A Glória do Teatro, da Marquesa e da Baronesa
“No rádio do carro, Gil proclama: o Rio de Janeiro continua lindo. Eu desvio de um, dois, três buracos e cantarolo junto. Que beleza, cidade maravilhosa! Logo chego num belo engarrafamento e posso olhar ao redor. Uma grande notícia salta dos morros para me encantar – vejo encostas reflorestadas, libertas do capim colonião. Ninguém notou, ninguém falou nada, mas tivemos um verão sem os terríveis incêndios espontâneos nos morros.
Em compensação… muitas encostas desceram sobre a cidade com as chuvas. O que liga as duas pontas da paisagem? A qualidade da adesão cidadã. Muita gente aderiu e apoiou as campanhas de reflorestamento das célebres montanhas cariocas. O resultado verdejante está à disposição dos olhares. No entanto, vale observar que sim, não temos mais, faz tempo, a liberdade de enveredar pelos morros e trilhas para conferir a obra, mas ao menos ficamos livres dos fogaréus. Contamos com o simples encanto de ter paisagem para contemplar.
Quanto às obras de limpeza de bueiros, contenção de encostas, podas racionais e tratamentos paisagísticos das árvores públicas, manutenção das ruas e avenidas, manutenção de elevados e túneis – tudo visivelmente largado – nós falhamos. Chegamos a um ponto inacreditável, hoje, de decadência urbana: é tão ruim enfrentar a buraqueira das calçadas quanto a das ruas, é muito arriscado passar por certos túneis, elevados e encostas sob chuva. Tudo vem abaixo sem aviso. Alguém passa tranquilo pela Rua Bela, segue por aquelas sombras esquecido da ironia do nome? Rua Bela… Conselho amigo: ande com muito cuidado, reze para São Cristóvão, padroeiro do decadente bairro, lar da mais alta nobreza imperial, quem diria.
A pergunta tarda, mas não falha – se a cidade conseguiu reflorestar um bocado de morros, por que não nos unimos para resolver o resto? Qual a trama histórica sinistra que nos mantém tão dissociados de nossos direitos comunitários? O que esperamos para exigir que o Rio de Janeiro continue lindo e nos orgulhe, nos envaideça, nos permita chamar o mundo para vir aqui? Não podemos começar a agir para deter o rastilho de destruição que varre a cidade?
Apesar do descalabro, boas notícias aparecem. A semana será iniciada com a festa de inauguração do Teatro Prudential, o novo nome do velho Teatro Manchete (ou para alguns Adolpho Bloch). O feito é de grande monta, pois a casa tem assinatura sofisticada – foi projetada por Oscar Niemeyer e conta com paisagismo assinado por Burle Marx. O palco deverá se impor como abrigo de grandes espetáculos, um convite para retomar a vida elegante carioca.
Não é uma pequena vitória, mas sim uma iniciativa capaz de fazer vibrar a corda mais delicada da alma da cidade, pois afinal o Rio de Janeiro não soube ser outra coisa a não ser capital requintada – o ouro de Minas Gerais nos inventou. A cidade merece grandes teatros. E mais. Afinal, festa, pompa e circunstância, salões e confraternizações caem bem por cá. A Glória atesta bem os tempos antigos de fausto e merece renascer das cinzas.
Atos positivos já surgiram na região – o primeiro deles alcançou um impacto memorável, num ato de transformação urbana de perfil histórico: foi a restauração da Vila Aymoré. O imponente conjunto de casas construído entre 1910 e 1916 atesta a condição requintada da região, próxima à Igreja da Glória, área célebre por seus bons ares e por causa das festas religiosas. Habitada pela nobreza, frequentada por D. Pedro I, as cercanias se tornaram degradadas no século XX, transformando-se em ruínas e abrigo de drogados.
Comprada em 2010 pela Landmark, a Vila foi restaurada e transformada em centro de arte e coworking; passou a abrigar o Arte Clube Jacarandá, espaço compartilhado por artistas tais como Carlos Vergara, Iole de Freitas, Vik Muniz, Luiz Zerbini, José Bechara. O conjunto arquitetônico restaurado impressiona por sua grandeza: abriga escritórios, galerias de arte, restaurante e área de eventos variados.
