam espíritos, abrem mentes, lançam alicerces sólidos para que se possa cogitar atingir um estado de grandeza nacional, diante da calamidade social em que vivemos. Portanto, a hora é agora: teatro já. Todo o poder à cena, se de verdade amamos o Brasil, um país que não merece ir para o lixo infernal. Nós podemos mudar isto.
KONDIMA- sobre travessias
Estreia dia 08 de novembro
Temporada de 08 a 25 de novembro – quinta a domingo – sempre às 19:00
Horário: 19:00
Local: Arena do SESC Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: R$ 7,50 (associado do SESC), R$ 15 (meia), R$ 30 (inteira)
Informações: (21) 2547-0156 – Bilheteria – Horário de funcionamento: Segundas – de 9h às 16h;
Terça a Sexta – de 9h às 21h; Sábados – de 13h às 21h; Domingos – de 13h às 20h.
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 80 minutos
Lotação: 242 lugares
Gênero: drama
Orlando Miranda: homem de teatro – YouTube
06/11/2018 – Carregado por funarte
O produtor teatral Orlando Miranda é o personagem deste vídeo.
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