Depois da estrela
Marilyn Monroe: algumas figuras históricas, impactantes, surgem diante de nós como grandes desafios, acenam com a possibilidade de ampliarmos nossa compreensão da vida humana. E das mulheres. Depois do amor, um encontro com Marilyn Monroe, de Fernando Duarte, cartaz do Teatro Vannucci, persegue esta ambição. Em cena, Danielle Winits materializa a estonteante garota-pecado com delicadeza, através de uma minuciosa escolha de gestos, trejeitos, expressões – e traz, mais além da homenagem, uma tentativa de estudo de temas femininos urgentes. O que é, afinal, a mulher na nossa sociedade?
A rigor, Marilyn é um belo pretexto. Não se busca, neste espetáculo, nem uma exumação da fulgurante estrela do cinema, nem um documentário preocupado em destrinchar a sua identidade. Sem dúvida foi feita uma pesquisa preciosa a respeito da atriz, usada no texto intensamente, às vezes em sequências que resultam um pouco frias, pois estão carregadas demais de informação.
Mas o foco é outro e a diversão, certa – o autor esboça em cena dois perfis de mulher contemporâneos plausíveis, um tanto complementares, pois são formas femininas de servidão no mundo dos homens. No entanto, são, afinal, perfis antagônicos. Este é o centro do debate. A direção, último trabalho teatral da fulgurante Marília Pêra, assistida por Fernando Philbert, explora com requintes o rendilhado de emoções femininas em pauta, da meiguice ao furor de destruição.
Sim, Marilyn foi predadora, agressiva, instinto feminino em estado selvagem, digamos. O oposto da rainha do lar. A doçura transbordante encanta nos filmes, confina com os sonhos a respeito do eterno feminino, mas, na vida, era avassaladora, um fluxo de carência infantil transgressiva insuportável. Ao que tudo indica, morreu por causa disto – pois não há mais a menor possibilidade de acreditarmos na hipótese de suicídio. E quando morreu, ao seu redor não havia nenhum amigo sincero capaz de defendê-la. Depois do amor, o que restou foi a mais negra solidão.
Portanto, o debate lança no ringue a mulher em busca do poder sob dois tons, a devoradora e a submissa, esboça um painel entre o cômico e o melancólico sobre a mulher às voltas com o domínio dos homens. Para propô-lo com seriedade e grandeza, Fernando Duarte recorreu a um golpe eficiente de ficção – a partir de fiapos de realidade, concebeu uma situação teatral instigante.
A trama é simples – em 1962, durante a filmagem do seu último longa, Something’s got to give, inacabado, Marilyn Monroe, talvez mergulhada numa atmosfera depressiva forte, faltou repetidamente ao trabalho sob a alegação de doença. Quando se dispôs a trabalhar, foi preciso ajustar os figurinos, criações do famoso estilista de Hollywood, Jean Louis, pois emagrecera.
Para cumprir a tarefa, uma hipotética assistente do costureiro visita a estrela. O autor atribuiu a missão a Margot Taylor, que seria uma ex-camareira amiga da atriz, no início de sua carreira. Na versão do dramaturgo, Margot teria sido abandonada por Joe Di Maggio, dez anos antes, quando ele se apaixonou por Marilyn.
A solução lembra um tanto o relato de Colin Clark (Minha semana com Marilyn), em que o secretário da produção se desvencilhou da namorada-camareira para escoltar Marilyn em Londres. A grande diferença é que, na peça, a situação proposta não aborda um fato real, é pura invenção do autor. Não se sabe de uma namorada abandonada por Joe Di Maggio por causa de Marilyn e, de qualquer forma, não houve este confronto feminino.
Para destacar as nuanças do encontro, a cena é despojada. O cenário retrata com simplicidade a casa em que Marilyn morreu, ocupada havia pouco, criação de Natália Lana, sob luz funcional de Vilmar Olos. Busca-se um grau de distância do realismo através de projeções de imagens de Marilyn, mas, no saldo final, o efeito se torna confuso e pouco esclarecedor. A plateia não precisa deste indicador para perceber que se trata mais de um ensaio teatral sobre o feminino do que de um docudrama dedicado à estrela.
Também no texto alguns truques sugerem a mesma busca de ruptura – o uso de palavras de hoje, as referências a hábitos e mesmo a poesias de nossa época indicam um esforço para distanciar a ação, situar a cena longe da reconstrução de época, também um recurso desnecessário. Em sentido contrário, os belos figurinos, de Sônia Soares, e o visagismo de Marilyn, de Max Weber, oferecem reproduções bastante fiéis da época e da identidade da atriz. E esta orientação resulta mais divertida, pois a plateia de hoje sabe lidar com este tipo de narratividade.
Por sinal, a sensibilidade do público não tem razão para queixas. Muitos momentos são preciosos nesta montagem, a começar por uma emocionante homenagem, na abertura, ao imenso talento de Marília Pêra, sensacional mulher de teatro responsável pela concepção da direção da peça, o seu último trabalho, que comandou até às vésperas da morte.