Uma expressão simples, mas magnética, aflora diante deste tipo de iniciativa: plenitude cidadã. Parece que é isto que precisamos querer e tentar buscar, definindo de saída quem manda na cidade. Não é preciso ser um grande empreendedor ou cogitar ter um imenso capital para investir. Há uma atitude coletiva, uma mentalidade urbana para ser posta em prática. Algumas pequenas atitudes – restaurar um jardim, plantar uma árvore, cobrar por serviços essenciais obrigatórios não realizados – podem contribuir para o mesmo efeito, ao traduzirem uma disposição nova de ser.
Nostálgica do Rio aprazível que eu não vivi, a belacap dos anos 1940/1950, o balneário cortesão destruído em tempos recentes com a nossa complacência, fui remexer velhos programas de teatro. Encontrei um exemplar surpreendente de verdade, espantoso – vale prestar atenção nas suas linhas e entrelinhas. O documento, apenas uma folha dobrada ao meio impressa em azul, é um cartazete-anúncio dos Festivais Dramáticos Quitandinha, de 1948. Apesar da proibição dos jogos e dos cassinos, o grandioso hotel ainda tinha fôlego e se esmerava para encantar a população.
No folheto, estavam anunciados dois espetáculos, cartazes de sábados seguidos de 1948, dedicados à apresentação de Fausto, de Goethe, e Ele, de Savoir. Duas grandes novidades eram anunciadas com ênfase: o primeiro palco giratório do Brasil e a apresentação única de Rodolfo Maier antes de sua viagem para Portugal.
Para o amante de teatro, além das imagens de atores devotados ao palco integrantes dos elencos, comove a foto de Nicette Bruno, bem novinha, e a dimensão da vida teatral carioca. Um outro anúncio fala de tempos inusitados, afirma que os espectadores que não quiserem pernoitar em Petrópolis podem voltar na mesma noite para o Rio, de carro, de lotação ou ônibus. Segundo o autor, o trajeto Quintandinha-Rio levava de carro apenas 60 minutos.
A observação entrega uma realidade que se perdeu – o trânsito favorável e fluído, a segurança das estradas, sem assaltos ou tiroteios. Dava para fazer um programa de sonho, com uma noite teatral luxuosa no Quintandinha e uma alvorada tropical carioca.
Nesta atmosfera de busca de encantos conquistados outrora e perdidos nestes tempos sombrios recentes, é de extrema importância comemorar com muita alegria a inauguração da casa recuperada: longa vida para o Teatro Prudential. Talvez não se possa retornar ao fausto de D. Pedro I, fiel frequentador do bairro, arrabalde que visitava para rezar o seu amor pela Marquesa de Santos e, às escondidas, celebrar a paixão pela irmã dela, a Baronesa de Sorocaba.
Mas não é hora para perder as esperanças. O amor de agora é bastante sublime, é puro amor à cidade. Quem sabe o gesto se prolonga, ecoa. E nos dá a beleza requintada da Glória de novo, em vários edifícios renovados, um meio para levar o Rio de Janeiro a brilhar feliz e elegante, como se pudesse espalhar por aí, de novo, a sua condição essencial de maravilhosa cidade.
SERVIÇO
Abertura do Teatro Prudential (antigo Teatro Manchete) Inauguração: terça-feira, dia 21, às 19h.
Apresentação de um pot-pourri de musicais como Hair, Elis, a Musical, Wicked – A história não contada das Bruxas de Oz, Cantando na Chuva, Meu Destino é ser Star, Ícaro and the Black Stars.
Direção: João Fonseca e Tony Lucchesi
Produção: Aventura.
Quinta-feira, dia 23 de maio, às 20h.
Apresentação especial: PI-Panorâmica Insana
Textos de Júlia Spadaccini, Jô Bilac e André Sant’anna, com citações de Franz Kafka e Paul Auster.
Direção e concepção: Bia Lessa
Elenco: Claudia Abreu, Leandra Leal, Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo.
Fotos: paisagem do site da Vila Aymoré e programa-filipeta acervo Tania Brandão.
Tagged: Aventura, Carlos Vergara, Clube Jacarandá, crise do Rio de Janeiro, Glória, História do Rio de Janeiro, Iole de Freitas, Quitandinha, Teatro Prudential, Villa Aymoré