A presença de Marília se faz notar por toda a cena, nos toques sutis de teatralidade e de feminilidade, nas filigranas do desempenho de Danielle Winits. Elas foram moldadas para expor Marilyn como performance, tanto nos gestos estudados para atrair a atenção, como nos trejeitos para encantar e seduzir, culminando na consciência do corpo desejado e desejante. Está lá o champanhe, a vaidade, a voz sensual da própria Marilyn louvando os diamantes, na bela trilha sonora de Paula Leal.
Mas não é só. O espírito profundamente profissional de Marília Pêra, a sua total entrega ao teatro, repercutem na excelente Maria Eduarda de Carvalho. Chamada para substituir a atriz ensaiada para o papel desafiador de antagonista requintada da estrela, Maria Eduarda de Carvalho não chegou a ser ensaiada pela diretora, que faleceu um pouco antes da estreia nacional.
Ela não se limitou a aceitar o embate: Maria Eduarda de Carvalho arrebata em cena, sustenta com vigor e credibilidade o papel da mulher reprimida dos anos 1950/1960, a senhora do lar, imagem que Marilyn Monroe ousou despedaçar ao longo de sua vida, talvez por não ter tido jamais um lar. A afinação entre as duas atrizes é absoluta, gera cenas de humor irresistível, passagens de sofisticada teatralidade.
Em resumo, a montagem, entre o realismo singelo e a invenção teatral, transporta a plateia para um inventário importante, o inventário das condições da figura feminina na aurora do nosso tempo. Aquele tempo em que ainda não se sabia como a mulher poderia sobreviver fora do jugo masculino, depois do amor, como poderia dar as cartas do desejo e protagonizar, livre, a própria existência. Ou mesmo pretender controlar as rédeas do mundo.
Marilyn, a guerreira sedutora voraz, expõe as suas armas em cena, ao lado da submissa empreendedora. Quem terá sido a ganhadora? Apesar do seu aparente poder, ainda que tenha se transformado em mito, Marilyn não sobreviveu: ao que tudo indica, uma trama masculina, até hoje obscura, logo condenou-a à morte. Como se o limite para a realização feminina estivesse desde sempre traçado, contido por um conceito macho do mundo. Quer dizer, vale a pena conferir. Interessa muito pensar o tema, em especial, às mulheres.
Autor: Fernando Duarte
Direção: Marília Pêra
Diretor Assistente: Fernando Philbert
Elenco: Danielle Winits e Maria Eduarda de Carvalho
Figurinos: Sônia Soares
Cenário: Natália Lana
Iluminação: Vilmar Olos
Trilha sonora: Paula Leal
Projeções: Aníbal Diniz
Projeto Gráfico: Ronaldo Alves
Fotografia: Lucio Luna
Visagismo: Marilyn – Max Weber
Visagismo: Margot – Chico Toscano
Assistente de Direção: Paula Leal e Mayara Travassos
Assistente de figurino: Juliana Barja
Assistente de cenário: Amanda Cursino
Assistente de produção: Mayara Maia
Cenotécnico: AndréSalles e equipe
Cenotécnico assistente: Paulo Fernandes
Confecção de figurinos: Marilyn – Maria Santina
Confecção de figurinos: Margot – Rodrigo Rosner
Operador de som: Thiago Silva e Andrey Brandao
Operador de luz: – Eder Nascimento
Operador de vídeos: – Aníbal Diniz
Direção de cena: Ricardo Silva
Assessoria Jurídica: Jonas Vilasbôas
Assessoria de Imprensa: Rafael Barcellos /Stratosfera
Adm financeira: – Karime Khawaja
Produtora associada: – Danielle Winits
Direção de produção: Cassia Vilasbôas e Fernando Duarte
Coprodução: Winits Produções Artísticas
Realização: Nove Produções Culturais
Temporada: de 07 de janeiro a 06 de março
Local: Teatro Vannucci – Shopping da Gávea
Horário: Quinta à Sábado 21h30 Domingo 20h
Ingressos: Inteira R$80 Meia R$ 40
Vendas: Ingresso.com
Bilheteria do Teatro:(21) 2274-7246
Capacidade: 420 lugares
Indicação Etária: 12 anos
Gênero: Comédia Romântica
Tagged: Danielle Winits, Depois do amor um encontro com Marilyn Monroe, Fernando Duarte, Maria Eduarda de Carvalho, Marília Pêra, Marilyn Monroe
2 Comments
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Tania, querida, obrigado pelas belas palavras.
Que alegria ler esse texto.
DEPOIS DO AMOR foi um encontro de almas. Escrevi pensando na Dani, Marília trabalhou muito no processo de criaçao. Quanta generosidade. Teatro era mesmo o seu território sagrado.
Philbert querido, obrigado por finalizar tao bem o trabalho da Marília.
Maria Eduarda de Carvalho e Dani Winits em cena – um deleite.
Tania, querida, obrigado pelas belas palavras.
Que alegria ler esse texto.
DEPOIS DO AMOR foi um encontro de almas. Escrevi pensando na Dani, Marília trabalhou muito no processo de criaçao. Quanta generosidade. Teatro era mesmo o seu território sagrado.
Philbert querido, obrigado por finalizar tao bem o trabalho da Marília.
Maria Eduarda de Carvalho e Dani Winits em cena – um deleite.